Entrevista: Gaviões é povo e povo tem de lutar para viver melhor

Quando se fala em arquibancada como espaço de resistência e luta política, impossível não se pensar na torcida organizada Gaviões da Fiel. Ela tem encabeçado protestos nos estádios e fora deles por pautas que vão das questões específicas do futebol, como os jogos às 22 horas e torcida única, a questões gerais, como a máfia das merendas do governo do PSDB, o monopólio da Globo, a democracia no país e o Fora Temer.

Por Penélope Toledo*

Chico Malfitani - Erika Papangelacos

E não poderia ser diferente, pois sua própria fundação já foi um gesto de resistência e luta, na medida em que surgiu no auge da ditadura militar para lutar pela democracia e para derrubar o então presidente do Corinthians. Isto é o que nos explica em entrevista exclusiva o publicitário Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões.

Dentre outros assuntos, Chico Malfitani fala sobre as semelhanças e diferenças na torcida e na sociedade, elitização do futebol, arquibancada e política, monopólio e poder midiáticos, perseguição à Gaviões, criminalização de torcedores, participação feminina e combate à homofobia.

Confira a seguir:

Portal Vermelho: Nesta semana foi comemorado o aniversário de 47 anos da Gaviões da Fiel. Conte-nos sobre a fundação da torcida

Chico Malfitani: Surgimos em 1969 para combater duas ditaduras: a de dentro do Corinthians, cujo presidente era um deputado da Arena (Wadih Helu) – que apoiava a ditadura militar – e se eternizava no poder, em detrimento do clube; e para ajudar a derrubar outra ditadura, a que governava o Brasil. A Gaviões conseguiu derrubar a de dentro do Corinthians, dois anos depois da sua fundação. E participou no combate à ditadura militar no Brasil, que caiu em 1985.

Comparada com o que era a torcida naquela época, como ela é hoje?

As diferenças da Gaviões de hoje com a Gaviões de 1969 são as mesma das diferenças de Brasil de 1969 com o de 2016. Havia menos violência na sociedade e por conseguinte, nas torcidas de futebol. Naquela época havia cerca de mil assassinatos por ano no Brasil, hoje temos 50 mil mortes violentas por ano.

Havia menos hipocrisia na sociedade e mais alegria nos estádios de futebol. Era mais festa e menos guerra. Havia mais povo. Hoje as "arenas" são majoritariamente ocupadas por gente de maior poder aquisitivo. O povo, que é a maior riqueza do Corinthians, está cada vez mais impedido de ir aos jogos, em virtude dos altos preços dos ingressos e da burocratização da sua venda. Um erro absurdo! O Corinthians está matando a sua galinha dos ovos de ouro, pois tirar o povão das arquibancadas é diminuir no futuro o seu número de torcedores.

Além disso, com exceção das torcidas organizadas, o que se vê no estádio do Corinthians é um torcedor que mais parece expectador de teatro ou cinema. A vibração diminuiu muito. A nossa torcida sempre apoiou o Timão o tempo de jogo inteiro, perdendo ou ganhando. Hoje, só quando o time está bem é que vemos o canto da torcida se espalhar pelo estádio.

Essa é uma diferença enorme entre 1969 e hoje, as diferenças sociais diminuíram muito pouco daquela época para agora e os estádios não exprimem a verdadeira composição social do Brasil de hoje.

Hoje a Gaviões da Fiel chama a atenção devido aos seus posicionamentos políticos. Fale-nos sobre as arquibancadas enquanto espaço de resistência e luta.

A Gaviões sempre participou da política no Brasil, dentro e fora do clube. Dentro do Corinthians, fiscalizando e cobrando seus dirigentes, que faturam milhões em cima da paixão do torcedor. Também participou e participa da política nacional, porque Corinthians e Gaviões são povo e povo tem que lutar para viver melhor num país que é campeão de desigualdade social.

Participamos da campanha da anistia aos presos políticos em 1979, levando a um jogo Corinthians e Santos no Morumbi, com 100 mil pessoas, uma faixa pedindo "anistia ampla, geral e irrestrita".

Participamos da campanha das "Diretas Já", comparecendo às manifestações. Brigamos pela democracia, porque com democracia teremos o povo respeitado nos estádios e uma melhor condição de vida para todos. Lutamos para termos eleições diretas para presidente da República e lamentamos o que está acontecendo hoje no Brasil, com este golpe à democracia, promovido por um usurpador que não foi eleito pelo povo e muito menos o seu programa de governo.

Por isso, lutamos nas arquibancadas contra a corrupção e contra o roubo da merenda dos estudantes das escolas públicas de São Paulo, justamente envolvendo um promotor que se elegeu com uma pretensa luta contra a violência no futebol. Trata-se de Fernando Capez, deputado do PSDB e presidente da Assembleia Legislativa de SP, um dos principais beneficiados deste crime "hediondo" que é roubar comida de criança pobre nas escolas.

