Ashley Dawson: A sexta extinção e o capitalismo global

Ritmo atual de eliminação de espécies na Terra só é comparável ao que liquidou dinossauros. Quais as causas da crise. Como ela se relaciona à privatização do Comum.

Por Ashley Dawson*

Elefante africano

O texto a seguir é a introdução de Extinction: A Radical History (Extinção: uma história radical), de Elizabeth Kolbert

Sua face havia sido retalhada. Prostrado sobre a poeira rubra, para ser devorado pelos abutres, seu corpo permanecia intacto, exceto pela fenda obscena no lugar onde antes estavam seus magníficos dentes de dois metros. Satao era um dos chamados “dentuços”, um elefante africano com uma cepa genética rara, que produz dentes tão grandes que chegam a tocar o chão, o que os torna uma grande atração do Parque Nacional Tsavo East, no Quênia.

As belas presas também tornaram Satao particularmente valioso para os traficantes de marfim, que o atingiram com setas envenenadas, cavocaram sua face para chegar a seus dentes e abandonaram sua carcaça às moscas. A horrível morte de Satao, um dos maiores elefantes da África, é parte de uma onda violenta de caça clandestina que varre o continente. Em 2011, 25 mil elefantes africanos foram massacrados por seu marfim. Outros 45 mil foram mortos nos anos seguintes. Se o ritmo atual continuar, uma das duas espécies de elefantes africanos, o elefante das selvas, cujas populações declinaram em 60% desde 2002, terá desaparecido da África em uma década.

A imagem de Satao, estendido sem face na poeira, é chocante. Embora o elefante, enquanto espécie, provavelmente não esteja fadado à extinção (alguns indivíduos permanecerão livres em reservas e zoológicos), a dizimação de suas populações selvagens lembra-nos da onda maior de extinções, a sexta já testemunhada pelo planeta Há apenas algumas dezenas de milhares de anos, durante o Pleistoceno, a Terra abrigava uma imensa variedade de animais muito grandes e espetaculares. De mamutes peludos a tigres de dente de sabre e a animais menos conhecidos, mas igualmente exóticos, como preguiças gigantes e tatus do tamanho de carros, uma megafauna vagava livremente pelo mundo. Hoje, quase todos estes enormes animais estão extintos: mortos, a maior parte das evidências sugere, por seres humanos. À medida em que se espalhava pelo planeta, o Homo Sapiens dizimou populações da megafauna em todos os lugares onde se fixou. A humanidade, em essência, devorou os degraus imediatamente abaixo, na cadeia alimentar, ao varrer a biodiversidade. A África, nosso lar ancestral, é praticamente o único continente a reunir alguns remanescentes da biodiversidade pleistocênica. Na morte cruel de Satao e seus iguais, testemunhamos a destruição final da megafauna remanescentes, o jogo final de uma época de defaunação épica, ou massacre animal.

Mas não é apenas a megafauna carismática, como elefantes, rinocerontes, tigres e pandas que está sendo empurrada para a extinção. A humanidade vive em meio, e á a causa de dizimação maciça da biodiversidade global. De humildes invertebrados como besouros e borboletas a várias populações de vertebrados terrestres, como morcegos e pássaros, as espécies estão caminhando para a extinção em ritmo recorde. Por exemplo: desde 1500, 322 espécies de vertebrados terrestres desapareceram, e as populações das que não pereceram mostram uma redução de cerca de 25%, em todo o mundo. As populações de invertebrados estão igualmente ameaçadas. Os pesquisadores normalmente concordam que a atual taxa de extinção deve ser considerada catastrófica: ela ocorre numa velocidade entre mil e dez mil vezes maior que a verificada antes que o ser humano começasse a exercer pressão significativa sobre o ambiente. A Terra está perdendo cerca de cem espécies por dia. Além desta onda de extinções, que os biólogos consideram capaz de eliminar 50% das espécies animais e vegetais existentes, também está declinando de modo dramático a abundância de espécies em regiões específicas, o que ameaça o funcionamento dos ecossistemas. Esta extinção em massa é, portanto, uma expressão – e causa – pouco percebida da crise ambiental contemporânea.

