Dilma Rousseff e Soledad Barrett 

Eu iria escrever somente para saudar a volta do espetáculo "Soledad – a terra é fogo sob nossos pés" ao Teatro Hermilo. Mas a realidade política impõe uma correção, porque entramos no processo do impeachment contra a valorosa presidenta do Brasil.

Por Urariano Mota*

Dilma Rousseff no Recife

Suspendemos breve a intenção e continuamos no mesmo terreno. Os elos da corrente destes dias falam: impeachment, Dilma, ditadura, anistia, Soledad no teatro e o Recife. Entendam. Quando a brava presidenta amargou a prisão, todas as vezes em que as companheiras de cela voltavam da tortura, ela as recebia com os braços abertos, amparava, dava às sobreviventes sopinhas de colher na boca, e punha na vitrolinha de pilhas uma canção. Imaginem qual. As ex-presas políticas contam que Dilma sempre pedia a elas que prestassem muita atenção à letra de Para um amor no Recife, de Paulinho da Viola.

Paulinho cantava na cadeia “a razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você”. Essa é uma canção que só fez melhorar ao longo de todos estes anos.

Então lembro mais perto o que testemunhei. Na última vez em que Dilma veio ao Recife na campanha para a presidência, que agora lhe tomam num golpe e traição, pude ver que tamanho era o amor do povo a ela no comício, que Dilma poderia falar qualquer coisa. Poderia cantar “o cravo brigou com a rosa”, e todos aplaudiriam. Poderia ficar diante do microfone repetindo “sapo-sapo-sapo-sapo”, que a massa iria ao delírio. Naquela noite, o Recife lhe respondia na língua do imbu, mangaba, graviola, cajá, azeitona, pitomba, abacaxi, goiaba, maracujá, manga, cana doce, numa fala de salada do Nordeste. Mistura de tudo, porque o povo mais misturado que já vi numa eleição estava presente.

Esse golpe com aparências de legalidade – “cumpre-se o rito”, falam os juristas cujo valor é a forma da lei – em que derrubam da presidência a presa que se levantou da noite de Médici, nos leva a Soledad no Recife em 1973. Então, a guerreira que tentei reconstruir, a paixão deste narrador por Soledad, somente foi possível porque houve dezenas de mulheres guerreiras que eu conheci na vida dura, de belíssimas mulheres guerreiras. Nelas, a beleza vinha mais do que faziam do que das formas físicas. Essas mulheres apontavam o futuro. Eram as musas.

No livro Soledad no Recife escrevi: um dia me foi dito que eu estava convocado para escrever um outro livro no mesmo caminho do anterior, Os Corações Futuristas. Eu, ateu confesso, me senti abalado pelo que a pessoa me dizia. Direi apenas que, para meus ouvidos incrédulos, ela me falou o absurdo de que almas e mais almas socialistas clamavam por justiça. Almas de militantes assassinados exigiam que eu escrevesse o próximo livro, sob pena de que eu não teria sossego enquanto não o escrevesse.

Esta semana, astrônomos descobriram que existe um planeta habitável em torno da estrela Centauri, e que para chegar até ele viajaríamos no mínimo 20 anos. Mas nós não podemos esperar tanto tempo para chegar a um lugar habitável no Brasil, nestes dias. Aqui no Recife, nos dias 1º e 2. de setembro, às 20 horas, Soledad volta ao teatro Hermilo. A extraordinária atriz Hilda Torres, que faz a ressurreição de Soledad Barrett no palco, avisa: haverá bolo e lembrança dos 37 anos da anistia. E assim se ligam Dilma, impeachment, Soledad e o Recife.