Dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal da democracia 

Em julho, quando foram comemorados os 50 anos da ordenação de Dom Paulo como bispo, o Portal Vermelho publicou uma série de artigos, dentre eles um do jornalista e escritor José Carlos Ruy. Reproduzimos o texto em homenagem ao cardeal cuja carreira é uma cordilheira de cumes altos na luta contra a ditadura e pelos direitos humanos.
   

Missa na sé após assassinato de Vladimir Herzog com Dom Paulo, Arns - memorial da democracia

“Não matarás. Quem matar, se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus!” – estas palavras fortes foram pronunciadas na Catedral da Sé, em São Paulo, em 31 de outubro de 1975, durante o culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog.

 
Seu autor, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, é usualmente um homem doce, afável e calmo mas, naquele momento, sua indignação estava no auge. Contra a ditadura militar, contra a repressão que torturava e matava, contra o desrespeito a todos os direitos humanos representado pela ação bárbara da ditadura e seus agentes.
 
Era a voz veemente e profética de um homem que, investido da autoridade de príncipe da Igreja, nunca abriu mão da humildade que o faz igual a todos os homens, embora elevado à dignidade cardinalícia pela hierarquia católica.
 
Este ano se comemoram os 50 anos de sua ordenação como bispo. Em 2 de maio de 1966 ele foi eleito bispo auxiliar de São Paulo e, em 3 de julho daquele ano, recebeu a ordenação episcopal.
 
Dom Paulo nasceu em 14 de setembro de 1921, em Forquilhinha (SC), sendo um dos 13 filhos de uma família de origem alemã. Ordenado bispo em julho de 1966, ele tornou-se depois o quinto arcepispo de São Paulo e o terceiro prelado dessa arquidiocese a receber o título de cardeal (em 5 de março de 1973).
 
Em Forquilhinha, ainda criança, a posição (beque) em que jogava futebol com seus irmãos já era uma indicação da atividade que o marcaria nas décadas futuras: a defesa. Do povo, dos trabalhadores, da democracia, dos direitos humanos.
 
Não importam os títulos – o que conta é a ação! Este é a definição essencial que o orienta. 
 
Numa ocasião, em 1979, fiz, juntamente com o colega Roldão Arruda, uma entrevista com Dom Paulo para o jornal Movimento. Com cuidado, perguntei a ele sobre a existência de Deus. Recebi a resposta de um homem sábio: sei do que você está falando! Você não acredita, mas para Deus isso não tem importância; o que conta é a ação e vocês estão na luta ao lado do povo. Para Deus, é o que vale!
 
Fiquei surpreso; afinal, era o cardeal! A mais alta autoridade da Igreja em minha cidade! Com o tempo compreendi a valorização da ação que estava implícita naquelas palavras.
 
E a ação sempre foi, para ele, a luta ao lado do povo, dos mais humildes, contra a opressão e a injustiça. Caminho que seguiu sempre e reforçou desde sua ordenação sacerdotal, em 1945.
 
É um trabalhador incansável. Sacerdote, professor, escritor e editor. Deu aulas, com destaque para a PUC de Petrópolis. E também nas faculdades de Filosofia, Ciências e Letras em Agudos e em Bauru, no interior de São Paulo.
 
Como bispo auxiliar, atuou na Zona Norte da capital paulista; uma de suas funções era visitar os presídios – sobretudo os cárceres políticos – e destacou-se pela luta sistemática, na qual usou o poder e o prestígio da Igreja, contra as torturas e as violações dos direitos humanos.
 
Em São Paulo, foi um animador das comunidades eclesiais de base, o grande guarda-chuva sob o qual a oposição popular contra a ditadura se reuniu, sobretudo na periferia, até o final do regime discricionário. Este movimento culminou, em 1978, no grande Movimento do Custo de Vida (depois conhecido como Movimento Contra a Carestia). 
 
Dom Paulo ficou conhecido, entre os lutadores pela democracia, como o “cardeal dos direitos humanos” – em 1972 foi o fundador e dirigente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Antes, em 1970, fora criada a Pastoral Operária de São Paulo.
 
Em 31 de março de 1973 ele celebrou, na catedral da Sé, a missa em memória de Alexandre Vannucchi Leme, o líder estudantil que cursava Geologia na USP e militava na  Ação Libertadora Nacional (ALN). E foi assassinado sob tortura pela repressão política da ditadura. Foi um grande ato de resistência com mais de cinco mil participantes.
 
Colocando sua autoridade eclesial a serviço do povo, contra a ditadura, Dom Paulo encontrou-se incontáveis vezes com autoridades do regime do arbítrio, desde comandantes militares até, no topo do regime, o general Golbery do Couto e Silva, a quem levava denúncias e exigências de esclarecimento sobre prisões e desaparecimentos políticos.
 
Foi perseguido por essa luta. Em outubro de 1973, indignado com a tortura, realizou uma Semana dos Direitos Humanos em São Paulo. Imprimiu 150 mil cópias da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, da qual o Brasil é signatário, para debate nas paróquias e comunidades eclesiais de base.
 