Embora a onde de extinção em massa seja global, a destruição de espécies está concentrada num pequeno número de núcleos geográficos. Isso deve-se ao fato da diversidade estar distribuída de maneira não uniforme. Em terra firme, as florestas tropicais são seu principal berçário. Embora cubram apenas 6% da superfície terrestre, seus habitats terrestres e aquáticos abrigam mais de metade das espécies conhecidas do planeta. Conforme explica E.O.Wilson, os trópicos são o principal abatedouro da extinção, suas grandes extensões verdejantes divididas em fragmentos que minguam rapidamente, suas espécies animais e vegetais lutando para se adaptar à destruição de habitats, às espécies invasivas, à penetração da agricultura e, cada vez mais, às mudanças climáticas provocadas pelo homem. Da grande Bacia Amazônica às florestas tropicais da África Central e Ocidental, às florestas da Indonésia, Malásia e outras partes do Sudeste Asiático, os seres humanos estão eliminando os lares de milhões de espécies. Ao fazê-lo, não estamos apenas condenando à extinção vasto número de espécies (a grande maioria das quais sequer foi identificada, ainda), mas também colocando em risco nossa própria presença no planeta.

A publicação de obras acessíveis de jornalismo científico, tais como The Sixth Extintion [“A Sexta Extinção”], de Elizabeth Kolbert, o ataque à flora e fauna do planeto começou a se tornar conhecido. O livro de Kolbert conduz os leitores a uma viagem aterrorizantes. Ela entrevista botânicos que seguem a trilha da destruição nas montanhas andinas, e biólogos que acompanham a acidificação dos oceanos. A atual onda de extinções, explica Elizabeth, segue-se a cinco eventos anteriores de extinção em massa, que devastaram o planeta no último meio bilhão de anos.

Pode-se prever que a onda atual seja a pior catástrofe para a vida na Terra desde o impacto de asteroide que destruiu os dinossauros. Ao refletir sobre esta realidade melancólica os acadêmicos começaram a escrever sobre “culturas de extinção”. Em resposta a esta preocupação crescente, o governo de Obama, nos Estados Unidos, constituiu há pouco uma força de trabalho sobre o tráfico de espécies selvagens, e começou a discutir as redes de comércio que ligam o massacre de elefantes e rinocerontes a sindicatos do crime como o Janjaweed e o al-Shabab, que usam os altos lucros obtidos no mercado ilícito de espécies selvagens para financiar suas operações.

No entanto, iniciativas como as de Obama resultam muito frequentemente numa “guerra a pequenos gatunos”, que ignora as causas estruturais por trás da destruição dos habitats e morte devastadora de animais. Os núcleos de biodiversidade dos, afinal, estão localizados no que Christian Parent chama de “trópicos do caos”. Nas latitudes tropicais do planeta, Parenti identifica uma convergência catastrófica, uma alinhamento extremamente destrutivos, de três fatores: 1) militarização e fragmentação étnica, relacionadas com o legado da Guerra Fria em nações pós-coloniais; 2) falência dos Estados e ruptura social ligada às políticas de “ajuste estrutural” impostas aos países do Sul por instituições como o Banco Mundial, desde 1980; e 3) fenômenos alimentados pela mudança climática, como a desertificação. Parenti escreve sobre o impacto desta convergência catastrófica sobre povos e Estados, mas o quadro que ele oferece, sobre as tensões que afetam o Sul Global, fica incompleto quando não se considera as relações entre a humanidade e o mundo natural, em seu sentido mais amplo. Não é possível entender a convergência catastrófica sem discutir a dizimação da biodiversidade em curso no Sul Global. Nem, inversamente, compreender a extinção sem uma análise da exploração e violência às quais as nações pós-coloniais foram submetidas.

A extinção é o produto de um ataque global sobre os bens comuns: o grande tesouro de ar, água, plantas e criações culturais coletivas como as línguas, que foram tradicionalmente vistas como herança de toda a humanidade. A natureza, a maravilhosa e abundante vida selvagem do mundo, é essencialmente um repertório livre de bens e trabalho que o capital tenta capturar. Conforme argumentaram crítico como Toni Negri e Michael Hart, políticas agressivas de liberalização comercial propõem a privatização dos Comuns – transformando ideias, informação, espécies animais e vegetais e mesmo o DNA em propriedade privada. Subitamente, coisas como as sementes, que antes circulavam livremente em todo o mundo, pelas mãos dos camponeses, tornaram-se commodities escassas. As corporações do agrobusiness modificam-nas, para que se tornem estéreis após a primeira geração. Os agricultores no Sul global chamaram-nas de “sementes suicidas”. A destruição da biodiversidade global deve ser vista, em outras palavras, como um enorme – e talvez derradeiro – ataque contra a riqueza comum do planeta. A extinção de espécies deve ser vista, junto com a mudança climática, como a principal fronteira das contradições co capitalismo contemporâneo.

