Seleção da França: Maior adversário é a xenofobia

A xenofobia é um fenômeno que tem aumentado de proporções na Europa nos últimos anos, principalmente depois que o Oriente Médio e o Norte da África passaram por conflitos que resultaram em novas ondas de migração para o Velho Continente e, ainda mais, com a realização de atentados terroristas por grupos que são, inclusive, responsáveis pela emigração em massa desses territórios.

Franceses comemoram o segundo gol da vitória contra a Romênia por 2 a 1 na Eurocopa de 2016

A França, que colonizou partes importantes da África e do Oriente Médio, é um dos terrenos mais férteis para o racismo e a xenofobia contra os imigrantes. A discriminação atinge com força uma dos maiores símbolos do esporte francês, a seleção nacional de futebol, que é vítima recorrente da xenofobia, embora seja historicamente uma das seleções mais miscigenadas do continente europeu.

O discurso anti-imigrante já é antigo. Ainda em 1998, antes da seleção francesa conquistar a Copa do Mundo em seu território, Jean-Marie Le Pen, um notório fascista, polemizou ao afirmar que não gostava de tantos "estrangeiros" na seleção, que não sabiam "cantar a marselhesa", referindo-se aos negros e descendentes de norte-africanos que envergavam o uniforme azul, branco e vermelho.

Em artigo publicado há pouco mais de oito meses na revista de futebol Trivela, o jornalista Bruno Bonsanti conta como a xenofobia é daninha ao futebol do país e, paradoxalmente, como o povo não dá a mínima importância à cor da pele ou à origem de quem faz o gol, se é negro ou "árabe". O que importa é abraçar o vizinho na comemoração, seja ele, também, branco, negro ou árabe.

"O primeiro negro a defender o time nacional foi Raoul Diagné, um descendente de senegaleses que nasceu na Guiana Francesa. Disputou a Copa de 1938 ao lado de outros dois descendentes africanos. O time de 1958 tinha Raymond Kopaszewski, filho de imigrantes poloneses, e Just Fontaine, nascido no Marrocos quando o país ainda tinha status de protetorado francês", diz Bonsanti.

No mesmo artigo, o jornalista mostra como imigrantes de países europeus também contribuíram para o futebol francês, como a presença, em 1958, de Raymond Kopa e Maryan Wisnieski, filhos de imigrantes poloneses.

"Além de elevador social, o futebol também serviu para unir os diferentes tipos de franceses, principalmente durante a Copa de 1998, que serviu mais como um exemplo do que o país pode ser do que o gatilho de uma mudança genuína. 'Africanos, argelinos, árabes e marroquinos, todos colocavam a bandeira da França nas janelas', disse Desailly à revista Four-Four-Two, sobre as viagens de ônibus que a delegação fazia durante o torneio", diz o artigo.

"Eles estavam se misturando com o povo francês e todos cantavam juntos e todos tinham os rostos pintados de azul, branco e vermelho. Se Zidane ou Thuram marcassem, todos comemorariam, e as pessoas não se importavam se estavam dando abraços em pessoas negras, amarelas ou azuis".

O time desta Eurocopa tem vários jogadores negros e apenas um, Adil Rami, de ancestrais árabes. E o técnico Didier Deschamps foi justamente criticado ao deixar de fora duas estrelas de ancestrais argelinos: Karim Benzema e Hatem Ben Arfa. Isso suscitou reclamações de todos os lados, mas as mais contundentes vieram de um dos maiores astros da seleção francesa na história: Eric Cantona.

Ele mesmo uma mistura de catalães e italianos, Cantona foi um dos maiores craques franceses, que não teve a sorte de participar do elenco que foi campeão do mundo em 1998 por já estar em fim de carreira. Astro do Manchester United, Cantona é de esquerda e não poupa críticas ao técnico de seu país:

"Benzema e Ben Arfa são ótimos, mas é o Deschamps quem tem um nome francês ‘de verdade’", ironizou Cantona, em entrevista ao jornal The Guardian.

"Talvez ele seja o único na seleção francesa que tenha um nome verdadeiramente francês. Ninguém na família dele se misturou com pessoas de outras raças, sabe? É como os mórmons nos Estados Unidos", disparou Cantona, sem papas na língua, ao saber que os dois jogadores não tinham sido convocados para a Euro2016.

Cantona ainda lembrou do primeiro ministro francês, Manuel Valls, que pediu publicamente que Deschamps deixasse Benzema de fora da seleção. O ex-jogador classificou o político como um "hipócrita" e afirmou que enquanto o atacante do Real Madrid segue de fora da equipe, "políticos envolvidos em escândalos seguem em seus cargos". Valls, ironicamente, é também um descendente de imigrantes.

"Não estou surpreso que ele usou a situação de Benzema para não o chamar, especialmente depois que Valls disse que ele não devia jogar pela França. Ben Arfa hoje é melhor jogador em atividade na França. Mas eles têm as mesmas origens… Acho que posso me permitir pensar desta maneira", afirmou, antes de sugerir as motivações racistas de Deschamps.

"Uma coisa é certa: Benzema e Ben Arfa são dois dos melhores jogadores da França, mas não irão jogar a Eurocopa. E, com certeza, Benzema e Ben Arfa têm suas raízes no norte da África. Portanto, o debate está aberto".

Para ele, uma das consequências de uma possível vitória da França na Eurocopa de 2016 é o recrudescimento da xenofobia no país.

"As pessoas da direita vão se aproveitar dessa situação. Eles misturam tudo: Estado Islâmico, atentados, refugiados. Nós temos que ser mais espertos. Precisamos ajudar as pessoas que realmente precisam de ajuda. São nelas que precisamos pensar", encerrou.

Quem poderá esquecer Michel Platini, descendente de italianos e que foi, talvez, o futebolista mais importante da história da França, ao lado de Zinedine Zidane? E os calmuques – um dos povos da Rússia – pai e filho, Jean Djorkaeff e Youri Djorkaeff?

A França desta Euro tem nada menos que 17 jogadores com ancestrais de fora da França ou negros. São eles: Lloris, Mandanda, Rami, Koscielny, Mangala, Umtiti, Evra, Sagna, Pogba, Matuidi, Schneiderlin, Kanté, Sissoko, Griezmann, Payet, Martial e Coman.

Apesar do racismo, da xenofobia, a França segue acompanhando fervorosamente sua seleção, que tenta conquistar o terceiro título da competição, vencida anteriormente em 1984, na própria França, e em 2000, na Bélgica e na Holanda.