Independência: as guerras do norte

Há uma tese, por demais cara às elites brasileiras, de que a nossa história é incruenta. A Independência, a Abolição, a República, o fim da Ditadura de 64, são apresentados como episódios sem luta, sem participação do povo.

Por Joan Edesson Oliveira*

dois de julho bahia

Essa tese cumpre um duplo papel. Por um lado, alimenta a afirmação de que o povo brasileiro é pacífico, ordeiro, e resolve suas contradições na base da camaradagem, ocultando, quase sempre, as batalhas de classe que se travaram em cada um desses momentos. Por outro lado, ao negar a participação popular, faz com que o próprio povo não se sinta senhor dessas conquistas, enxergando essas lutas como “coisa de brancos”, como acertos das elites.

Se é verdade que as nossas elites sempre souberam buscar soluções pelo alto, interrompendo momentos de ruptura e transformando-os em “revoluções incompletas”, também é verdade que houve intensa participação popular em todas estas lutas.

A independência do Brasil, por exemplo, precisa ser entendida como um longo processo, cujos antecedentes mais imediatos remontam pelo menos à Revolução de 1817, e que só pode ser considerado consolidado com a expulsão de Pedro I do Brasil, em 1831. E, em todo esse período, o povo, das mais diversas formas, participou de lutas por todo o país.

Mesmo considerando apenas o ato de 1822, a proclamação de Pedro I, o processo incruento, como querem alguns, limitou-se, no máximo, à Corte, a Minas e a São Paulo. Ao sul e ao norte, principalmente ao norte, a guerra se fez sem tréguas durante aproximadamente dois ano, antes e após o 7 de setembro.

No Piauí, depois do Ipiranga, as tropas portuguesas comandadas pelo Major João José da Cunha Fidié marcharam contra Parnaíba, que declarara sua adesão à causa da independência e havia aclamado Pedro I como Imperador do Brasil. Ali, encontraram a vila retomada e guarnecida pelo brigue infante Dom Miguel, que viera do Maranhão com armas e tropas em seu auxílio. No entanto, ali recebeu também a notícia de que Oeiras, a capital da província, estava em mãos dos patriotas, que haviam proclamado a Independência e assumido a Junta de Governo do Piauí. Fidié, com tropas de linhas encorpadas com o reforço do Maranhão, com 11 peças de artilharia, resolveu voltar para Oeiras, para retomar a capital. Os piauienses, com o reforço dos cearenses que haviam se juntado a eles, resolveram cortar o avanço dos portugueses na altura da vila de Campo Maior. Ali se deu um dos maiores e mais desiguais combates das guerras da Independência. Embora não haja precisão sobre os números, estima-se que piauienses e cearenses formavam um corpo de 1.500 homens, armados com foices, espadas, chuços, facões, espingardas de caça. Desses, entre 200 a 500 deixaram a vida no campo do Jenipapo, a principal batalha até então.

Os portugueses comandados por Fidié, mesmo vencendo a batalha, perceberam que Oeiras estava perdida para eles, e marcharam rumo ao Maranhão, para Caxias, com os piauienses e cearenses no seu encalço, liderados por Luís Rodrigues Chaves, João da Costa Alecrim, Simplício José da Silva, dentre outros. Pelos cearenses, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, Pereira Filgueiras e Pessoa Anta se destacaram no comando. Os três iriam empreender, naquele mesmo ano, outra batalha, dessa vez contra Pedro I. De volta do Maranhão, mal apeados das montarias, fariam a Confederação do Equador, onde o primeiro deixaria a vida em combate, o segundo morreria a caminho da prisão e o terceiro seria fuzilado no Campo dos Mártires, em Fortaleza.

Em Caxias, os maranhenses, junto às tropas do Piauí e do Ceará, derrotaram de vez Fidié e os portugueses, garantindo a vitória da Independência nas três províncias. Vaqueiros e agricultores, caboclos mestiços daqueles sertões, asseguraram ali a unidade territorial. Com o interior do Maranhão dominado pelos patriotas, restava São Luís em mãos dos portugueses, quando ali assomou o escocês Cochrane, que pilhou a capital e ainda levou os louros pelas vitórias.
No Pará, ainda em poder dos portugueses, Grenfell, enviado pelo escocês, usou de um ardil para obter a rendição. A crônica histórica registra uma Belém mergulhada no caos e na pilhagem, com 260 prisioneiros trancafiados no porão de um navio, sob um calor escaldante, dos quais, no dia seguinte, apenas 4 restavam com vida.

