Dilma fez discurso “irretocável” e “corajoso”, diz historiadora

 Para a historiadora Dulce Pandolfi, o discurso da presidenta Dilma Rousseff, nesta segunda (29), no Senado, foi “irretocável” e “corajoso” e deverá entrar para a história. Assim como a carta de Getúlio Vargas, marcará um tempo. Segundo ela, o impeachment é contra um projeto que incomodou setores da elite. E, se consolidado, será, sim, um golpe. Vítima da ditadura militar – assim como Dilma –, Dulce avaliou esse momento de ruptura democrática: “Para toda essa geração, é muito duro”.

Dulce Pandolfi - Alice Melo

Por Joana Rozowykwiat 

“Foi um discurso histórico, de uma estadista, que vai marcar a história desse país, independente do resultado [do impeachment]. No Senado, pode não ter tido impacto, porque este é um jogo de cartas marcadas. Mas, para a nação, a população brasileira e, sobretudo, para a história, é um discurso que marcará uma época”, defendeu, em entrevista ao Portal Vermelho, na tarde desta segunda (29), por telefone.

Professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, Dulce analisou que a presidenta falou com classe e dignidade e “não conciliou com nada”. De acordo com ela, além de resgatar sua biografia e mencionar a disputa de projeto em curso, a presidenta também utilizou argumentos técnicos, dando substância à sua defesa.

“Ela está muito bem aparelhada para rebater as críticas, nesse processo absurdo, em que está comprovado que esse impeachment, se consolidado, será um golpe de Estado. Mas não quer dizer que [a fala dela] vá ter impacto naquele grupo de pessoas, que está impermeabilizado”, opinou.

Para Dulce, o que está em jogo é uma disputa de projetos. “Esse impeachment não é contra Dilma. Poderia ser Lula, poderia ser José ou qualquer outra pessoa. É um impeachment contra um projeto político. O que há é um embate em torno de percepções e posicionamentos sobre como se deve conduzir a história desse país”, disse.

Na sua avaliação, as transformações ocorridas nesses últimos 13 anos – no sentido da inclusão social – incomodaram profundamente setores da elite brasileira. E, se em um primeiro momento, esses segmentos aceitaram o projeto levado adiante pelo PT, gradativamente, a partir do momento em que essas reformas foram se consolidando, isso se tornou “quase insuportável” para esses grupos.

E, diante de uma conjuntura mais frágil – com uma vitória apertada nas urnas e uma grande crise internacional -, a investida contra o governo de Dilma encontrou terreno fértil. “Isso deu munição para os que já vinham insatisfeitos há muito tempo tentarem retomar o curso da história tradicional do Brasil”, apontou.

Tradição elitista

“Nós, que estudamos história, sabemos que, independentemente das formas de governo e das diferentes fases, uma coisa que marcou nosso país foi um projeto elitista, um racismo disfarçado, um projeto que não levou em conta as profundas desigualdades sociais, que sempre dizia que era importante primeiro crescer o bolo para depois repartir”, completou.

Segundo ela, houve momentos de maior ou menor radicalização desse modelo de acentuada desigualdade social, que teve seu auge durante a ditadura militar. No ano passado, um estudo feito pelo pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Pedro Ferreira de Souza, mostrou que a acumulação de renda no topo da pirâmide deu um salto nos primeiros anos do regime militar.

Dulce defendeu que, embora tenham cometidos erros, os governos de Lula e Dilma, tentaram atuar em direção contrária, desagradando setores da elite, que agora agem para barrar tal processo.

“Nos últimos anos, assistimos a uma tentativa – com sucesso, embora que com muitas imperfeições – de tentar diminuir as desigualdades regionais e sociais, de dar para setores que nem são minorias, mas que eram tratados como tal – como mulheres, negros, homossexuais – um lugar diferenciado. E, em um Estado com resquícios fortes da escravidão, do latifúndio, isso foi se acumulando”, analisou, destacando que não há nenhum fatalismo na sua avaliação sobre a tradição brasileira. “Mas é uma situação difícil de ser rompida. E as condições do período recente não ajudaram muito para que esse processo continuasse se concretizando, como vinha sendo realizado”.

