Luís Gustavo: A CPMF e a derrota da política no Brasil

Existem análises das mais diversas na mídia de conjuntura acerca da necessidade e importância da CPMF para a manutenção dos programas sociais e do precário sistema de saúde no país. Não me deterei nessa discussão, até mesmo porque foge ao meu domínio, bem

A Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira ou o chamado “Imposto do Cheque” foi uma medida emergencial adotada pelo ministro Adib Jatene com intuito de amenizar a situação de caos da saúde. Durante muitos anos, foi veementemente atacada pelas forças políticas e populares de esquerda. Nesse período de contestação, o imposto passou a ser denominado “contribuição” mais como um eufemismo do que como algo propriamente efetivo. Estamos carregados de exemplos de como a maquiagem lingüística é usada como subterfúgio para nossas proposições. Na verdade, tanto o eufemismo como o cinismo são nossas formas de exteriorizar o desprezo que temos pela democracia.


 


 


Como minha postura política e científica se pauta no marxismo, não costumo fazer rígidas distinções entre o “eu” e os “outros”. Assim, assumo que nosso agir social está impregnado por um sentimento autoritário. Lembro-me muito bem dos tempos de movimento estudantil, onde a chapas e grupos derrotados muitas vezes tentavam impugnar ou mesmo sabotar ações e rumos que tomavam os estudantes, estando eles equivocados ou não. Ao se tornarem hegemônicos, tentavam justamente reforçar o próprio sistema que ali os tinha colocado no poder. Lembro-me também de um amigo muito imprudente ao dirigir seu carro, que reclamava com veemência das barbeiragens dos motociclistas em conversas de bar com a chave do carro na cintura. O desrespeito ao público alimenta um sentimento irracional, de negação do próprio eu. Jogamos lixo no chão em que andamos, poluímos e desperdiçamos a água que bebemos, desrespeitamos a fila que nos organiza, roubamos o dinheiro que nos pertence e desprezamos a democracia que ainda buscamos. Há tantos exemplos que mesmo Sérgio Buarque de Holanda teria dificuldade para considerar alguns dos mais importantes.


 


 


Essa complicada lição serviu como ponto acalorado de discussões acerca do modus operandi dos movimentos comunistas, socialistas e libertários ao longo da história. Entre os próprios comunistas havia uma polêmica muito grande sobre como superar o capitalismo de forma efetiva; se pela via pacífica e institucional, ou pela “revolucionária”.  De fato a luta armada exigiu em muitos momentos de nossa história a vida de muitos de nossos melhores militantes. O momento histórico era propício à via guerreira. No entanto, alguns ainda insistem que é pelas armas que deve se dar a transformação social. Ora, se é somente essa a única saída, então o que vale é a força. Se o que vale é a força, então o mesmo olhar cai em contradição, pois é justamente pela força bélica que estamos subjugados pelo atual sistema. Vale lembrar que Werner Sombart afirmou que o capitalismo se edificou e esse perpetua sobre uma “economia de guerra”. Por mais contestadores que sejamos do modelo de gestão do capitalismo não é simplesmente passando por cima do mesmo como uma máquina de fazer história (ou de fazer o fim da história) que estaremos de fato alcançando o socialismo-comunismo. Mais do que materialmente dominante, a classe burguesa consegue ser espiritualmente dominante. O que quero dizer com isso é que por mais desigual e sanguinário que seja este sistema, a grande parte da sociedade ainda o legitima, mesmo que inconsciente. O principal desafio imposto aos comunistas é conjugar a barbárie do atual sistema dominante com a legalidade que o mesmo impôs através da sua legitimação imposta.


