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Fogueiras na Alma

“Olha pro céu, meu amor/ Vê como ele está lindo/ Olha praquele balão multicor/ Como no céu vai sumindo/ Foi numa noite, igual a esta/ Que tu me deste o teu coração” (Luiz Gonzaga / José Fernandes).

23 de junho. No comecinho da noite, em frente a uma casa nos arredores da cidade, uma fogueira clareia o mundo.

Por Joan Edesson de Oliveira*

Fogueira de São João - Divulgação

A lua, descambando de cheia para minguante, recolhe-se por detrás de algumas nuvens, como a permitir, conscientemente, que a noite seja iluminada apenas pelo brilho daquela fogueira. É véspera de São João, a noite em que se acendem as fogueiras. Essas fogueiras ancestrais que os homens, há milênios, acendiam para celebrar a colheita. Aqui também, nesses sertões, quando colheita há, que a quase década de seca seguida deixou pouco para se celebrar.

E ainda assim, acendem-se as fogueiras. Verdade que o ano não foi bom para a colheita, as chuvas escassas, os olhos postos constantemente no levante, à espera de um fiapo de nuvem negra, as narinas assuntando o cheiro do vento, a ver se ele trazia uma nesga de chuva, rala, retalhos de água, que fossem.

Acendem-se as fogueiras no terreiro das casas. Meninos correm feito as faíscas que o vento leva, brilhantes meninos que se alam e se agitam como as bandeirolas grudadas nos barbantes esticados do poste à árvore, da árvore à ponta do caibro no alpendre da casa.

Por um instante volto no tempo, à cidade em que nasci, à festa de São João, seu padroeiro. Por um instante, sou novamente aquele menino que vestia roupa nova duas vezes ao ano, em junho e em dezembro, no Natal. Por economia, o tecido era um só para todos, e saíamos felizes na noite de 23 de junho, com aquelas roupas novas e iguais, uma tropinha fardada, o sapato apertado fazendo calos, a sola nova gemendo sob os pés.

Na praça da Matriz os olhos de menino cobiçavam o carrossel, a canoa, a roda gigante brilhante que ali aportava, feito as minhas roupas novas, duas vezes ao ano apenas. Os olhos de menino cobiçavam os bichinhos de barro vendidos num canto da praça, o pote de aluá, as cocadas, os rói-rói, as chuvinhas. No bolso da calça curta, solitária moedinha, tesouro incalculável na pobreza de então, não dava para tudo aquilo.

Os olhos de menino espiavam o sanfoneiro cego que tocava seu Luiz, espantados com essa estranha atração entre os cegos e a sanfona, como se um buscasse o outro por esses sertões adentro. Os olhos de menino cobiçavam também, pra que negar, os olhos das meninas que passavam, tonteando pela praça, as saias novas em rodopio, feito o carrossel andarilho do parque cigano.

Por um instante, Manuel Bandeira ecoa em minha memória, e procuro, dentro de mim, ouvir as vozes de todos aqueles que ouvia, o alarido daquelas vozes que ouvia nas noites de São João. E procuro, uma a uma, aquelas vozes na minha memória, aqueles rostos, aqueles cheiros, aqueles todos, tão distantes. E como Bandeira, percebo que “estão todos dormindo, estão todos deitados, dormindo profundamente”.

Olhando aquela casa na beira da estrada, aquela fogueira acesa e aqueles meninos voando ao redor, feito balões no ar, de repente descubro-me órfão, um homem sozinho na noite, um João qualquer, apenas uma lágrima perdida na noite.

E de repente, outras fogueiras que se acendem, outros meninos que voam dentro da noite, o som longínquo de uma sanfona, tocada, quem sabe, por algum cego, me fazem sentir novamente o menino de outrora, o menino de olhos tristes que fui, com fogueiras acesas dentro da alma.

A fogueira tá queimando
Em homenagem a São João
O forró já começou
Vamos gente, rapa-pé nesse salão

Dança Joaquim com Zabé
Luiz com Yaiá
Dança Janjão com Raqué
E eu com Sinhá
Traz a cachaça Mané!
Que eu quero ver
Quero ver paia avuá
(Zé Dantas / Luiz Gonzaga)