Disputa de narrativa continuará

Para a historiadora, a disputa de narrativa sobre o que de fato está acontecendo no país não se encerrará com o processo de impeachment. Mesmo que consolidado o afastamento da presidenta, o embate entre os que defendem que o país é vítima de um golpe e aqueles que encaram o impedimento como legítimo permanecerá.

“Se a gente fizer um paralelo com 1964, até hoje existe essa disputa de discursos. Para um grupo de pessoas, aquilo foi uma revolução, para o outro, foi a ditadura violenta e truculenta. Essa disputa não acaba agora”, afirmou.

A comparação com os anos de chumbo parte não só da historiadora, mas de quem vivenciou os horrores do regime militar. Dulce Pandolfi sensibilizou o país, em 2013, ao conceder um depoimento estarrecedor à Comissão Estadual da Verdade do Rio sobre as torturas que sofreu durante a ditadura.

“Derrota” para os defensores da democracia

E é com o pesar de quem já atravessou uma ruptura e lutou pela retomada da democracia brasileira que Dulce contou como é, para ela, acompanhar o atual momento político. “Para essa geração toda é muito duro. É um momento muito difícil. Foi uma construção longa e penosa. A democracia foi restabelecida a duras penas”, disse. “É muito difícil”, completou.

Questionada sobre o que espera para o próximo período, ela reiterou que acredita muito no processo político – “a política e a democracia não são um jogo de cartas marcadas” –, mas previu que, no curto prazo, vai haver um grande retrocesso.

“Nunca participei de nenhum cargo no governo, mas me sentia representada. E nós estamos sofrendo uma derrota enorme. E, mais grave, acho que houve uma desconstrução desse processo todo, dessa imagem”, lamentou, antevendo tempos difíceis.

“Sou parte da geração da Dilma e, para toda essa geração, é muito doloroso. Foram 21 anos de regime militar, e a fase democrática foi avançando, mas veio aos tropeços. Acho muito complicado, não sei exatamente o que vai aconteceu, mas há essa dificuldade, de uma desconstrução forte que eles conseguiram fazer”.

Para ela, a forma como o impeachment foi sendo construído – amparado por setores da mídia e do judiciário e contando com um Congresso retrógrado – torna mais complicado o cenário para a recuperação de um projeto popular. “É um processo golpista muito bem articulado”, resumiu.

A historiadora, contudo, prevê resistência. “Vai ser um embate, muita resistência. E a ditadura, no fim, acabou sendo derrubada, né? Por um somatório de forças, o movimento de resistência, a própria cisão das elites, uma série de fatores contribuíram para isso”, comparou.

Avanços alimentam resistência

Defendendo que democracia só se constrói com mais democracia, ela lamentou que o país até hoje não tenha conseguido levar adiante uma reforma política, por exemplo. Mas avaliou que o Brasil conquistou avanços, “fincou algumas estacas”, que lhe fazem confiar na superação das dificuldades.

“Acho que vai ser muito difícil para os que apostam no processo democrático. Mas algumas coisas ficam. O Brasil hoje é muito melhor que há 40 anos”, disse, citando como exemplo “as Jéssicas da vida”, uma referência à personagem do filme Que Horas Ela Volta, retrato da população que ascendeu nos últimos anos.

“A gente vai ter retrocessos, mas há uma consciência sobre direitos, uma participação, que não vão conseguir destruir. Mas é um processo muito difícil. Houve a desconstrução de todo um projeto, mas como ele ficou algumas estacas, eu confio nelas”, opinou.

Como exemplo, mencionou a reação ao impeachment na área da cultura e dentro das universidades. “É uma luta, claro que tem pessoas do outro lado também, mas é impressionante a resistência que se formou”, resgatou, citando ainda a mídia internacional e intelectuais estrangeiros que têm denunciado o que ocorre no Brasil.