Lideranças relembram papel decisivo de D.Paulo Arns contra a carestia 

A atuação do cardeal D. Paulo Evaristo Arns na resistência à ditadura no Brasil ajudou a consolidar o Movimento Contra a Carestia nos anos 70. Quando se comemora neste mês 50 anos que o religioso foi nomeado bispo, lideranças daquela fase relembram que D.Paulo abriu as portas da igreja católica para donas de casa e militantes sociais denunciarem, inicialmente, o alto custo de vida e, posteriormente, o caráter antidemocrático e repressivo do governo do período.

Por Railídia Carvalho

Ato do movimento contra a carestia na Sé. Reprimido pela ditadura - memorial da democracia

O movimento do custo de vida, que no fim dos setenta ficou conhecido como Movimento Contra a Carestia teve seu embrião nas paróquias das zonas sul e leste da cidade de São Paulo.

Por volta de 1973, donas de casa e militantes sociais, que participavam dos clubes de mães, organizavam encontros para lutar pela diminuição dos preços dos alimentos de primeira necessidade, como leite, arroz e feijão.

A ex-vereadora e deputada estadual Ana Martins atuou no movimento como coordenadora dos encontros. Na opinião dela, o apoio institucional da igreja católica foi decisivo para o movimento crescer, o que só foi possível pelo compromisso de D. Paulo com a luta popular assim como de outros religiosos como Dom Angélico.

D. Paulo Evaristo foi uma personalidade marcante na luta contra a ditadura militar no Brasil. Homem de ação, questionava os órgãos acerca dos desaparecidos políticos no Brasil e atuava ao lado dos movimentos populares da periferia paulistana.

Compromisso social
Atualmente integrante da União Brasileira de Mulheres (UBM), Ana afirmou que a postura do arcebispo colocou a igreja como instituição a serviço do povo. “A luta do movimento popular quando não tem umas pontas institucionais ela não se sustenta”, explicou.
Ela lembrou que D. Paulo era criticado pelo setor conservador da igreja, o que não o impediu de exercer o compromisso com a luta por justiça social. “Quando lideranças de bairro começaram a ser presas o movimento recorria a d. Paulo e ele ia no exército, ia no Dops, pessoalmente”, recordou Ana.
Carisma 
Nos primeiros anos havia cerca de 400 clubes de mães atuando no movimento do custo de vida na periferia de São Paulo. A cada seis meses eram organizados seminários de formação e em algumas delas D. Paulo estava presente.
“D. Paulo passava, sempre dava uma palavra. Não tinha missa. Ele dava uma palavra e sempre entusiasmava”. Os encontros reuniam em média 300 pessoas debatendo as condições de vida da periferia e formas de melhorar essas condições.

Consciência política
Ana contou que antes da nomeação de D.Paulo como arcebispo as lutas populares não ecoavam na igreja católica em São Paulo. 
“Ele fomentou a criação das comunidades de base, além de discutirem os princípios religiosos, o evangelho, discutia também as condições de vida o que possibilitou um engajamento”. 
A violenta repressão em 78 ao ato na praça da Sé, em São Paulo, organizado pelo movimento contra a carestia ganhou visibilidade na imprensa. Na ocasião, os participantes tentaram se proteger da polícia na catedral onde foi realizada a assembleia, com a anuência de D. Paulo.  
Neide Abati esteve no dia do ato com o marido e os dois filhos pequenos. Ela, que é irmã de Ana Martins, também foi coordenadora de um dos clubes de mães na zona sul. Segundo Neide, D. Paulo era um “refúgio” para os participantes do movimento contra a carestia.
“Estava sempre do nosso lado. Acionava os padres, amigos, advogados. Se os direitos humanos não eram respeitados ele denunciava, avisava os padres com informações, ajudava a achar corpos e aqueles que estavam presos”, lembrou Neide.
Igreja do povo
Para ela a atuação dos padres naquele período era muito avançada. “Avalio como uma igreja da teologia da libertação autêntica e que abria o espaço para toda a visão socialista. Essa visão cristã autêntica não discriminava, era um trabalho avançado que hoje isso andou pra trás”, analisou.
A denúncia feita por D. Paulo da repressão no país revelava a face ditatorial do governo brasileiro. Ao lado dele, outros religiosos como d. Mauro Morelli e o pastor Jaime Wright, mostravam ao mundo que a ditadura reprimia a mobilização popular.
Resistência popular à ditadura
Instrumento importante para despertar a consciência política e a resistência à ditadura, o movimento contra a carestia incorporou outros segmentos de trabalhadores e ganhou contornos nacionais a partir de 76. Incluiu entre as reivindicações a luta pela reforma agrária e a anistia.
Entre as principais ações do movimento estava o abaixo-assinado reivindicando redução dos preços dos alimentos e aumento salarial. Foram recolhidas na ocasião um milhão e 365 mil assinaturas que foram levadas a Brasília ao presidente Ernesto Geisel. A entrega simbólica seria feita na praça da Sé no ato violentamente reprimido em 78 pela ditadura.
De acordo com Neide, o movimento “deu uma força pra classe operária se organizar no seu sindicato”. “Depois o movimento não aparecia mais porque deu origem a outros avanços. É o meu entender, é o entender de quem estava lá”.

Atualmente Neide é atuante na União Popular de Mulheres, entidade herdeira das lutas do movimento dos clubes de mães do movimento do custo de vida.

 

Matéria publicado originalmente em 23 de julho de 2016, por ocasião das homenagens aos 50 anos de bispado de D. Paulo Evaristo Arns.