A resposta da ditadura foi rápida – mandou fechar a rádio 9 de Julho, da Cúria Metropolitana de São Paulo, para calar sua voz.
 
Em 1975 o conflito entre os generais da ditadura – os partidários do general Ernesto Geisel, contra a chamada “linha dura”, de extrema-direita – se acentuou. A partir de junho aumentaram as prisões, que voltaram a ser sistemáticas e frequentes.
 
O clima repressivo piorou em outubro de 1975. Foi nesse quadro que foi preso no DOI-Codi de São Paulo, com outros colegas, o jornalista Vladimir Herzog. Desde o primeiro momento d. Paulo se envolveu na defesa daqueles presos, e procurou as autoridades da ditadura – entre eles o governador paulista Paulo Egydio Martins. Mas no mesmo dia de sua prisão Vladimir Herzog foi assassinado sob tortura. E a versão de seus assassinos – de que havia se suicidado – nunca foi aceita por ninguém!
 
A reação do cardeal foi pronta: era preciso uma grande manifestação contra a barbárie que crescia. “Não sei se não é a hora de um protesto mais forte. Quem sabe sair pelas ruas, gritar, protestar contra isso tudo”, disse então.
 
Num encontro com o jornalista Fernando Pacheco Jordão, Dom Paulo contou ter sido procurado, na véspera do culto ecumênico realizado em 31 de outubro de 1975, por dois secretários do governo paulista, que tentaram convencê-lo a desistir pois um dirigente católico não podia orar por um suicida. A resposta de D. Paulo foi um corajoso desmentido para a versão difundida pela repressão: “Amanhã eu estarei na Catedral, rezando por Vladimir, porque tenho a plena convicção de que ele não se suicidou”.
 
Aquele foi um ponto alto na cordilheira de cumes elevados que foi a ação de Dom Paulo na luta pela democracia e pelos direitos humanos.
 
O culto foi realizado por ele juntamente com D. Helder Câmara, vinte sacerdotes católicos e os rabinos Henry Sobel e Marcelo Rittner, além do pastor presbiteriano Jaime Nelson Wright.
 
A voz de d. Paulo ressoou no templo exprimindo o sentimento dos democratas: “Ninguém toca impunemente no homem, que nasceu do coração de Deus, para ser fonte de amor em favor dos demais homens. Desde primeiras páginas da Bíblia Sagrada até a última, Deus faz questão de comunicar constantemente aos homens que é maldito quem mancha suas mãos com o sangue de seu irmão. Nem as feras do Apocalipse hão de cantar vitórias diante de um Deus que confiou aos homens sua própria obra de amor. A liberdade – repito – a liberdade humana nos foi confiada como tarefa fundamental, para preservarmos, todos juntos, a vida do nosso irmão, pela qual somos responsáveis, tanto individual quanto coletivamente”. 
 
E disse: “Basta! E hora de se unirem os que ainda querem olhar para os olhos do irmão e ainda querem ser dignos da luz que desvenda a falsidade”.
 
Mas a luta iria ainda ser longa. Em 16 de dezembro de 1976 ocorreu o episódio violento conhecido como “Massacre da Lapa”. D. Paulo tentou informar aos dirigentes do Partido Comunista do Brasil sobre a invasão planejada pela repressão. A informação fora recebida através do cônsul norte-americano em São Paulo e dizia que a sede do PCdoB seria invadida por agentes da repressão. Dom Paulo passou a informação a dirigentes partidários a quem tinha acesso. “Mas não consegui salvar todo o grupo”, lamentou mais tarde.
 
Em setembro de 1977 ele se encontrava em Roma, e teve que voltar imediatamente. No dia 22 daquele mês a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) foi invadida por policiais e militares para reprimir o Encontro Nacional de Estudantes que lá ocorria. Foi uma afronta direta à sua autoridade eclesiástica. Lá estavam cerca de dois mil estudantes; a ação repressora foi extremamente violenta e mais de 700 estudantes foram presos. Dom Paulo reagiu com indignação registrada em sua declaração: “na PUC só se entra prestando exame vestibular, e só se entra na PUC para ajudar o povo e não para destruir as coisas”.
 
Mais tarde, entre 1979 e 1985 – com o pastor Jaime Wright – foi um dos animadores do projeto Brasil Nunca Mais, que resultou num grande e corajoso livro de denúncia dos crimes da ditadura. O trabalho foi feito sob sigilo, e copiou mais de um milhão de páginas de processos do Superior Tribunal Militar (STM), levadas ao exterior por segurança.
 
Paulo Evaristo Arns, o menino de Forquilha que se tornou a maior autoridade católica de São Paulo, é também o símbolo imorredouro da luta do povo pela democracia e pela justiça social. É nessa condição que mora no coração de todos os democratas!
 

Referências
Folha de S. Paulo. 10 de agosto de 1995.
Jordão, Fernando Pacheco. Dossiê Herzog – Prisāo, Tortura e Morte no Brasil. São Paulo: Global, 2005.
Serbin, Kenneth P. Diálogos na Sombra: Bispos e Militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Cia das Letras, 2001.