 


 


O grande erro que cometem as forças de esquerda ao ocupar um posto importante de poder é justamente de não saber como operar essa complicada equação. Há muitos exemplos históricos onde a esquerda se degenerou a tal ponto no poder, que passou a legitimar justamente aquilo contra o qual lutava. Foi engolida pela tecno-burocracia do Estado e dos processos de administração. Não percebeu que muito mais do que um instrumento de gestão do capitalismo, o Estado é um instrumento de gestão ideológica do mesmo. O objeto da ação política deixa de ser a elevação dos programas ideológicos de cada partido e passa a ser a mera conquista do poder.


 


 


É nesse sentido que as forças políticas envolvidas nesses embates negam cinicamente seus respectivos programas ideológicos. Afinal, que diferença representa a CPMF para um dito socialista e um dito liberal, ambos estando no governo? E ambos na oposição? Em verdade, já não há mais o viés tão nítido da luta de idéias, mas a pura disputa pela hegemonia.


 


 


O fato é que hoje já não sei mais distinguir o que é ou não é importante ou o que é ou não é falacioso. Creio que a maioria da sociedade também passa por este dilema. Diante de oposições conservadoras travestidas de porta-vozes do campo popular e metamorfoses ambulantes, fica nossa impressão de que somos um bando de ovelhas prontas para baixar a cabeça e pastar como um rebanho. Já ouvi dizer que “faz parte do jogo democrático” mudar de opinião como quem muda de roupa (ou de gravata). Pois bem, se afastar a sociedade ou setores da sociedade representados da institucionalidade “faz parte  do jogo democrático”, simplesmente não sei mais o que a literatura política e filosófica quis dizer com democracia.


 


 


Não pretendo apenas fazer uma reflexão teórica ou “objetiva” da conjuntura, mas me posicionar criticamente diante dela. A meu ver, a não prorrogação do tributo constituiu um ato autoritário e irracional das elites representadas pelos conservadores do DEM e do PSDB. Constitui-se num ato autoritário porque a grande maioria da população, que é pobre, se compõe de usuários do SUS, que era beneficiário direto da CPMF. Essa maioria não teve sequer o direito de ser ouvida, pois se isso acontecesse o resultado da votação não se daria como tal. De fato, os grupos representados por essas forças conservadoras e uma outra dita esquerda representada pelo PSOL, nem sequer imaginam ser atendidos por hospitais públicos precários ou esperar filas quilométricas provavelmente até a morte. Também se constitui um ato irracional, pois essas mesmas elites são as principais beneficiadas pelo crescente crescimento econômico e qualidade de vida das camadas populares. Todas as pesquisas sérias comprovam que o ciclo virtuoso econômico do país e dos municípios se deve em parte considerável aos programas de transferência de renda, também financiados pela CPMF. Como negar essa crescente inclusão econômico-social das classes menos favorecidas como fator de emergência de novos mercados consumidores?  Só me resta concluir que há um ranço preconceituoso da classe social mais abastada contra seus compatriotas ou crer na tese sociológica weberiana de que o valor das coisas mais aumenta quanto mais forem escassas. Afinal, de que adianta ser rico no meio de poucos pobres? A quem se iria ostentar?


 


 


O importante é que neste fatídico dia 12 de Dezembro de 2007, nós, povo brasileiro, fomos liquidados por nossa própria práxis. Nosso habitus tornou-se nosso principal algoz. A derrota institucional e moral do governo e da sociedade brasileira após a não prorrogação da CPMF me parecem muito mais graves do que uma vitória provisória das elites. Estamos legitimando o próprio sistema que nos agoniza. A derrota do governo imposta pela não prorrogação da CPMF tem muito mais a dizer acerca dos processos democráticos e político-institucionais do que uma mera análise de conjuntura. O essencial é reconhecer que no Brasil nosso comportamento social foi historicamente construído com base na desvalorização de tudo aquilo que é público, ou seja, na negação da própria democracia. Como dizia Sérgio Buarque de Holanda no clássico “Raízes do Brasil” a democracia “foi um grande mal entendido” entre nós.


 


 


Luís Gustavo Guerreiro Moreira,


do comitê municipal de Paraipaba