O impeachment e o plebiscito

É essencial que os movimentos empunhem a agenda do plebiscito: o povo deve ser consultado sobre a antecipação de eleições presidenciais e legislativas.

Pedro Paulo Zahluth Bastos*

Dilma Rousseff - Foto: Lula Marques/Agência PT

A hipótese de que o impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi um evento jurídico perfeito, ou seja, que não foi um golpe, não é mais defendida por nenhum observador desinteressado, ou pelo menos capaz de mudar de opinião à luz de evidências.

Duas evidências recentes destruíram os últimos argumentos quanto à legalidade do impeachment. Primeiro, como se sabe, as gravações em que líderes do PMDB como Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney tramavam contra a Operação Lava Jato e admitiam a necessidade, com o impeachment, de “parar a sangria” do sistema político corrupto.

Os corruptos reconheceram que Dilma precisava ser afastada porque não admitia um acordo para barrar as investigações sobre a corrupção. A legislação brasileira, contudo, não prevê a revogação de mandato por causa da perda de apoio parlamentar do presidente, e muito menos porque este resista a um acordo para proteger parlamentares corruptos, como Dilma resistiu (ver, na Carta Maior, o artigo “Quais os objetivos políticos do golpe?”).

Não há melhor indicação do primeiro objetivo político ilegítimo do impeachment – salvar a pele de corruptos – do que o fato que nenhuma das conversas gravadas trataram do motivo declarado para o impeachment, as chamadas “pedaladas” fiscais (ver, na Carta Maior, o artigo “Por que o impeachment é um golpe?”).

O pretexto do impeachment e a inação do Supremo Tribunal Federal

Quanto às “pedaladas”, seu uso como pretexto foi inteiramente desmascarado quando as duas principais testemunhas de acusação escaladas pelo governo Temer, na primeira oitiva da Comissão de Impeachment do Senado Federal em 8 de junho, admitiram que não há ilegalidade nos decretos orçamentários nem no Plano Safra de 2015. Os atos administrativos não passaram pela presidenta e não se confundem com um crime de responsabilidade.

As testemunhas de acusação realçaram o absurdo da declaração um pouco anterior do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que em palestra na UNB no mesmo dia afirmou que “não é papel do Supremo jogar o jogo político quando ele chega nesse estágio. Essa deixa de ser uma questão de certo ou errado e passa a ser uma questão de escolhas políticas. Não é papel do Supremo fazer escolhas políticas”.

O argumento de Barroso que o STF não pode julgar o processo do impeachment é absurdo: primeiro, porque a disputa política em uma democracia segue regras cujo desrespeito deve ser avaliado pelo STF, que não pode admitir o vale-tudo. Segundo, porque o STF estaria agindo politicamente e assumindo o papel do Legislativo ao reinterpretar a lei do impeachment a ponto de admitir que prescinda de crime de responsabilidade (considerando que nem toda infração significa tal crime).

Na prática, o STF modifica a lei caso se recuse a avaliar se os decretos orçamentários significam crime de responsabilidade. Ao fazê-lo sob o pretexto que não pode intervir na luta política, admite que a luta política pode ser feita em um vale-tudo, como se não houvesse leis que a limitem e que devam ser resguardadas pelo próprio STF. Seria chancelar qualquer golpe político sob o argumento de que um poder não pode interferir em outro, mesmo que a inação do STF tenha o efeito prático de proteger a manobra política de corruptos para defender um sistema político corrupto.

Se o STF se recusa a intervir para defender a soberania popular e as leis diante do ataque de políticos corruptos, o que pode garantir a soberania popular senão ela mesma?

A urgência de um plebiscito popular

Todo poder emana do povo. Dilma Rousseff foi eleita popularmente, mas perdeu popularidade por causa dos escândalos de corrupção e, principalmente, porque implementou o programa econômico de seu adversário e jogou uma economia estagnada em uma recessão profunda. Assim, ficou vulnerável ao ataque de políticos que nunca disfarçaram bem o golpismo.

