Juristas realizam ato de Resistência Constitucional contra o golpe

“Caso o impeachment da presidenta Dilma seja confirmado no Senado no final do mês, devemos, no início de setembro, a começar lutar contra o governo golpista como fizemos em abril de 1964, logo depois do golpe.” A convocação do advogado Marcelo Lavenère, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), deu o tom do Ato Público de Resistência Constitucional, realizado na noite desta quinta-feira (18) no auditório da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Ato de Resitência Constitucional - - Guilherme Santos/Sul2

Promovido por diferentes categorias que integram o movimento Carreiras Jurídicas pela Democracia, pelo coletivo Advogados e Advogadas pela Legalidade Democrática e pelo Sindicato dos Técnicos Tributários da Receita Estadual do RS (Afocefe), o encontro lotou o auditório da Economia, exigindo que cadeiras extras fossem improvisadas nos corredores. Participaram do ato advogados, juízes, procuradores, auditores, professores e estudantes de Direito, entre outras categorias.

A mesa do debate, coordenada pela procuradora do Estado Márcia Cadore, contou com a presença de Marcelo Lavenère, de Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, e do advogado Lenio Streck, membro da Comissão Permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), que denunciaram o que classificaram como “fascismo judicial” e o estado de exceção em curso no país, que ameaça direitos fundamentais e garantias da Constituição de 1988. Na abertura do encontro, o advogado Mário Madureira leu uma carta enviada pela presidenta Dilma Rousseff. Na carta, Dilma destaca a relevância no ato e volta a denunciar o golpe de Estado em curso no país. “Um golpe parlamentar, que ameaça interromper de forma injusta e ilegal o mandato que me foi conferido pela população brasileira”, afirma.

A procuradora Márcia Cadore abriu o debate fazendo uma convocação à “luta contra o retrocesso social que se avizinha”. “Estamos aqui hoje mostrando que não há um pensamento único em nossas carreiras. Esse é o início de um processo de resistência que será longo”, assinalou. “Primeiramente, Fora Temer!”, disse Lavenère no início de sua fala, levantando todo o auditório que repetiu o grito. “Essa é uma luta que vai além da defesa de um mandato. Estamos lutando pelo Estado Democrático de Direito, que se funda na Constituição de 1988. Nós, que estamos nesta luta, preferimos a companhia de Sobral Pinto e Raymundo Faoro à de Janaína Paschoal e Miguel Reale Junior. Preferimos Dallari e Celso Antonio a Gilmar Mendes. Preferimos estar ao lado de Darci Ribeiro e Paulo Freire do que de Mendoncinha e Alexandre Frota. Preferimos Leonardo Boff e Chico Mendes a Jair Bolsonaro e Ronaldo Caiado. Não nos juntamos à Fiesp, à UDR ou a uma OAB que rompeu com seus compromissos históricos”, destacou.

Lavenère criticou duramente a conduta jurídica do juiz Sérgio Moro, cujo comportamento, segundo ele, submeteu o Direito aos holofotes da mídia. “Nossa concepção de Poder Judiciário é a de um Judiciário austero e equilibrado e não a de um onde os juízes se tornam figuras pop-star, sempre sob os holofotes da mídia recebendo bola de ouro e outros prêmios o tempo todo. Não queremos um Judiciário frágil diante dos holofotes da mídia. É a Constituição, e não esses holofotes, que deve conduzir os nossos magistrados.” O advogado denunciou o que chamou de abusos e excessos da Operação Lava Jato, que “se tornou um instrumento para preparar o golpe com a leniência do Judiciário”. Lavenère também apontou o papel desempenhado pela mídia neste processo, “uma mídia capacho dos poderosos que propaga a mentira”.

