Alexandre Weffort: Armadilhas da tentação midiática

Duas entrevistas, uma do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes à Folha de S. Paulo, e outra da senadora Rose de Freitas (PMDB) à Rádio Itatiaia , ajudam a entender os meandros da crise política brasileira. Entendimento que reforça a necessidade de se construir uma saída onde o povo tenha voz determinante: através de eleições.

Por Alexandre Weffort*

Gilmar-Mendes - Agência Brasil Antonio Cruz - Agência Brasil/Antonio Cruz

Começando pela segunda entrevista. A senadora e líder de Temer no Congresso escorrega e confessa: “(…) não teve esse negócio de pedalada. Eu estudo isso, faço parte da Comissão de Orçamento. O que teve foi um país paralisado, sem direção e sem base nenhuma para administrar. A população não queria mais e o Congresso não dava a ela os votos necessários para tocar nenhuma matéria. E o país não podia ficar parado”.

Vamos rever:

a) não houve pedalada fiscal, isto é, não hão há base jurídica para o impeachment; e a pessoa que o declara é conhecedora da matéria, tendo feito parte da Comissão do Orçamento.

b) o país estava paralisado por causa do Congresso; a declaração face ao papel do Congresso na crise atual já havia sido feita pela mesma pessoa no Senado, no dia 18 abril, dizendo aos seus pares:  (…) parecia que eu estava sozinha travando uma luta a favor do país, a favor, inclusive do governo [Dilma] para que ele tivesse um orçamento para trabalhar as suas medidas (…);

c) “e a população não queria mais” – esse é o nó da questão: a direita promoveu o surgimento de multidões manifestando-se contra o governo Dilma, sendo que era a própria direita a, instrumentalizando o Congresso, impedir o governo Dilma de trabalhar; e o logro funcionou, com a conhecida articulação midiática.

d) acresce que a senadora, sabendo na intimidade técnica do assunto, que “não teve esse negócio de pedalada”, mesmo assim posicionou-se a favor do impeachment (a vinculação política sobrepôs-se à verdade do critério técnico, mas não chegou a votar no ato que determinou a suspensão de Dilma, por impedimento de saúde).

Rose de Freitas também não irá votar na conclusão da Comissão Especial do Impeachment no Senado, tendo-se retirado dessa Comissão alegando motivo de incompatibilidade determinado pela sua nova função (de líder do governo no Congresso), escapando assim ao conflito de consciência assinalado.

Como temos sublinhado, ao Senado coloca-se um problema de dignidade institucional e de dignificação da política. Não tendo havido “esse negócio de pedalada”, não há base jurídica para o impeachment. Sobra apenas a política negativa, em que, defraudando o texto constitucional (na letra e espírito), se produz o golpe. Veremos, adiante, como a entrevista de Rose de Freitas desmonta a argumentação política de Gilmar Mendes. Da sua entrevista escolhemos três momentos:

a) Folha – O governo diz que não há justificativa para o impeachment da presidente com base nas pedaladas fiscais e nos decretos que ampliaram os gastos.

Gilmar Mendes – Apresenta-se a questão das pedaladas como se um fosse pecado venial, nada grave. Exatamente esse tipo de maquiagem [nas contas], anestesia, é que permitiu que chegássemos às eleições com quadro de aparente normalidade econômica e permitiu esse resultado catastrófico que temos. Não se trata de pecado venial. Quebrar a estabilidade financeira do país, violar regras básicas significa causar esse mal-estar geral que vivemos.

Rose de Freitas afirmou, conhecedora do detalhe técnico do processo de feitura do orçamento e das dificuldades impostas pelo Senado, que não houve pedaladas fiscais, muito menos que pudessem justificar a quebra da “estabilidade financeira do país”. Seria muita ingenuidade, mesmo para um jurista não necessariamente especializado em economia, atribuir tanto peso a esse episódio contábil.

b) Folha – Há divergências no STF se o tribunal pode ou não julgar o mérito do impeachment. O sr. vê espaço para esse debate?

Gilmar Mendes – A exigência de quórum elevado na Câmara e no Senado [para as votações] é a grande garantia de que não haverá aprovação desse processo de impeachment, a não ser que pesem razões graves e o chefe do Executivo não tenha condições de apoio. Do contrário, o próprio constituinte não teria confiado ao Congresso, teria confiado ao STF.

Aqui se ilumina falha essencial da argumentação: “(…) a não ser que pesem razões graves (…)” – Rose de Freitas já confessou que as razões apontadas (as tais “pedaladas”) não se verificam (isso afirmado por senadora escolhida para líder de Temer no Congresso, que, na Comissão do Orçamento, chegou a sentir-se “sozinha travando uma luta a favor do país, a favor, inclusive do governo [Dilma] para que ele tivesse um orçamento para trabalhar”. Por outro lado, o fato de o chefe de Executivo não ter “condições de apoio” não pode ser considerado “crime de responsabilidade” (não sendo necessário ser constitucionalista, nem jurista, para o saber).

Por último, vem a questão da qualidade intrínseca do ato político-jurídico. O constituinte não atribuiu ao STF e sim ao Congresso a capacidade de aprovar ou não o impeachment, mas não considerou a possibilidade de o Congresso agir sem o escrupuloso respeito pela verdade jurídica dos fatos (apurados em sede judicial – o próprio Senado). Resta saber se ao STF não caberia um papel de zelo pela constitucionalidade do próprio processo.

O espetáculo circense dado pela Câmara no passado dia 17 abril perdura na memória. Poderá o Senado dar outra imagem das instituições e estar à altura do momento? Só o saberemos quando o processo avançar. O tempo urge e a razão política apressa-se. Mas há ainda mais um elemento revelado por Gilmar Mendes que é esclarecedor.

c) Folha – Como ficam as ações de cassação de Dilma e Temer se houve o afastamento da presidente?

Gilmar Mendes – A jurisprudência do tribunal considera que a chapa seria incindível. Se houver a cassação, atinge o candidato e também o vice, o que se faz é distinção de atribuição de pena. A questão que se pode colocar se vier a ocorrer o impeachment é se o processo vai subsistir em relação ao vice. Como o tribunal vai se colocar? […] Cada coisa ao seu tempo. Já temos muitas angústias imediatas.

Nesta declaração, já não vemos apenas um ministro do STF a intervir no foro político: é o presidente do Supremo Tribunal Eleitoral (STE) a indicar um possível caminho político para um processo judicial ainda em curso (processo ao qual ele irá presidir!).

O impeachment constitui instrumento necessário para proteger Temer de uma possível cassação da chapa Dilma-Temer. Como diz Gilmar Mendes, sem impeachment, a jurisprudência considera a chapa “incindível”, logo, o que atinge Dilma atinge também Temer.

Assim, o golpe ganha outro pequeno sentido: apenas proteger Temer, mesmo que à custa da dignidade do Senado, da dignidade dos Tribunais (que não podem agir em função de circunstancialismos políticos). Em suma, à custa da Constituição e do Povo Brasileiro.

*Alexandre Weffort, residente em Portugal, é professor, mestre em Ciência das Religiões e doutorando em Comunicação e Cultura

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