Um escroque anunciou: "Não vai ter mais ponta-esquerda!"

Qual seria o dia exato em que as músicas deixaram de ser desapressadas? Quando será que a poesia foi descontinuada? Que as orquestras musicais foram demitidas?

Por Rafael Castilho*, em seu blog

Bozó Lance Wladimir Rivellino

Como teria sido o dia em que as pessoas se olharam no espelho e começaram a sentir pavor em serem vistas como bregas e cafonas? Quando decidiram escolher uma grife diferente para se vestirem rigorosamente iguais? Deve ter sido num dia feio…

Quando será que as pessoas passaram a ter tanto medo de falar de amor? De se entregarem à um amor verdadeiro? Quando será que a arrogância virou epidemia?

Qual teria sido o verdadeiro estopim deste ciclo de intolerância? Faz tempo isso ou é coisa recente?

Quando foi que decidiram acabar com o ponta-esquerda no futebol? Quem será o escroque que entrou de terno e gravata em algum vestiário do mundo e anunciou: "Não tem mais ponta-esquerda". Depois acabaram também com o ponta-direita. Agora não tem nem centroavante. Nem pernil pra nois na porta do estádio. Nem drible. Nem olé. Nem clássico com duas torcidas. Nem fogos. Nem gozação. Quem será que acabou com tudo isso? Será que esse cara algum dia foi bem amado?

Quem será que começou a derrubar os pés de jabuticaba? Aquela fruta que ninguém te cobrava; te dava de presente. Que você catava no chão as mais bonitas e docinhas? Quem descascou as mexiricas e colocou na embalagem plástica? E as goiabas, onde foram parar? E os bichinhos da goiaba? A gente comia por acaso e nossa vó logo dizia que fazia bem pra vista.

E as histórias das nossas avós, quando terminaram? Já posso fazer careta na frente do espelho que não bate um vento? Já posso virar o chinelo do avesso? Abrir guarda-chuvas em casa? Onde foi parar a Cuca? Cuidado com a Cuca. Cadê a Cuca? Foi embora com o homem do saco?

Quando foi que as construções se tornaram tão feias? Será um acaso elas serem todas espelhadas? Ou as pessoas precisam se ver mais no espelho ao invés de olhar para próximo e para as coisas do mundo?

Quando foi que parou de cair aquelas tempestades de verão? Daquelas que não davam enchente. Eram apenas pancadas despretensiosas que se convertiam depois num lindo arco-íris. Eram chuvaradas pacíficas e românticas. Não tem mais. Pelo menos em São Paulo. Agora é tudo ou nada. Ou é seca ou é catástrofe. As pessoas também ficaram assim. Ou são secas e indiferentes, ou absolutamente vulneráveis, dramáticas, caóticas e catastróficas.

Quando caíram de moda os passeios de mãos dadas? Quando esses passeios se tornaram tão hostis. Você caminha pela calçada e escapa do buraco, encostou perto de um portão e corre um cão raivoso pra latir em defesa do seu território, para alguns minutos pra dar um beijo e chega o ladrão para levar o celular, canta alto uma canção de amor e uma dona infeliz ou um tiozinho recalcado liga para o 190 ou para o PSIU. Encosta pra tomar uma cerveja e passa uma moto gritando histérica o ruído triste da insegurança e infelicidade do motociclista.

Quando foi que os motociclistas ficaram tão raivosos? Antes eles eram beatiniks meio romantizados. Agora são raivosos, vivem com ódio. Outros se converteram naqueles tiozões reaças que vestem roupa de caveira e escrevem TEXTO EM CAIXA ALTA NO UOL PRA DEFENDER A ROTA E FALAR CONTRA OS DIREITOS HUMANOS QUE NÃO PROTEGEM OS HUMANOS DIREITOS E A ESMOLA DO GOVERNO QUE SUSTENTA VAGABUNDO QUE MORREU POUCO NO CARANDIRU. Os roqueiros também. Quando o rock ficou tão coxinha, tão perfumado, tão nariz em pé?

Desde quando a esquerda deixou de ser acolhedora? Será que foi sempre assim? É uma cagação de regra generalizada. O fragmento do fragmento do fragmento sobre a questão da subquestão. As vezes eu não entendo porra nenhuma. Me faltam recursos pra acompanhar essa galera tão exigente. Sem zueira. Sou muito burro pra entender. Dá trabalho. Tanto tempo discutindo muitas vezes tudo aquilo que absolutamente irrelevante pra quem tem que acordar cedo e defender o pão de cada dia.

Quando os jovens se tornaram tão pragmáticos? Quando deixaram de escolher a carreira dos sonhos? Quando passaram a preferir as planilhas aos seres humanos e os grandes projetos? Quando passaram a responder aos pais: “eu quero mesmo o que dá dinheiro”. Quando deixaram de se iludir com as utopias? A serem enganados gostosamente por algum sonho louco de liberdade? Ainda que não fosse possível, quando deixaram de querer alguém que viva com você na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapé?

Quando foi que os seres humanos começaram a precisar de tanto pra se sentirem felizes? E nunca estão, o que é pior. Desde quando as festas de casamento passaram a custar o preço de um apartamento? Nem sabia que a festa custava mais caro que a de lua de mel. Quando passamos a depender tanto das coisas? A sentir vergonha de justamente aquilo que nos torna humanos? Cadê os ovos fritos com gema mole? Onde foram parar os vestidos caseiros? Os lenços na cabeça? Cadê o joelho ralado das crianças? A partir de que minuto começamos a ficar tão atrasados, correndo contra o tempo.

Quem será que decidiu nos recivilizar? Que nos convenceu que estávamos fazendo tudo errado? Quem decidiu que deveríamos começar de novo de outro jeito? Do jeito mais difícil e menos gostoso pra nós mesmos. Que o que era bom agora não é mais bom. Quem nos obrigou a sair correndo atrás?

Quem roubou o nosso tempo pra viver feliz, dedicando mais tempo para estar ao lado das pessoas que mais amamos na vida? Comendo macarrão com frango no domingo em paz, sem pressa de partir. Quem tem essa capacidade de nos convencer. De construir consensos. De fazer a gente sentir saudade das coisas mais simples e verdadeiras.

Pronto. Quem nos fez sentir saudade de nós mesmos?