José Goulão: A pedofilia como arma de guerra

A foto e o vídeo de Omron, garoto de cinco anos da cidade de Alepo (Síria), têm corrido mundo e enchido as primeiras páginas e espaços nobres da comunicação social. Por que razão o drama de Omron mereceu destaque especial entre a torrente de episódios semelhantes?

Por José Goulão, no jornal AbrilAbril

Mahmoud Raslan

As crianças são as vítimas indefesas de qualquer guerra. Mais do que qualquer outro setor das populações, e juntamente com os idosos, estão à mercê de todas as frações em luta, sejam os bons ou os maus, os ditadores e pretensos salvadores, os terroristas e os ditos guerreiros humanitários, os bárbaros e os civilizados, os opressores e os que tomam para si as vocações libertadoras. As crianças não têm escolha.

Nas guerras de hoje – e muitas elas são – vem-se agudizando a tendência para explorar a maior debilidade das crianças em áreas de conflito como exemplos da maldade de uma das partes em guerra, com o objetivo óbvio de enaltecer a bondade e a virtude de quem a combate, transformando os maus em péssimos e os bons numa espécie de santos redentores. Usando tal expediente, em associação com a comunicação social amestrada, os praticantes dessas tendências exploram a vulnerabilidade infantil como em qualquer prática pedófila, neste caso ao serviço da propaganda belicista e da guerra. De um tão sádico e doentio comportamento, que se alimenta da covarde exploração dos sentimentos e das emoções mais naturais de multidões indefesas – os exércitos de consumidores de comunicação social –, não se terá lembrado o próprio Göbbels.

Vem o intróito a propósito da foto e do vídeo do pequeno Omron, garoto de cinco anos da cidade de Alepo, na Síria, que têm corrido mundo e enchido as primeiras páginas e espaços nobres da comunicação social monopolista, tão plural e civilizada. É usada até à exaustão para apontar a dedo as maldades incuráveis do regime do terrível Assad e dos malvados protetores, os russos, assim legitimando e abençoando as guerras contra eles feitas pelos exércitos libertadores, ainda que acompanhados, como neste caso específico, pelos tão excomungados terroristas islâmicos.

Como libelo contra a guerra, contra todas as guerras, o drama do pequeno Omron é um entre os de dezenas de milhares de crianças na Síria, em Gaza e na Palestina em geral, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, no Iêmen, na Ucrânia, no Mali, na Nigéria – citando os conflitos atuais e mais recentes –, feridas ou mortas por toda a espécie de grupos em conflito. Não mereceram tão midiático destaque, mas nem por isso deixaram de existir – os "danos colaterais" em escolas e creches praticados por aviões da Otan durante a "libertação" da Líbia na companhia dos terroristas islâmicos; ou os bombardeios de escolas e hospitais efetuados igualmente pela Otan no Afeganistão, e pelo exército de Israel em Gaza. Nesta matéria, como em tantas outras, os bons e os maus confundem-se mediante uma tenebrosa propriedade comutativa própria da guerra.

Qualquer jornalista com uma réstia de brio profissional que sobreviva à voz de comando dos donos poderia investigar as razões pelas quais o drama do pequeno Omron mereceu destaque especial entre a torrente de episódios semelhantes. Bastar-lhe-iam um pouco de curiosidade profissional e algumas horas de trabalho.

O que aprenderia então esse jornalista?

Que, na altura em que foi tirada a fotografia e captado o vídeo, a criança não estava a ser socorrida por profissionais de saúde mas sim nas mãos de uma dita "organização não-governamental", a White Helmets (escudos brancos), uma das muitas entidades por esse mundo fora, neste caso na ocupada cidade de Alepo, que servem de cobertura a atividades da CIA, dos serviços britânicos de espionagem MI6 e dos seus congéneres holandeses IDB.

Que a White Helmets é um braço de uma empresa chamada Innovative Comunications & Strategies (InCoStrad), com escritórios em Washington e Istambul, uma agência de comunicação e propaganda do MI6 e da Otan criada para o conflito sírio. Esta empresa é autora, por exemplo, dos logotipos da maior parte dos bandos de mercenários e grupos terroristas em ação na Síria, dos "moderados" ao próprio Estado Islâmico, ou Daesh, ou Isis.

Que o oportuno autor do instantâneo foi Mahmoud Raslan (Rslan, grafia usada na sua página de Facebook), um jihadista simpatizante do Estado Islâmico, membro do grupo terrorista "moderado" Harakat Nour Din al-Zenki, protegido pela Turquia e que foi um dos contemplados pela CIA com armas antitanque BGM-71.

Que o Mahmoud Raslan e o seu grupo são realmente amigos de crianças. Há pouco mais de um mês, em 16 de Julho, o "fotógrafo" e membros do seu grupo terrorista promoveram uma cerimónia de sangue na qual foi decapitado na caixa traseira de uma camioneta vermelha, em pequenos e sincopados golpes de arma branca, o garoto palestiniano Abdullah Tayseer al-Issa, de 12 anos. Fora "julgado" e "condenado" pelos "moderados" de Raslan por pertencer supostamente às "Brigadas Al-Quds". A cabeça ensanguentada da criança foi depois exibida efusivamente, como histórico troféu, cena documentada em vídeos que qualquer pessoa – nem precisa de ser jornalista – descobrirá em rede, se tiver estômago para tal.

É possível saber ainda que o terrorista/"fotógrafo" tem vínculo profissional a um denominado Aleppo Media Center, cuja página web abre no site do jornal Times of Israel.

Resta notar que o caso de Omron é usado como propaganda de guerra a propósito da situação em Alepo, a segunda mais importante cidade síria, onde os mercenários invasores, ditos "rebeldes", sentem estar a perder o poder devido ao longo cerco imposto pelas tropas sírias, com apoio aéreo russo. O episódio Omron coincide com um "aviso" lançado pelo Pentágono de que poderá atacar aviões russos se puserem em causa o seu pessoal no terreno – afinal há tropas norte-americanas na Síria – e depois de ter fracassado a armadilha da abertura de supostos "corredores humanitários" mediante os quais a "coligação ocidental" pretendia romper o cerco de Alepo e dar fuga aos terroristas.

Ocupando Alepo estão os "moderados" criados pela senhora Hillary Clinton & Cia e, sobretudo, os verdadeiros senhores da guerra na Síria, a al-Qaida e o Daesh. Quem os protege, tentando evitar o regresso à legitimidade institucional, são os interesses igualmente defensores do nosso "civilizado modo de vida" e que, para tal, não hesitam em recorrer à mais cobarde pedofilia como arma de propaganda e de guerra.