Globo e a crise do futebol brasileiro

“A Globo é a única que transmite gratuitamente em TV aberta, como também fazemos com o futebol brasileiro há 40 anos. Mas protestar é direito do cidadão.” Galvão Bueno, na TV Globo, em 02.03.2016, ao falar sobre protesto de torcedores do Corinthians.

Por Luiz Carlos Azenha*, no blog Viomundo

Faixas exibidas pela torcida do Corinthians nesta quarta-feira - Foto: Reprodução

“2015 vai entrar na história do futebol brasileiro como um grande ano. O ano em que há poucas semanas o presidente José Maria Marin passou o bastão para o presidente Marco Polo. Presidente Marin, em nome do grupo Globo, em meu nome, eu gostaria de agradecer todo o carinho, toda a atenção com a qual o senhor sempre nos brindou, sempre aberto a discutir os temas que interessam ao futebol brasileiro, dos quais me permito destacar, o novo formato da Copa do Brasil, que deu mais charme a essa competição promovida pela CBF, que é a verdadeira competição do futebol brasileiro.” Marcelo Campos Pinto, ex-todo-poderoso da Globo Esportes, discursando em evento em 2015.

A frase de Galvão Bueno, dita durante uma partida entre Corinthians e Santa Fé, no Itaquerão, pela Libertadores da América, foi uma resposta às várias faixas que a Gaviões da Fiel exibiu na arquibancada. “Futebol refém da Globo”, dizia uma delas. “Globo manipuladora”, dizia outra.

O protesto da organizada do Corinthians se refere a vários aspectos do futebol, dentro e fora dos estádios.

É contra o fato de que a Globo define o calendário e o horário das partidas independentemente do interesse dos torcedores ou dos clubes, por exemplo.

Ao fato de que a emissora apoia a criminalização das organizadas e defende a punição coletiva a elas advogada pelo promotor Fernando Capez, que se elegeu deputado estadual graças à exposição midiática que obteve com suas propostas de combate à violência dentro e fora dos estádios.

É a Capez que a Gaviões se refere quando denuncia o “ladrão de merenda” – o hoje presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo e possível candidato de Geraldo Alckmin a governador em 2018 teria se beneficiado de propinas, num esquema de corrupção envolvendo a merenda escolar.

A resposta de Galvão aos protestos foi, em si, um exemplo da manipulação denunciada pelos corinthianos: ali, na Globo, segundo o narrador, os corinthianos poderiam ver de graça um jogo que teriam de pagar se quisessem assistir na Fox Sports, emissora acessível apenas na TV por assinatura e que comprou os direitos exclusivos para a TV fechada.

É como se a Globo fizesse um favor aos telespectadores e não tivesse faturado um tostão sequer ao longo de sua parceria de 40 anos com a CBF.

O lado sujo do futebol

O livro, do qual sou coautor ao lado de Leandro Cipoloni, Tony Chastinet e Amaury Ribeiro Jr., narra como João Havelange e seu genro e sucessor, Ricardo Teixeira, montaram uma arquitetura de poder oligárquica no futebol brasileiro que persiste até os dias de hoje.

José Maria Marin e Marco Polo Del Nero sucederam Teixeira e absolutamente nada mudou. Um está preso nos Estados Unidos, os outros dois não podem sair do Brasil.

A CBF se estrutura em torno de federações estaduais e clubes que são verdadeiros feudos e tem um formato de funil com o bico para cima: na prática, tira dos de baixo para beneficiar os de cima.

Tal arquitetura eterniza a ideia de que o Noroeste de Bauru, o Treze de Campina Grande e o ABC de Natal existem apenas para servir aos “grandes”.

Tal estrutura não teria sido erguida não fosse a parceria histórica com a TV Globo: os direitos de TV são a principal fonte de renda dos clubes e das próprias federações, já que para agradá-las Ricardo Teixeira inventou a Copa do Brasil, um torneio de 86 clubes que distribui migalhas a dirigentes e jogadores mas acaba essencialmente servindo ao funil.

Não existe um único caso de um clube que tenha se estruturado em torno da Copa do Brasil.

No campeonato, os “pequenos”, os “de longe”, repetem o ciclo que se vê com milhares de jogadores e técnicos que trabalham nas divisões inferiores: salários baixos, trabalho precário, risco sempre iminente do clube desaparecer do mapa.

A chance única: brilhar sob os holofotes da TV num lance fortuito, um gol espetacular, uma vitória improvável.