“É hora de resistir”, acrescentou o ex-presidente da OAB. “Estamos sofrendo o pior ataque que a democracia brasileira já sofreu nos últimos 100 anos. É pior que o golpe de 64, me atrevo a dizer. Em 64, tínhamos um inimigo que tinha uma cara de inimigo bem definida e os militares, ao menos, não foram tão entreguistas como são agora Michel Temer, José Serra, Eliseu Padilha, Romero Jucá e outros que querem entregar todas as nossas riquezas às elites internacionais. Devemos lutar, em setembro de 2016, como começamos a lutar em abril de 64. Demorou 20 anos, mas derrubamos. Vamos lutar para derrubar esse governo golpista, denunciando a traição do PMDB, a leniência do Poder Judiciário e a manipulação midiática permanente que se instalou no país.”

A mídia e a base social do fascismo judicial

Autor do livro Golpismo e Autoritarismo na América Latina – Breve ensaio do Judiciário como instrumento de exceção, que deve ser lançado em breve, Pedro Estevam Serrano defendeu que o sistema de justiça tornou-se o novo agente de exceção na América Latina. Em sua nova obra, Serrano desenvolveu um trabalho de campo em países como Honduras e Paraguai que foram alvo, recentemente, de um novo tipo de golpe. “Em Honduras, o presidente foi acusado, preso e expulso do país, sem ter a mínima possibilidade de se defender. No Paraguai, os advogados de Fernando Lugo tiveram duas horas para preparar sua defesa no Congresso. No caso de uma multa de trânsito, um dos atos administrativos mais simples no Paraguai, o cidadão tem dez dias para fazer sua defesa e, depois, mais cinco para recorrer”, assinalou.

Para o professor da PUC-SP, o mesmo expediente adotado pelos Estados Unidos na base de Guantánamo está sendo utilizado para derrubar mandatos na América Latina. “Esse expediente é a fraude, é dar a aparência de legal para algo que é ilegal. Por meio desse expediente, descumprem a lei, aparentando cumpri-la. Há, por exemplo, todo um regramento que estabelece como se deve afogar um prisioneiro numa sessão de tortura, como se a presença dessas regras tornasse essa prática legal.” No século 21, acrescentou Serrano, passamos a ter medidas de exceção no interior da democracia. Ele lembrou uma passagem do jurista alemão Carl Schmitt, segundo a qual “o soberano de verdade é aquele que tem autoridade para estabelecer a exceção”. “No Brasil, quem tem esse poder hoje é o sistema de justiça”, defendeu.

A base social desse sistema de justiça, disse ainda Serrano, é uma ralé que não se define pela noção comum que se tem desse termo. “Essa ralé é formada, por exemplo, por aquelas pessoas que vão para a Avenida Paulista tirar fotos com a PM. Esse povo aclamou Moro, não como alguém que vai promover a justiça no Brasil, mas sim como alguém que vai trazer a ordem. Essa ralé é a base social que gera o fascismo judicial que temos hoje no Brasil. Ela é caracterizada por um deficit cognitivo e de informação que é alimentado diariamente pelos órgãos de mídia. A lógica da mídia substituiu a lógica do Direito dentro do tribunal. A função dessa mídia é justamente constituir a ralé que vai servir de base para o fascismo judicial”, afirmou.

O impeachment, concluiu, é só uma etapa desse processo. “O agente imediato do impeachment é o parlamento, mas quem criou as condições para que isso acontecesse foram a mídia e o Judiciário. Hoje, no Brasil, cerca de 40% de nossa população carcerária não têm direito de defesa. A nossa polícia mata, em um ano, o que a Guerra do Golfo matou em dez. A injustiça que a Dilma sofre é a mesma que o povo brasileiro mais pobre sofre todos os dias. A luta de resistência constitucional que estamos iniciando é uma luta antifascista.”

“Quem vai nos proteger do Morogate?”

