Guadalupe Carniel: Balada para mi muerte

Na Argentina tudo é exagerado. Eles são mais intensos que todo o restante da América Latina. Como descreveram em um trecho do livro Buenos Aires Ajena, “cada um vive sua própria loucura, passam da depressão à euforia em segundos. Se sentem os reis do mundo hoje e amanhã os insetos mais desprezíveis. São personagens de Dostoievksi: loucos para ser mais claro”. E assim segue o futebol e a política seguem por lá, num tango dramático.

Por Guadalupe Carniel*

Higuaín

Parece exagero, mas não é. Há duas semanas falei que o futebol na AFA estava desabando. A seleção considerada número um do ranking da Fifa é um caos. Não tem presidente, não tem dirigentes, não tem técnico, nem jogadores. O melhor do mundo se recusa a jogar na seleção do seu país.

Futebol e política sempre andaram de mãos dadas na Argentina. E mais do que nunca isso é evidente. A AFA chegou no fundo do poço. Desde 1993 a Argentina não conquista nada. Para agravar, uma das melhores gerações argentinas perdeu para o Chile, duas vezes consecutivas, seu rival geopolítico.

Tata Martino, sem receber há sete meses pediu as contas. E nem foi pelo salário: na realidade não consegue convocar 25 nomes para os Jogos Olímpicos. Quem assumiu em seu lugar foi o ex-jogador e atual técnico do sub-20 da albiceleste, Julio Olarticoechea. Os únicos jogadores confirmados até então são: Rulli (Real Sociedad), Gómez (Lanús), Martinez (Unión), Espinoza (Villareal), Lo Celso (PSG) e Correa (Atletico de Madrid). Talvez a seleção nem participe do torneio. Os clubes se recusam a ceder jogadores já que as Olimpíadas não contam como data-Fifa e para piorar a AFA não faz absolutamente nada.

Ademais, já foi desmentido que o Bielsa será o novo técnico. Segundo a AFA ela não está atrás de um técnico e ninguém tem poder para isso e Luis Segura já fala abertamente em renúncia.

Nunca se viveu um momento tão ruim no futebol argentino. Mas para explicar o que está acontecendo temos que voltar no tempo. Em 1958 a equipe sofreu 6 a 1 contra a Tchecoslováquia e o futebol foi minguando até a seleção ficar de fora da Copa de 70. Em 1979, Julio Grondona assumiu a AFA e lá ficou por 35 longos anos até 2014, quando seu nome foi veiculado ao do Joseph Blatter no esquema de corrupção da FIFA e ano de sua morte. Luis Segura, que é membro do Conselho Executivo da FIFA e homem de confiança da entidade, assumiu de forma interina até dezembro de 2015.

Vieram então as eleições que seriam disputadas entre Segura e Marcelo Tinelli, que é vice-presidente do San Lorenzo e apresentador de TV. O pleito terminou com 38 votos para cada um. Só tem um porém: apenas 75 pessoas votam. Mediante essa situação, a juíza Servini de Cubría anulou as eleições. Segura se manteve como presidente. Para intervir, a Justiça se baseou em uma lei que permite que o governo se envolva em qualquer entidade civil se constatados atos que violem a lei.

Lance da partida Tchecoslováquia 6 x 1 Argentina na Copa de 58

Soma-se a isso, os escândalos de desvio de dinheiro do Programa “Fútbol Para Todos”. O programa foi criado no governo da Cristina Kirchner, em 2007, para transmitir jogos da série A e alguns da B pelo canal estatal, tirando o monopólio do Grupo Clarín, por cerca de 2 bilhões de pesos para a AFA que, por sua vez, deveria repassar para os clubes, mas parece que o dinheiro “se perdeu” no caminho, no qual Luis Segura é investigado, junto com vários dirigentes. Os clubes nunca tiveram tanto dinheiro e ao mesmo tempo nunca estiveram tão quebrados. Uma medida adotada pelo governo foi cortar as verbas para a federação.

A corrida pela eleição se tornou uma luta pelo poder entre o atual governo neoliberal e o sindicato, que outrora apoiava o próprio Macri. A briga pelo poder na Argentina passa pelo futebol. O presidente Macri foi durante 12 anos presidente do Boca Juniors e dizem que boa parte de seus votos veio da popularidade alcançada durante sua gestão.

Futebol e política andam tão atrelados por lá que rola panfletagem dos barras (torcedores) para candidatos que apoiem. Para quem não se lembra, Macri foi protagonista de uma polêmica com Roman Riquelme. No meio da crise que o clube atravessava, o então presidente do Boca revelou quanto o jogador ganhava. Num clássico ante o River, Roman fez um gol e foi até a tribuna para comemorar com a clássica imagem das mãos atrás das orelhas. Após o jogo ele disse apenas que a comemoração era em homenagem à filha que curtia o personagem Topo Gigio. Macri busca de todas as formas aliados já que não pode intervir diretamente na federação, que sofreria punições da FIFA, que proíbe influências estatais nas federações de futebol nacionais. Para ganhar as eleições, o presidente teve que garantir o “Fútbol Para Todos” gratuito até 2019, coisa que ele é contra.

O grande rival de Macri e que quer a presidência da AFA a todo custo é Hugo Moyano, que desde os 18 anos é do Sindicato dos Motoristas de Caminhões, e secretário-geral da Central Geral dos Trabalhadores, um dos maiores sindicatos do país. Já liderou diversas paralisações de caminhoneiros no país, inclusive na tentativa de desestabilizar a própria Cristina Kirchner . Além disso é presidente do Independiente desde 2014. Hugo apoiou Macri durante as eleições, mas ao ver que não teve retribuição mudou de lado.

Como se isso não bastasse, liderados por Boca (que tem como presidente Daniel Angelici, apoiado por Macri) e River, os clubes querem montar uma Liga com 20 times na Série A e 20 na B que seria independente da AFA. Dos grandes, apenas o Independiente não concorda. O que irrita os times de menor expressão é que 85% ficariam para os clubes da elite e 15% seria dividido entre os demais.

Mais um fator da grave crise do futebol argentino é Messi e sua aposentadoria da albiceleste. Se ele abandonar de fato a seleção, a AFA deixa de receber pelos menos metade do que ganha, já que os patrocinadores têm interesse a vincular sua imagem ao jogador. Na última Copa América, a situação da Argentina era tão grave que os patrocinadores tiveram que resolver questões financeiras, já que a associação está quebrada.

As novas eleições têm data limite de 30 de junho de 2017. Até lá, não se sabe o futuro da AFA. O que acontece enquanto isso é que ninguém quer se responsabilizar pelo que acontece e parece não haver saída. O que realmente interessa a todos lá é apenas a disputa pelo poder, que na Argentina, mais do que em qualquer outro país passa diretamente pelo futebol, como num dramático tango de Piazzolla.