Como escrevemos no livro, a parceria com Havelange, Teixeira e sucessores serviu aos cartolas, mas serviu essencialmente à própria Globo.

Quando os grandes ensaiaram um clube dos 13 como embrião de uma liga independente, foram esmagados pelo trabalho de bastidores da emissora, ao lado de Ricardo Teixeira.

Escrevendo no Viomundo, Emanuel Leite Jr. resumiu como a Globo ainda hoje promove o apartheid no futebol brasileiro.

Emanuel é autor do livro Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização.

Os irmãos Marinho definem o valor que consideram “adequado” e dividem o bolo de acordo com critérios arbitrários, definidos a partir de seus objetivos comerciais.

O clube do grupo 7 almeja chegar ao grupo 6 e assim sucessivamente.

Fora do quadro estão as centenas de clubes que formam a verdadeira base do futebol brasileiro, aquele que apanhou de 7 a 1 da Alemanha e perdeu de 1 a 0 com gol de mão do Peru.

Para preservar sua altíssima taxa de lucro, é imperioso para a Globo manter a estrutura desigual dos dias de hoje, em que negocia clube a clube.

É muito diferente ter, do outro lado, uma liga independente, capaz de avaliar o verdadeiro valor dos direitos de TV e de explorar a disputa entre diferentes emissoras, como acontece com todos os principais esportes coletivos dos Estados Unidos, por exemplo.

Na NFL, a do futebol americano, diferentes pacotes de transmissão são vendidos para diferentes emissoras. Os clubes dão as cartas.

O valor total é rateado e dividido igualmente entre eles.

O objetivo é ter um campeonato mais competitivo.

É permitir que um clube de uma pequena cidade do interior seja campeão nacional.

É ter um mercado razoavelmente homogêneo, que produza público nas arquibancadas e venda de camisetas capazes de reforçar o caixa.

Apesar de todos os jogos do futebol americano serem transmitidos pela TV em distintas plataformas, a pior média de público de 2015 foi do Los Angeles Rams, com 52.402 pessoas por partida; no soccer, a média em 2015 nos Estados Unidos foi de 21.574 pessoas por partida; em 2016, até agora, a média no Campeonato Brasileiro do país do futebol é de 12.217 pessoas.

Para a Globo, tanto faz o clube ter 100 pessoas ou 20 mil nas arquibancadas de seu estádio.

Aliás, se tiver apenas 100 o clube ficará ainda mais dependente das antecipações de receita que a emissora costuma fazer para dar margem de manobra aos cartolas.

Formada pelos clubes, o principal compromisso da NFL é com a saúde financeira dos próprios clubes.

Enquanto isso, no Brasil, a CBF tem uma existência simbiótica com a Globo: muitas vezes, os patrocinadores da seleção brasileira, a maior forte de renda dos cartolas, são os mesmos dos grandes eventos da emissora!

É a CBF rica, assentada sobre clubes instáveis, que por sua vez estão no topo de uma pirâmide de miseráveis.

Quando denunciam o estado do futebol brasileiro, os jornalistas não têm coragem de apontar o dedo para o papel essencial da Globo nesta arquitetura injusta: pode ser o próximo emprego.

Mas, o que a Globo poderia fazer?

É uma pergunta que os próprios torcedores se fazem.

Eles costumam argumentar que a Globo não entra em campo e, portanto, não pode responder por todas as mazelas do nosso futebol.

Verdade.

Porém, a Globo poderia fazer muito mais do que faz pela reforma do futebol, que no momento é absolutamente nada.

Poderia usar o poder de seus telejornais para promover um debate sobre decisão judicial inédita, que trancou a troca de informações entre autoridades brasileiras e dos Estados Unidos no escândalo da FIFA investigado pelo FBI.

Para dar um exemplo: foi a colaboração de autoridades suíças, na Lava Jato, que permitiu chegar aos dados comprometedores para o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que podem levar à delação premiada mais aguardada pelos brasileiros. Se Cunha delatar, pode arrastar com ele mais de 150 parlamentares.

Hoje, nos Estados Unidos, o empresário J. Hawilla e o ex-presidente da CBF, José Maria Marin, colaboram com as autoridades. Mas os investigadores norte-americanos dependem de documentos que só poderiam obter no Brasil para amarrar várias pontas.

