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José Varella – Niemeyer e a Cabanagem

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Ao completar 100 anos de idade, Oscar Niemeyer disse ao jornal britânico “The Times” não se sentir importante. “A data não é importante. A idade não é importante. O tempo não é importante. A arquitetura não é importante. O que nós criamos não é importante. Somos muito insignificantes”, declarou. “O que é importante é ser tranqüilo e otimista”. Um monge taoista diria a mesma coisa que diz este fino ateu que gostaria de ser católico, caso valesse a pena.
 


Na reportagem, o jornalista Tom Dyckhoff compara sua entrevista com o arquiteto de Brasília como “o encontro com uma lenda, um nome saído dos livros de história, como Rodin, Picasso ou Jesse James”. Niemeyer confessou: “O que me faz levantar todas as manhãs é o mesmo de sempre: a luta, o comunismo puro e simples”. Para ele, o mundo, a América do Sul, o Brasil e o Rio de Janeiro estão melhor, “apesar de George W. Bush e das favelas”. Completou, “Fidel, Chávez, eles representam a luta de hoje. O capitalismo domina, mas ele vai fracassar. Tenho fé nisso. A revolução não pode parar.”
 


 


A revolução permanente rumo ao comunismo puro e simples,  fé na humanidade, sem dúvida. Uma fé alimentada pela razão e mitigada pela simplicidade infantil de todas as idades da vida. Aquilo que fez Santos Dumont inventar a máquina mais pesada do que o ar capaz de voar… Utopia pós-industrial agora, com a mudança climática. O que faz com que Domenico De Masi considere Oscar Niemeyer o intelectual e revolucionário perfeito, exemplo de ócio criativo e concretude. Mas, não há exagero em se considerar simples este espírito da Modernidade com seu devaneio da busca da leveza das curvas transformadas da dureza do aço e da plasticidade do concreto? Não há uma contradição invencível na dialética quixotesca do ideal com a complexidade da matéria? Não morrem aí a liberdade, igualdade e a fraternidade entre grilhões da “cadeia produtiva” aonde moureja o proletariado preso a um magro salário, como no passados servos ou escravos obrigados a construir as pirâmides dos faraós?
 


 


O grande arquiteto se entristece do agudo contraste entre palácios e favelas. E o mundo civilizado sofre a síndrome de Versalhes paralizado diante da perspectiva de mumificação. A linguagem do concreto na arquitetura de Niemeyer revela o paradoxo dialético da prancheta e da colher de pedreiro. Casamento urdido pela técnica e a arte. Tem fundamento filosófico e politico semelhante ao barroco egresso do gueto através da religiosidade do Medievo e da loucura dos alquimistas levando – por necessidade e acaso – a descobertas da química.
 


 


A lição de vida deste comunista tranquilo, arquiteto de sonhos materializados em palácios, catedrais e monumentos; contrasta com a violência e as paixões destes dois séculos tremendos que ele viveu e vive ainda; ajudando a mitigar a inescapável feiúra da paisagem industrial e o horror do sistema que faz de homens lobos de homens. Para a Revolução, eu acredito, o exemplo desta vida centenária vale mais que cem heróis mortos e idolatrados…
 


 


Esquecido dos festejos do aniversário do arquiteto, o monumento da Cabanagem, em Belém do Pará, assinala o discurso da concretude de Niemeyer na Amazônia. Ali, no Entroncamento da rodovia Belém-Brasília com a península que projetou a saga dos Tupinambá, através do caminho do Maranhão, no “rio das amazonas”, ele quer dizer alguma coisa aos brasileiros.
 


 


O monumento da Cabanagem não é a obra mais querida e conservada da capital do Pará, que fez opção preferencial pela belle époque e o patrimônio colonial relegando a segundo plano, inclusive, o tempo arqueológico. Nem é o monumento da revolução paraense a mais famosa, mais bela e mais cara obra de Niemeyer.  O projeto teria sido presente do arquiteto às comemorações do sesquicentenário da revolução de 7 de Janeiro. Obra do governador Jader Barbalho por iniciatica do historiador Carlos Rocque.
 


 


O quanto basta, todavia, para simbolizar o tributo cabano aos 100 anos de Oscar Niemeyer. E à tentativa de leitura caboca do discurso arquitetônico da Cabanagem. Começa pelo equívoco do nome dado de fora à revolução amazônica e o fato politicamente intrigante de um “Palácio Cabanagem” hospedar nobres representantes do povo ribeirinho habitante de “cabanas” sobre palafitas… O monumento do Entroncamento, em vez de guarda de honra e pira acesa noite e dia, para a gente ver ali o índice de sua própria história; anda entregue, segundo páginas policiais dos jornais, à malta de usuários e traficantes de droga e prostituição. Imagem cruel, mas não estranha à marginalização dos “cabanos” há 400 anos.
 



O paradoxo da folclorização com a boa intenção se explica no monumento da Cabanagem em concreto pelo invísível dedo fraturado da História. O artista foi contundente na forma e compreendeu, de estalo que nem o padre Vieira; o movimento popular dando rumo e ritmo ao desenvolvimento endógeno da Amazônia. O indicativo da res publica apontando ao futuro. Entretanto, decepado pela cega arrogância do improvisado império luso-anglo-brasileiro do Rio de Janeiro.
 



É o que os passantes do Entroncamento poderiam saber do tempo e do espaço amazônico, se soubessem ler o discurso dos monumentos, palácios e igrejas da paisagem cultural da cidade. Mas, a sociedade envergonhada deste IDH materializado em concreto, não faz questão de traduzir em prosa e verso a escritura enterrada com os ossos dos heróis mortos na crípta escura.
 


