"Remédio amargo": Torcida única mata futebol sem curar problemas

Chegou bem perto da combustão a discussão ocorrida nesta quarta-feira (29), na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), sobre a dura medida dos clássicos com torcida única. A Audiência Pública, convocada pelo deputado Luiz Fernando (PT-SP), contou com a participação de parlamentares, representantes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e Federação Paulista de Futebol (FPF), jornalistas esportivos e do promotor Paulo Castilho.

Por Felipe Bianchi*

Estádio do Pacaembu em noite chuvosa

Apesar da gritante ausência dos presidentes dos quatro grandes clubes do estado, bem como de qualquer representante das torcidas, engana-se quem imagina que houve consenso em prol da drástica medida tomada pelo promotor.

À exceção de Fernando Capez (PSDB-SP), personagem quase intocável no caso da máfia da merenda e que abriu a mesa de debates gabando-se de defender torcida única desde a década de 1990, a sanha de Castilho em sua guerra particular contra as torcidas e, aparentemente, contra qualquer resquício de cultura popular no futebol paulista não ganhou o endosso da maioria dos presentes.

Deputados da base de Alckmin ou ligados à segurança pública, como Wellington Moura (PRB-SP) e o delegado Olim (PP-SP), não compraram a alternativa fácil de proibir os visitantes. Para eles, o problema da segurança é das autoridades, e não da população. No geral, a cobrança orbitou em torno de temas como a impunidade e a impotência da Justiça em condenar e prender criminosos.

Com o apoio de um ou outro deputado convicto de que a medida 'protege a família' e ataca os arruaceiros, Castilho defendeu seu ponto de vista. "Não acordamos de mau humor e, de uma hora pra outra, tomamos a decisão", argumenta. Segundo ele, a imposição é produto do trabalho de uma comissão formada por diversos setores da segurança pública.

Ainda assim, Castilho deixou transparecer, pelo tom exaltado e ora autoritário – 'típico de nós, promotores', conforme ele mesmo definiu –, que trata-se de uma cruzada contra as uniformizadas. Sua participação na audiência resumiu-se, basicamente, em atacá-las, chegando ao ponto de defender a torcida única como uma forma de sabotar 'importante fonte de renda das torcidas': as caravanas.

Castilho escutou serenamente opiniões contrárias ao longo da Audiência, é verdade. Mas pareceu pouco afeito a mudar de ideia: "A crítica pela crítica não intimidará o Ministério Público", bradou. "O remédio é amargo, sabemos. Mas será aplicado".

Federação Paulista de Futebol, um sopro de esperança?

Surpreende, aos que estão acostumados às sequenciais reeleições por unanimidade da situação à frente da FPF, a posição da entidade expressada pelo seu vice-presidente, Fernando Solleiro. Apesar de a FPF já ter feito pedido, em abril, para o MP-SP rever a decisão da torcida única, Solleiro foi além.

Para o órgão máximo do futebol paulista, proibir visitantes nos confrontos clássicos choca frontalmente com o projeto de trazer o torcedor de volta aos estádios. "A FPF acredita que não é esse o caminho. O futebol não pode ser punido pela intransigência de poucos", salienta. "Além de a medida não combater as torcidas organizadas, já que as do mandante continuam lá, nem todos que estão nas torcidas são criminosos".

Com visão notadamente mais sensível à realidade social que a dos defensores da torcida única, Solleiro comenta que, antes da briga entre palmeirenses e corintianos que deixou uma vítima fatal em São Miguel Paulista, na zona leste da capital, no dia 2 de abril (o episódio foi o estopim que motivou o MP-SP a proibir visitantes), a FPF cogitava anunciar novidades positivas. "Estávamos considerando a volta das bandeiras e a liberação de mais instrumentos de bateria, para incentivar a festa", relata. "Poucos arruaceiros não podem estragar a festa de milhares. Qual será a próxima medida, jogos com portões fechados?".

O sólido contraponto dos jornalistas

Jornalistas convidados a participarem da Audiência Pública trouxeram uma visão bastante importante para o evento, dominado por discursos parlamentares e oficiais. Luís Augusto Simon, o Menon (Blog do Menon), criticou o uso excessivo do conceito de "gente de bem". "Trata-se de uma ideia fascista, como no Chile de [Augusto] Pinochet, no qual os rapazes de cabelo comprido tinham de cortá-lo para serem 'gente de bem'", compara. "É curioso. Muitos aqui que usaram esse conceito também saudaram gente como Marco Polo Del Nero".

Em sua fala, Castilho reivindicou para os especialistas em segurança pública o debate torcidas. Menon rebateu: "Em primeiro lugar, se o debate tem de ficar restrito aos especialistas, não haveria razão de existir a Audiência Pública. Além disso, posso até não entender muito de segurança pública, mas o promotor parece não entender nada de futebol".

Já Rodrigo Vessoni (Lance!) e Mauro Cezar Pereira (ESPN) alimentaram o debate com números, dados e informações fundamentais para evitar a simplificação da discussão. Estudioso dos casos de morte no futebol brasileiro, Vessoni expôs que mais de 60% dos casos ocorreram em dias sem jogos de futebol. Outro dado é que, dos 299 casos registrados desde 1988, apenas nove se deram dentro de um estádio de futebol.

Conforme opina o jornalista, a torcida única não resolve o problema. "Você tira a faixa, o bumbo, o sinalizador, mas os violentos permanecem", diz. "Tenho certeza que os órgãos de segurança e a polícia sabem fazer seu trabalho, até porque em 12 clássicos na Arena Corinthians, desde a sua inauguração, nunca ocorreram problemas. A medida tomada, porém, passa à sociedade a impressão de incompetência e incapacidade destes órgãos e das autoridades".

Estudioso sobre o fenômeno do hooliganismo, Mauro Cezar Pereira trouxe exemplos europeus para desconstruir a visão maniqueísta que as autoridades brasileiras costumam adotar sobre o assunto. Os casos de violência na Eurocopa deste ano envolvendo torcedores ingleses, russos, franceses, alemães, húngaros, poloneses e de diversas outras nacionalidades mostram que o problema está longe de ser brasileiro. A questão, destaca Pereira, é como enfrenta-la.

Ao passo que se reduziu o volume de confusões dentro ou no entorno dos estádios, a impunidade segue predominante. "A torcida única não elimina riscos. A maioria das brigas ocorre longe das praças esportivas e a medida não coíbe emboscadas, tocaias e brigas pela cidade", defende. Como exemplo, o jornalista cita a Inglaterra, onde as punições aos bagunceiros são 'duras e inevitáveis'.

De acordo com o pesquisador Mauricio Murad, o número de violentos no futebol é ínfimo, na ordem dos 6%. Por isso, salienta Mauro Cezar Pereira, a medida da torcida única significa, na verdade, a rendição da sociedade.

O fato é que, ainda que o debate tenha chegado à esfera legislativa em forma de Audiência Pública, abrindo um importante canal de diálogo com a sociedade, a decisão da Secretária de Segurança Pública e do MP-SP segue vigente até o final do ano. Cinco clássicos já se passaram e pelo menos mais oito ocorrerão. Você, leitor, acha que até lá estaremos livres da violência?