O capital precisa expandir-se a um ritmo cada vez maior, ou mergulha em crises, gerando a queda de valor de ações, títulos e propriedades – além de fechamento de fábricas, desemprego em massa e revolta política. À medida em que o capitalismo expande-se, porém, ele converte cada vez mais em mercadoria o planeta, eliminando sua diversidade e fecundidade – basta pensar nas sementes suicidas. Se a tendência inerente do capital a criar o que Vandana Shiva chama de “monoculturas da mente” já gerou muitas crises ambientais localizadas, esta tendência insaciável consume agora ecossistemas inteiros, ameaçando o ambiente do planeta como um todo. Não há, hoje, nenhuma instituição efetivamente capaz de lidar com a “degradação cancerosa” do ambiente, que segundo David Harvey é produzida pela obsessão do capital por crescimento contínuo.

Ainda assim, o capital precisa transformar continuamente a natureza em mercadoria, para sustentar seu crescimento. O ritmo catastrófico das extinções de hoje, e o grande declínio da biodiversidade, representam uma ameaça concreta à própria reprodução do capital. A Sexta Extinção é o exemplo mais claro da tendência da acumulação de capital a destruir suas próprias condições de reprodução. À medida em que o ritmo da especiação (a evolução de novas espécies) é cada vez menor que o ritmo de extinção, tornam-se mais visíveis os riscos de devastação – ou mesmo aniquilação –, pelo capital, das bases biológicas de que ele depende.

O livro Extinção: uma História Radical pode ser visto como uma obra essencial sobre a extinção para ativistas, cientistas e estudiosos da Cultura, assim como para membros do público geral que buscam compreender um dos grandes acontecimentos de nossa época – ainda que frequentemente desprezado. A extinção é uma realidade material e, ao mesmo tempo, um e discurso cultural. Eles modelam as percepções populares do mundo e legitimam uma ordem social desigual. Para responder adequadamente a esta crise planetária, precisamos transgredir as fronteiras que separam a ciência, o ambientalismo e a política radical. Inclusive porque a extinção não pode ser compreendida isolada de uma crítica ao capitalismo e ao imperialismo.

Extinção: uma História Radical começa com um debate sobre a noção do Antropoceno. Utiliza este termo não apenas para lançar questões fundamentais sobre quando começou a sexta onda de extinções em massa, mas também sobre quem, exatamente, é responsável por ela. O segundo capítulo sublinha as diferentes facetas da extinção que são produtos do capitalismo – das primeiras formas modernas de devastação da fauna, como a caça às espécies dotadas de pelos aos episódios de massacre em massa, como a caça às baleias, que emergiu em sintonia com a revolução industrial. Este capítulo também discute formas de ecocídio colateral, como a devastação de corais e a extinção relacionada com espécies invasivas, assim como formas de guerra ecológica, como o uso de agente laranja no Vietnã e a poluição do delta do Niger. O terceiro capítulo do livro lança um olhar sobre o biocapitalismo de desastre: a multiplicidade de respostas políticas, econômicas e ambientais do capital à crise de extinção.

Este capítulo destaca não apenas os fracassos evidentes dos esforços para enfrentar a extinção em meio a lógicas capitalistas, mas também a tendência crescente a abrir uma nova rodada de acumulação, usando a biologia da síntese para enfrentar a crise. Ao final, o capítulo sobre conservação radical explora várias soluções anticapitalistas para a crise de extinção, baseadas em justiça social e ambiental.

O espectro da extinção assombra a imaginação popular de hoje. A cultura contemporânea está cheia de representações de zumbis, pragas e outras representações espetaculares da catástrofe ambiental. Para os que habitam as nações ricas do Norte Global, tais representações são fantasmas de um mundo terrível à espreita. Mas para bilhões de pessoas em todo o mundo, que Ranajit Guha e Juan Martinez-Alier chamam de “pessoas dos ecossistemas”, cuja sorte está intimamente imbricada com a fauna e flora do planeta, a questão da extinção está diretamente relacionada com sua própria sobrevivência presente e futura.

A carnificina com um elefante como Satao pode enriquecer alguns gatunos, mas ela empobrece dramaticamente o ecossistema que habitamos. Só estamos começando a compreender o impacto da liquidação da grande vida selvagem, como os elefantes nos seus habitats. Mas está ficando claro que estes buracos abertos na rede da vida têm efeito dramático, em cascata. À medida em que milhões de espécies são descartadas a biodiversidade que sustenta o sistema planetário, nós mesmos e os ancestrais que comecemos entra em risco. Esta catástrofe não pode ser reduzida – muito menos revertida – sob a atual lógica capitalista. Enfrentamos uma escolha clara: transformação política radical ou extinção em massa cada vez mais profunda.

*Professor de Inglês em Cuny, Nova York. Autor de Mongrel Nation e The Routledge Concise History of Twentieth-Century British Literature, e do as well as a short story in the anthology Staten Island Noir.

Fonte: Outras Palavras. Tradução de Antonio Martins