Mas foi na Bahia, sem dúvida, que se escreveram as páginas mais sangrentas dessa luta. Ali, a guerra havia iniciado antes do sete de setembro e se prolongou até o 2 de julho de 1823. O sentimento antilusitano crescera muito na última década, provavelmente inflado mais ainda devido à violenta repressão que se abateu sobre as revoltas populares do século anterior. Na Bahia, durante mais de um ano, estima-se que a mobilização atingiu 16.000 brasileiros e 5.000 portugueses. Entre 18 e 21 de fevereiro de 1822, antes ainda do 7 de setembro, morreram de 200 a 300 pessoas nas ruas de Salvador. E isso porque não se sabe com precisão, até hoje, do número de mortos na maior batalha, a de Pirajá, em 8 de novembro, nos arredores da capital.

A rebelião na Bahia começou antes, quando o brigadeiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães, brasileiro e favorável à causa da Independência, foi substituído no comando das tropas da Bahia pelo general português Ignácio Luís Madeira de Melo. Portugueses e brasileiros se enfrentavam nas ruas da Bahia. Em quatro dias apenas, como já se disse, foram 200 a 300 mortos. A mais célebre das vítimas foi a madre superiora do convento da Lapa, sóror Joana Angélica de Jesus, trespassada por golpes de baioneta. Ali tombou também, a coronhadas, o capelão Daniel da Silva Lisboa.

Os baianos tomaram a dianteira da luta pela independência. Ante à recusa de Madeira de Melo de acatar a ordem do príncipe regente de embarcar para Portugal com a sua tropa – o general reforçou sua lealdade a Lisboa – ganhou ainda mais força a ideia de um Brasil livre de Portugal. Dali em diante o confronto foi aberto entre os defensores da Independência e os que se alinhavam aos lusitanos. O desfecho só se daria em 2 de julho de 1823, data em que os baianos, mui justamente, festejam a Independência.

A guerra na Bahia revelou, como todo conflito, os heróis e os trânsfugas. Entre os primeiros avultaram-se os nomes da abadessa Joana Angélica e da jovem Maria Quitéria, que se alistou como soldado Medeiros e combateu com bravura por mais de uma vez, recebendo do general Labatut o posto de primeiro-cadete.

O povo lutou na Bahia pela independência do Brasil. Foi um filho de camponeses, Antonio de Souza Lima, promovido a governador militar da ilha de Itaparica. Quando os nacionais desfilaram na Salvador libertada, estava entre eles o batalhão dos negros, comandado pelo major Manoel Gonçalves da Silva. Sob seu comando havia 1.100 Henriques, que participaram de quase todas as batalhas.

Madeira de Melo, vencido, levou toda a sua tropa para Portugal, em 17 navios de guerra e 75 mercantes. No seu encalço, feito cachorro de vaqueiro a morder as patas traseiras de boi brabo na caatinga, a fragata brasileira Niterói, comandada pelo capitão John Taylor, atravessou o Atlântico até a foz do Tejo, em Lisboa. Um adolescente de apenas 15 anos, voluntário, estava a bordo, o gaúcho Joaquim Marques Lisboa, que viria a ser o almirante Tamandaré. Portugal há de ter percebido, ali, que os brasileiros estavam dispostos a tudo para defender a sua independência.

A Independência, ao contrário do mito propagado com tanto zelo pelas elites, foi um processo cruento e demorado. Gestou-se, na alma dos brasileiros, durante décadas, desde as revoltas populares do século dezoito. Na revolução de 17 surgiu, pela vez primeira, a palavra “brasileiros”, para dar conta do sentimento que tomava conta de todos os aqui nascidos. De uma ponta a outra do país cresceu o sentimento de liberdade, e a palavra tirania passou a ser sinônimo de Portugal. Da Bahia ao Pará foi o norte, dominado pelos portugueses, quem garantiu a Independência. Lutaram, pelos brasileiros, mais homens do que todas as tropas mobilizadas nas guerras de Independência da América espanhola. Entre 2 a 3 mil perderam a vida nos combates. Foram negros, caboclos, mestiços, escravos, roceiros, homens e mulheres, que escreveram a palavra Brasil em Pirajá e em Jenipapo, e que sopraram a liberdade nos ouvidos e no coração do povo e da pátria.