 


Até hoje o melhor intérprete daquele dedo fraturado foi o sociólogo e historiador Pasquale Di Paolo, com sua criteriosa obra, notadamente Cabanagem: a revolução popular da Amazônia. Di Paolo traçou roteiro histórico pelo qual o viajante do tempo amazônico pode entender claramente a metáfora de Niemeyer. Primeiro que, historicamente, não é correto o nome “cabanagem”. Uma bobagem perpretada por Basílio de Magalhães por comparação à Cabanada de Alagoas. Aqui, como o historiador Domingos Antônio Rayol, contemporâneo aos acontecimentos, registra; combatentes paraenses nunca se intitularam “cabanos”… Nem a geografia ribeirinha jamais teve cabanas, mas “barracas”, “palhoças” ou “tapiris” para moradia de índios, cabocos e escravos implicados na revolução de 7 de Janeiro. E seus inimigos não lhes deram outros nomes além de “perversos”, “assassinos”, “malfeitores”…
 


 


Na verdade, em proclamas e manifestos revolucionários  os amazônidas tapuios, índios e pretos foram chamados às armas como filhos dos “Ajuricabas” e “Nheengaíbas”… Não há equívoco nem exagero quando Di Paolo, ao contrário de Rayol que situa  antecedentes da revolta popular a partir na “tragédia do brigue Palhaço”, de outubro de 1823 (assassinato de duas centenas de patriotas paraenses nos porões de navio transformado em prisão, a mando do agente inglês do império do Brasil mandado a Belém), retrocede a 7 de janeiro de 1619: primeiro ato de protesto à usurpação do terriório e escravidão dos índios em mãos dos conquistadores.
 



Naquele distante dia do século XVII, o Bom Selvagem tupinambá atacou o forte do Presépio [do Castelo, mais tarde], ao  ver que eram falsas as promessas dos colonizadores e fartas as violências. Os índios se levantaram do Maranhão ao Pará matando e destruindo. O murro em ponta de faca lhes saiu muito caro. Pois a represália dos brancos multiplicou por mais de cem as vítimas da vingança contra a morte de uma centena de iludidos açorianos. O capitão Bento Maciel Parente se destacou no genocídio dantesco… Sobreviventes de índios e colonos entrecruzaram-se e, duzentos anos depois, se encontraram em armas ao preço final de 40 mil mortos em população de 100 mil habitantes.
 



Luta de classes agravada por forte discriminação racial em contexto geográfico do Trópico Úmido (a nova zona tórrida das velhas Antípodas). Mas, no silêncio da crípta da Cabanagem, mal cuidada, entre chuvas e esquecimento vagam fantasmas dos  mortos daqueles dois 7 de Janeiro que se resumiram no monumento ofertado por Niemeyer, em 1983, e inaugurado pontualmente a 7 de janeiro de 1983, na data do Sequicentenário. Di Paolo demonstrou com contundência e serenidade ao mesmo tempo – à modo de Frantz Fanom – a contradição insuperável da escravidão na Amazônia: nas Américas de clima temperado “índio bom é índio morto”, nos trópicos sem índios era o Branco que estava morto…
 



A sombra da revolução do Haiti projetava-se sobre o Pará cabano em crise de governança na passagem do colonialismo português ao neocolonialismo brasileiro: causa de triunfo e  perdição, o apelo aos descencentes dos “Ajuricabas” (do nome do herói anti-escravista do Rio Negro, no começo do século XVIII) e “Nheengaíbas” (combatentes indígenas anti-coloniais das ilhas do Marajó pacificados pelo payaçu Antônio Vieira, com  promessas de cumprimento da lei de abolição dos cativeiros, de 1655) perdeu-se pela improvisão de líderes ao deus dará das mais fortes emoções.
 


 


O clero e a maçonaria, duas forças de elite naquela época, se misturavam e se digladiavam entremuros. Ambas instituições no inusitado da colônia perderam o sentido da realidade e o controle da massa ainda sedenta de sangue de sacrífícios rituais da antropofagia. O veto do padre e maçom monarquista Queiroz à admissão à loja maçônica do filo-republicano cônego Batista Campos foi estopim da crise de 1835: a dita loja foi um dos primeiros alvos dos cabanos em fúria, depois do incêndio do Palácio do Governo e assassinato do presidente da província suspeito de pertencer à maçonaria. A igreja dividida entre conservadores e filantrópicos dentro do Padroado português transplantado ao Brasil assumiu papel ambíguo e pegou em armas de um lado e outro da guerra-civil. Caudilhos entre mataram-se e o povo recalcado há séculos, atônito entrou em transe. A sociologia amazônica de Pasquale Di Paolo mergulha fundo no inconsciente primtivo e emerge com uma análise politica magistral.
 


 


O discurso concreto do monunento mudo da Cabanagem fala ainda da fratura da História diante de olhares sem curiosidade e sem espanto. Mas, a revolução permanente na qual Niemeyer coloca fé, promove agora a terceira onda da “R.A.7” (Revolução Amazônica 7 de Janeiro). Ou, “terceira cabanagem” como dizem já alguns cabocos ladinos crentes da democracia participativa, prometida como outrora a esquecida lei de dom João IV, com a restauração sebastianista do reino de Portugal. Será que desta vez vai, no plano internacional e republicano da lusofonia e da latinidade, por exemplo?
 


 


Algo que, pela consciência histórica recuperada da fratura e do trauma, aproxima em criatividade e concretude dois homens do Sul tão díspares e, entretanto, próximos pela arquitetura do tempo pós-colonial: Oscar Niemeyer do Brasil e Nelson Mandela da África do Sul.


 


 


Belém do Para, 15 de dezembro de 2007