Porém, em 30 de setembro do ano passado uma turma do TRF-2, do Rio de Janeiro e Espírito Santo, decidiu, por 2 votos a 1, conceder habeas corpus impetrado pelos advogados do empresário Kleber Leite e da empresa Klefer Produções e Promoções Ltda.

Os desembargadores Ivan Athié e Paulo Espírito Santo venceram o voto da colega Simone Schreiber ao entender que não pode haver cooperação direta entre autoridades dos Estados Unidos e do Brasil que não passe antes pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal.

É uma questão importante, polêmica e que realmente deve ser tratada com cuidado, já que existem aspectos da colaboração internacional que podem envolver questões de soberania nacional.

Mas, neste caso específico, para além da justa preocupação dos desembargadores, trata-se também de revirar as entranhas da corrupção no futebol, que é um esporte de âmbito internacional: as propinas circulam entre empresas e dirigentes esportivos de diferentes partes do mundo.

Por conta do habeas corpus, todas as decisões de primeira instância ficaram suspensas e todos os documentos obtidos em busca e apreensão na sede da Klefer, por exemplo, foram devolvidos, tornando-se de fato imprestáveis para uso, tanto na Justiça dos Estados Unidos quanto no Brasil.

No mesmo processo, que corre em segredo de Justiça, a 9ª Vara Federal do Rio de Janeiro havia determinado a quebra do sigilo fiscal de Ricardo Teixeira e da filha dele, Antonia, hoje uma adolescente.

São as pontas do lado de cá das delações obtidas nos Estados Unidos.

A Procuradoria Geral da República no Rio recorreu. Espera derrubar a decisão em instâncias superiores, mas isso atrasa o processo de investigação.

Se prejudica os investigadores do FBI e da Promotoria norte-americana, faz o mesmo quanto a possíveis investigações no Brasil.

Como demonstramos em O Lado Sujo do Futebol, quase todas as tentativas de investigar Ricardo Teixeira ou a CBF ao longo de décadas morreram na Justiça brasileira. Não fossem as autoridades suíças…

Ao tratar do assunto no Jornal Nacional com a mesma ênfase que tem dado à Lava Jato, ou seja, de forma diária, a Globo poderia deixar claro que interessa à população brasileira a investigação de todos os escândalos, inclusive o dos negócios do futebol.

Que as preocupações dos dois desembargadores sejam atendidas e o processo possa andar rápido, com uma troca de informações que leve Hawilla, Kleber e o próprio Teixeira a responder por eventuais crimes cometidos, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.

Ao defender a colaboração com o FBI, o Jornal Nacional poderia reparar o terrível erro que cometeu no dia 12.03.2012, quando o repórter Tino Marcos dedicou três frases às denúncias contra Ricardo Teixeira – que naquela data se afastou da CBF – antes de passar a elogiá-lo efusivamente.

Ao longo da carreira, Ricardo Teixeira foi alvo de denúncias.

Diante de todas elas, Teixeira sempre disse que as acusações eram falsas e tinham caráter político.

A denúncia mais contundente foi a de que ele, e um grupo ligado a FIFA, teriam recebido dinheiro de forma irregular nas negociações de uma empresa de marketing esportivo, em 1999. Viu os processos serem arquivados pela Justiça.

A empresa de marketing esportivo à que o JN aludiu é a ISL, que faliu deixando um rombo bilionário. Era a grande fábrica de propinas da cartolagem internacional.

Em O Lado Sujo do Futebol tratamos detalhadamente das origens do escândalo. A ISL foi um braço da Adidas, cujo dono foi um dos grandes parceiros de negócios de Havelange.

No câmbio de hoje, Teixeira e o sogro Havelange foram acusados pelo promotor Thomas Hildbrand, do cantão de Zug, na Suíça, de terem recebido R$ 79.168.625,50 em propinas da ISL, especialmente através de uma empresa fantasma de nome Sanud, baseada no paraíso fiscal de Liechtenstein.

A origem do dinheiro? Os negócios envolvendo direitos de televisão. Assim como adianta dinheiro no Brasil aos cartolas, a Globo adiantou pagamento à ISL para tentar evitar a bancarrota da empresa-parceira.

Quem monopolizou os direitos da Copa do Mundo junto à FIFA e do futebol brasileiro junto à CBF durante o reinado da ISL, de Havelange e de Teixeira? A Globo.

Nas palavras de Galvão, “como fazemos há 40 anos”.

Está na hora da emissora acabar com as quatro décadas de omissão e manipulação quando se trata das mazelas – e notícias – do futebol brasileiro.