Protestamos nos estádios e fora deles contra os ladrões da CBF, responsáveis pela decadência do futebol brasileiro. É uma vergonha termos dirigentes presos com tornozeleira eletrônica e um presidente da CBF que não pode sair do Brasil, senão será preso por corrupção.

E os jogos às 22 horas, impostos por uma emissora de TV contra a qual a Gaviões da Fiel tem se posicionado publicamente?

Protestamos contra o monopólio das transmissões esportivas exercido pela Globo e contra o seu domínio sobre o futebol, por exemplo ao exigir que os jogos sejam às 22 horas, um horário que sacrifica o torcedor trabalhador.

Devido a estes posicionamentos, fomos reprimidos e perseguidos pela polícia e pela Justiça a mando dos poderosos do sistema, pois estamos mexendo com eles e pondo o dedo na ferida. Tivemos nossa sede invadida diversas vezes pela PM e fomos vítimas de verdadeiras armadilhas que planejaram para proporcionar confrontos entre nós e a torcida do Palmeiras e também para nos criminalizar na imprensa. E vários de nossos integrantes foram presos.

Querem nos intimidar, em alguns momentos até com sucesso. Mas como já ocorria em 1969 e em outros anos depois, quando as "autoridades" tentaram nos fechar, não vão conseguir acabar com a Gaviões. Porque não vão conseguir acabar com o povo! E nós somos o povo, o povo organizado que reivindica o que é justo, este é o verdadeiro motivo da histórica perseguição que fazem à Gaviões.

Cometemos erros, é claro. Mas dos 12 fundadores em 1969 aos 100 mil sócios que somos hoje, a esmagadora maioria sempre foi formada por gente de bem, por trabalhadores, por homens, mulheres e crianças que amam o futebol e o Corinthians. Se as "autoridades" não têm competência para punir infratores e organizar jogos de futebol em segurança, não podemos ser o bode expiatório dessa incompetência.

Considerando-se que, como você disse acima e como dizia Sócrates, as torcidas são movimentos sociais e têm força política, o que se pode dizer da criminalização das torcidas?

Infelizmente vemos que a repressão que sofríamos na época da fundação da Gaviões é igual à que a Gaviões ainda sofre hoje, vinda da Polícia Militar, do Poder Judiciário e do governo de São Paulo. Neste aspecto, pouca coisa mudou de 1969 para hoje. Inclusive com relação á perseguição e á criminalização que a imprensa faz com a Gaviões e outra torcidas organizadas.

Como eu disse no início, a violência na sociedade é muito maior hoje do que era em 1969 e o que ocorre com as torcidas é apenas reflexo do que ocorre na sociedade, onde a violência está banalizada. O garoto da periferia e de bairros mais carentes, por exemplo, cresce convivendo com os assassinatos corriqueiros ocasionados pelas Polícia Militar ou pelos confrontos entre o crime organizado e pelas drogas. Além disso, a violência está nos games e na TV, que a incentiva por meio de filmes, desenhos, novelas, MMAs etc. E aí esta mesma TV criminaliza as torcidas pela violência que ela própria promove no horário nobre. De 1969 para cá a hipocrisia aumentou muito no Brasil!!

Queremos a liberdade e a alegria de volta aos estádios, com as nossas bandeiras, tambores, instrumentos musicais, faixas, fogos, papel picado, gritos de incentivo ao time ecoando em todo o estádio. Quanto mais alegria, menos ocorrerá violência e é isto o que os governantes e dirigente teimam em não entender. Chamamos torcedores organizados para discutir isso, porque nós somos os que mais entendemos desses assuntos, mas nunca somos ouvido, só reprimidos. O resultado dessas política equivocadas vemos hoje nos estádios, dentro do campo e nas arquibancadas das tais "arenas".

A participação feminina e de homossexuais está crescendo no futebol. Como estimular estas participações e combater os preconceitos?

Cada vez mais mulheres frequentam a nossa quadra e a arquibancada, e elas devem continuar ganhando espaço na nossa organização, como na sociedade. Os homossexuais também, nós temos tomado iniciativas para que atos de homofobia sejam banidos, como por exemplo, pedir para que não se grite mais "bicha" quando os goleiros dos times adversários batem o tiro de meta. Que isso seja substituído por gritos de incentivo ao nosso time.

As torcidas têm uma força incrível. Juntas, com os mesmos objetivos e respeitando as rivalidades futebolísticas históricas, elas podem ser um poderosíssimo instrumento de consciência social, de luta contra o racismo, o machismo e a homofobia; pela diminuição da desigualdade social; pela alegria no futebol e pela democracia. Por isso o "sistema" nos combate, principalmente por meio de uma mídia manipuladora e por uma polícia opressora. Nada diferente do que era em 1969. Só que naquela época éramos apenas 12 e hoje somos honestos 100 mil!!

De qualquer forma, temos que brigar menos entre nós e mais juntos, por nós. Isto é o que penso hoje sobre as torcidas organizadas.