Serra proclama os Estados Unidos do Brasil, que não reconhecemos

Caía a noite sobre a breve história da democracia no Brasil, como um manto pesado e ardiloso, neste 31 de agosto de 2016, e o Itamaraty já emitia declarações contra alguns dos nossos principais amigos e parceiros latino-americanos, que ousaram condenar o golpe desferido contra o país. O resultado do dia histórico é que estão proclamados, embora não reconhecidos, os Estados Unidos do Brasil, uma ode à "República Velha" e à “República das Bananas“.

Por Moara Crivelente, especial para o Vermelho

Michel Temer e Serra recebem o chanceler estadunidense John Kerry - Foto: Agência Brasil

As notas do Itamaraty, emitidas pouco após as reações assombradas da Bolívia, da Venezuela, do Equador e de Cuba, insistiam na tentativa de legitimar a farsa de um processo político-jurídico mal construído. Sabemos que não foi relevante, para efeitos da ruptura democrática, o seu conteúdo. As falácias da sua legitimação concentram-se apenas na forma – como lembrou a presidenta Dilma Rousseff – e insultaram a Constituição, a democracia e o povo. Foi imposto, ao fim e ao cabo, o retorno das eleições indiretas, pelos arautos da corrupção entrincheirados no Congresso.

Nas duas notas emitidas às oito da noite, o Itamaraty repetiu termos de outras emitidas após a suspensão da presidenta Dilma Rousseff de seu cargo, em maio, e “repudiou” o posicionamento do governo venezuelano, que no dia do malfadado impeachment havia chamado as coisas pelo nome e condenado o golpe. A Venezuela convocou seu embaixador no Brasil para consultas, o que significa um contundente protesto. O Brasil do dia zero pós-golpe (p.g.), no arrastado funeral da sua política externa solidária e altiva, convocou seu embaixador na Venezuela. Está consumada, assim, a postura que Serra pretende assumir pelo Brasil na Nossa América.

Além da nota exclusiva contra a Venezuela – que está na mira da direita reacionária brasileira solidária aos golpistas venezuelanos e que foi alvo da Chancelaria interina na campanha contra a transferência da Presidência pro tempore do Mercosul, em que se tentou comprar a cumplicidade do Uruguai – o Itamaraty nos ofende com uma nota condenatória contra a Bolívia, o Equador e Cuba. Os três manifestaram-se também em repúdio ao golpe imediatamente após o seu desfecho. Repete-se a ladainha da legalidade do processo e da “incompreensão” dos nossos vizinhos sobre os procedimentos brasileiros. Enganam-se. Em espanhol, golpe também é golpe.

A entrega nacional no plano do golpe

Não é surpresa que, no mesmo dia, os Estados Unidos de fato tenham assumido seu papel na trama. Em sua conhecida tática de promover ou apoiar – direta ou indiretamente, dependendo das circunstâncias – os diversos golpes e tentativas de golpe, o Departamento de Estado dos EUA assegurou seus aliados brasileiros que as relações bilaterais estão mantidas. O porta-voz John Kirby afirmou: “Nós cooperamos com o Brasil para tratar de questões de interesse mútuo nos desafios globais mais prementes do século 21. Pretendemos continuar esta colaboração muito essencial”.

A lista estende-se, sabemos, desde a Petrobras até outros possíveis escambos à vista de Serra e da trupe golpista para entregar o país ao mercado estadunidense ou europeu. No transcurso do golpe, em 5 de agosto, o chanceler estadunidense John Kerry estava no Brasil, quando anunciou planos de aprofundamento das parcerias que teriam sido desaceleradas nos últimos anos por “questões políticas”.

Kerry falou em incrementar o mercado bilateral, já que os EUA enxergam no Brasil 200 milhões de consumidores e, no passado, nossas “parcerias” acabaram por condenar o país ao atraso estrutural. Caso o golpe não fosse aprovado, pode-se especular, a Quarta Frota da Marinha estadunidense no Atlântico Sul ou as duas bases militares extras anunciadas na Argentina de Mauricio Macri, inclusive uma próxima à tríplice fronteira e ao Aquífero Guarani, poderiam enviar-nos recados.


Não fica velha a piada: Serra, em 2012, confunde o nome do Brasil tratando o país pelo nome que tinha na "República Velha", oligárquica.

Como se sabe, o então senador José Serra elaborou o Projeto de Lei 131, de 2015, que revoga a obrigatoriedade de participação mínima da Petrobras, estabelecida em Lei de 2010, na exploração do Pré-Sal. A estatal brasileira, repetimos, é um dos principais alvos da farsa. No ápice do processo golpista, em 26 de agosto, Serra recebeu a cúpula da Shell, a anglo-holandesa escalada como uma das seis maiores petrolíferas do mundo e a maior multinacional em termos de receita em 2013, segundo a Fortune 500.

Segundo o WikiLeaks, o Pré-Sal está na fatura do golpe desde que Serra prometeu à estadunidense Chevron, outra das maiores petrolíferas do mundo, o fim da participação obrigatória da Petrobras – uma das táticas de afirmação soberana do Brasil e uma das fontes de recursos para os principais setores sociais.

Na sessão de admissibilidade do impeachment no Senado, em 12 de maio, Serra começou citando o ex-presidente estadunidense John Kennedy – em sua própria citação incorreta de Dante Alighieri, erro repetido pelo então senador – quando disse que os que se mantêm neutros diante de uma crise moral têm um lugar reservado no inferno. Serra parabenizava e buscava tranquilizar os senadores: “ninguém desta Casa, senhor presidente, vai ficar no lugar mais escuro do inferno”, apostou.

Terão, porém, seu lugar reservado na vergonha da História, inclusive com discursos como o de Serra, que se adjudicou o papel de mediador entre a vontade dos 54,5 milhões de brasileiros e brasileiras que votaram na presidenta Dilma e a “moralidade da política” – justo ele, que é acusado de receber R$ 23 milhões em caixa dois da Odebrecht. A ladainha não poderia ser mais fajuta. Já os “indícios dos crimes de responsabilidade” só entram depois em sua fala. Não chegaram ainda à realidade, porém, pois o golpe não precisa disso para derrubar ninguém.

Mas esses são fatos à vista de todos e todas, assim como a decadência o Itamaraty, chefiado por alguém sem qualquer experiência ou postura diplomática, um mero mediador no plano de entrega do país. Resta-nos a resistência a tamanha vergonha nacional, a tamanha agressão contra a democracia e o povo, contra o Brasil. Contaremos com a solidariedade internacional na defesa da História.