Jurista diz que cumprir ritos não legitima impeachment: “É golpe”

O jurista e professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, afirmou que a sessão do processo de impeachment, desta segunda-feira (29), com a presença da presidenta eleita Dilma Rousseff, demonstrou que “esse julgamento tem muito pouco de jurídico” e que o fato dela comparecer não legitima o processo.

Por Dayane Santos

Marcelo Cattoni professor da UFMG - Reprodução

“Esse processo é uma tentativa de usar a Constituição contra a própria Constituição sob o argumento de impeachment, mas na verdade é um golpe de Estado parlamentar que afasta uma presidente da República eleita por mais de 54 milhões de votos em razão de interesse políticos”, disse o jurista.

“Apelar para o suposto cumprimento de rito, não condiz com a verdade porque até do ponto de vista processual é possível criticar. E, além disso, as acusações apontadas contra Dilma não são crime. E se for impedida será por força políticas que não querem que ela continue exercendo o seu mandato”, enfatizou o jurista, que é um dos autores do livro O Impeachment e o Supremo Tribunal Federal, juntamente com Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia e Diogo Bacha e Silva.

O comentário do professor refere-se às perguntas e discursos feitos por senadores que apoiam o impeachment durante a sessão desta segunda. Como as provas do processo não sustentam a tese de crime de responsabilidade, os golpistas utilizaram o tempo que tinham para fazer indagações de que a presença da presidenta eleita na sessão legitimava o processo e, portanto, não era golpe.

De acordo com o professor, há uma tentativa de legitimação do processo com o apelo a um suposto cumprimento dos ritos processuais, mas que, no fundo, servem de pano de fundo para esconder a falta de provas, pois “não há caracterização, nem em tese, de crime de responsabilidade” e, portanto, “o processo inteiro é nulo”.

“Não é verdade que o rito processual está sendo devidamente cumprido, pois falta uma condição indispensável para a instauração do próprio processo: o crime. Acusam a presidente de uma conduta que, por hipótese seria crime, mas se falta isso o processo também está maculado. Trata-se de uma violação básica do direito”, explica.

“Dilma esteve no julgamento para dizer exatamente isso: não há crime de responsabilidade. Ela não estava legitimando nada. Estava na verdade apelando aos senadores para reconhecerem que aquele processo era um erro”, disse.

Para Cattoni, a ida de presidenta eleita ao Senado também cumpriu um papel histórico para o Brasil. “No mínimo é necessário o registro para a história. Isso é fundamental porque nós vamos ter que prestar contas às gerações futuras de tudo que foi feito no Brasil.”

STF

O professor da UFMG publicou recentemente um artigo em que afirma que o Supremo Tribunal Federal deveria anular o processo de impeachment, pois não há crime de responsabilidade que possa fundamentar o afastamento de uma presidenta legitimamente eleita.

“Primeiro, não se pode impedir um presidente pelo ‘conjunto da obra’. Isso é um absurdo! Não existe. Segundo, as acusações de crime de responsabilidade nas chamadas ‘pedaladas fiscais’ e dos decretos não se configuram. Dizer que os decretos teriam violado a Lei Orçamentária é outro absurdo, pois só tem como saber que houve violação no final do exercício financeiro. E se o próprio Congresso revê as metas e convalida os atos, não faz sentindo dizer que ali poderia ter havido uma violação”, pontuou.

Cattoni apontou outra violação grosseira do relatório do senador tucano Antonio Anastasia (PSDB-MG). Segundo ele, diferentemente do que o senador Anastasia pensa, “o exercício financeiro não é trimestral, é anual”, portanto, não se pode analisar as contas como ele fez para justificar o pedido de impeachment.

Sobre a questão do Plano Safra, o jurista classifica como “absurda” a tentativa de responsabilizar a presidenta Dilma pela gestão. “A gestão do banco não é feita diretamente pela presidente da República. Então como podem atribuir responsabilidade à presidente por um crime que ela não cometeu? E ainda que tivesse cometido tal medida não configura operação de crédito, até porque operação de crédito envolve transferência de propriedade. Das duas uma: ou as acusações não são crimes ou elas não restam suficientemente comprovadas”, enfatiza.

E acrescenta: “Isso demonstra que se Dilma for impedida será mais por uma reação política à linha de governo que ela promoveu e a sua atuação do que com base em argumentos jurídicos. Os argumentos são muito frágeis”, disse.

Questionado sobre a aplicação da teoria do domínio do fato que os golpistas usam para fraudar o impeachment, o jurista afirma que o ordenamento jurídico brasileiro não dá condições para a aplicação de tal fundamento.

Ele explica: “Essa tese do domínio do fato foi construída num outro contexto histórico para resolver o processo de responsabilização de autoridades alemãs no período posterior à Segunda Guerra Mundial. A tese se baseia na ideia de que o soldado que atirou não é responsável pelo tiro que deu porque estava cumprindo ordens”.

Segundo ele, aplicar essa teoria para justificar o impeachment “é absurdo”, porque a própria Constituição brasileira diferencia a forma de julgamento das contas do presidente da República, das contas da administração direta ou indireta.

“Basta lembrar que o Tribunal de Contas emite um parecer técnico, mas quem julga é o Congresso no caso das contas do presidente. E incrivelmente não há nenhuma conta da presidente Dilma reprovada pelo Congresso em 2015. Nem sequer foram analisadas”, lembrou.

“De acordo com a Constituição, o Congresso deve julgar por uma sessão conjunta entre Câmara e Senado. Quem julga as contas da administração direta ou indireta é o tribunal de contas. Existe uma diferença de competência quanto ao julgamento de contas da administração pública, portanto, não se pode falar em tese de domínio do fato. A presidente da República não pode ser responsável por descumprimento de um ente da administração indireta ou direta”, frisou.

Contranarrativa midiática

O jurista fez questão de salientar o papel da mídia alternativa na denúncia do golpe. “Vejo um papel importante da imprensa, sobretudo da imprensa alternativa, já que os grandes meios de comunicação têm procurado legitimar o que tem acontecido. É necessário construir a contranarrativa, mostrando exatamente que o que tem ocorrido é uma fraude à Constituição.”