Em sua fala, Lenio Streck sustentou que ainda há coisas a fazer juridicamente a respeito do processo do impeachment. Ele chamou a atenção para a necessidade de uma autocrítica sobre o atual estado das coisas no país. “Todos somos um pouco culpados. Nos descuidamos de tantas coisas, que deixamos passar. Nos descuidamos do Direito. O Brasil se tornou um grande império de carreiras jurídicas que pressionam o Estado permanentemente. Nós terceirizamos a tutela dos nossos direitos. Hoje, no momento em que o Parlamento se tornou um tribunal de exceção, vemos porque o Direito é importante na vida das pessoas. Agora, quando a gente mais precisa do Direito, ele se tornou moral e política. O juiz médio brasileiro trocou o Direito pela moral.”

“Quem vai nos proteger disso que criamos no sistema de justiça? Quem vai nos proteger do Morogate?” – indagou Streck, criticando a atuação do juiz que comanda a Operação Lava Jato. No dia 17 de março de 2016, apontou, “vimos uma série de ilegalidades cometidas por um juiz que acabaram por derrubar uma presidenta eleita com mais de 54 milhões de votos”. “O que os juristas fizeram naquele dia? Nada. Nenhum país do mundo admitiria que um juiz fizesse uma escuta da presidenta da República e divulgasse o conteúdo dessa escuta na mídia. O decano do STF, ao invés de reagir a isso, preferiu passar um pito na presidenta e no ex-presidente Lula. O ministro Marco Aurélio disse claramente: Moro deixou de lado a lei e isso está escancarado”.

O Senado, acrescentou Lenio Streck, transformou-se em um tribunal de exceção. “Hoje, um ladrão de galinha tem mais direito à defesa do que teve a presidenta da República. O que o STF dirá sobre isso?” – questionou, defendendo que ainda existem alguns caminhos jurídicos a percorrer. “Devemos nos inspirar no que Sobral Pinto fez quando defendeu Luis Carlos Prestes. Quando parecia que não havia mais nada a fazer, ele usou a lei de proteção aos animais. O ministro Ricardo Lewandowski já se referiu ao julgamento no Senado como um júri. Então vamos adotar as regras que valem para um júri. O Senado está violando vários preceitos fundamentais. Senadores como João Alberto e Magno Malta já disseram publicamente que se trata de um processo eminentemente político e que não importa se a Dilma cometeu crimes ou não. Eis aí um bom motivo para anular o julgamento no Senado. Em qualquer julgamento, quando um jurado diz que votou pela condenação de um réu, sabendo que ele é inocente, o porteiro do tribunal anula essa sentença.”

O impeachment, assinalou ainda Streck, é um processo jurídico-político, mas o político tem limites jurídicos. “Estão transformando o presidencialismo em um arremedo de parlamentarismo. Se isso não afronta a Constituição, o que mais afrontará? O Supremo vai ter que dizer a que veio. Nós precisamos judicializar ao limite a questão da falta de provas e do descumprimento de preceitos fundamentais. Além disso, não falamos ainda do princípio do in dubio pro reo. Qualquer ladrão de galinha tem direito a isso. E não devemos cair na armadilha de defender a convocação de uma Constituinte no atual cenário, pois isso pode nos levar a um haraquiri institucional, com a eleição de uma assembleia mais conservadora ainda. O que podemos fazer é lutar por um plebiscito para a realização de novas eleições, atendendo os requisitos constitucionais para isso”, defendeu.

Por fim, Streck lembrou uma passagem da mitologia grega que pode ajudar a explicar para a população o valor da Constituição. “É a história de Ulisses e sua tentativa de retornar à Ítaca. Ele ordenou aos seus homens que o amarrassem no mastro do navio e não obedecessem a nenhuma outra ordem que ele desse depois dessa. A sobrevivência dele dependia de que o amarrassem ao mastro e não o soltassem, mesmo que ele ordenasse isso depois. As correntes me salvarão do canto das sereias, disse Ulisses. Pois essas correntes representam o valor da Constituição. A Constituição existe para nos proteger do canto das sereias. Ela é contramajoritária. Foi feita para nos proteger de maiorias eventuais que podem nos destruir”.