Hipocritamente, seus adversários a acusaram de estelionato eleitoral, mas passaram a defender e, no governo interino, implementar um programa neoliberal radical de corte de direitos sociais, já anunciado no programa “Uma Ponte para o Futuro” do PMDB em novembro de 2015, mas inteiramente desconhecido da população que foi às urnas em 2014 (ver, na Carta Maior, o artigo “O impeachment de Dilma Rousseff e o programa do novo PMDB”).

Para dar uma ideia de quem o programa atende, Temer e Meirelles anunciaram uma regra fiscal que limita a ampliação de gastos à taxa de inflação, ou seja, veta aumentos reais de despesa, independentemente do aumento da população, do PIB ou da vontade popular. Se a regra fosse seguida em 2005 quando Pallocci e Delfim Neto defendiam limites para o gasto público, o gasto em saúde seria 30% menor e em educação 70% menor em 2015, mas a “poupança fiscal” seria ampliada para permitir pagar uma conta de juros ainda maior.

O Banco Central estaria livre para colocar os juros nas alturas sem provocar uma explosão do endividamento público, porque o Estado brasileiro se transformaria gradualmente em um mero repassador de tributos e patrimônio público para portadores de títulos públicos. O sentido econômico e social do golpe é transformar o Estado em um Robin Hood às avessas (ver, na Carta Maior, o artigo “Quais os objetivos econômicos do golpe?”).

Não surpreende que até o principal redator do programa “Uma Ponte para o Futuro”, o ex-ministro da Previdência Social de FHC Roberto Brandt, admita seu caráter antidemocrático:

“O desequilíbrio fiscal brasileiro está contratado nas leis, na Constituição, que precisam ser alteradas (…) Esse documento não foi feito para enfrentar o voto popular. Com um programa desses não se vai para uma eleição (…) E as pessoas querem mais. Elas não querem menos (…) Lula vai chorar em praça pública. Precisa desvincular benefício social do salário mínimo. Vai ser um Deus nos acuda. Agora, o sistema político brasileiro está preparado para fazer as mudanças? (…) Não. Nem sei se a sociedade está (…) Vai ser preciso ser rápido no Congresso. Dar um tranco (…) Vai ser preciso agir muito rápido. E sem mandato da sociedade. Vai ter de ser meio na marra.” 

Quando parlamentares se unem para barrar uma presidenta porque veta acordos pró-corrupção; quando ministros do STF anulam sua prerrogativa de limitar o vale-tudo político comandado por corruptos; quando um governo interino, produto de um golpe, admite realizar um programa econômico cujos efeitos distributivos não passariam pelo crivo de uma consulta democrática; quando parlamentares prometem paralisar o governo no caso do retorno de Dilma, só parece restar uma solução pacífica para o dilema: a consulta à fonte do poder em uma democracia, o povo.

É fundamental barrar o impeachment e, para superar o impasse político de um modo realista, é vital realizar um plebiscito popular. Os golpistas vão chegar ao absurdo de dizer que a proposta de um plebiscito popular é um golpe. Isso é um bom sinal. Mas mesmo os políticos contrários ao impeachment tenderão a um acordo mínimo para barrar o impeachment, ou seja, limitar o plebiscito à consulta sobre a antecipação de eleições presidenciais.

É essencial que os movimentos sociais empunhem e empurrem a agenda do plebiscito. O povo deve ser consultado: 1) sobre a antecipação de eleições presidenciais e para o Congresso Nacional; 2) sobre eleições para uma Constituinte Exclusiva para a Reforma Política.

Os políticos vão tentar limitar a consulta à revogação do mandato da presidenta e seu vice, o que de todo modo é melhor do que a revogação ilegítima apenas de seu mandato, mantendo seu vice pelo impeachment-golpe. Cabe à sociedade civil exigir que a totalidade do sistema político se curve à vontade popular.

* Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor associado (Livre-Docente) do Instituto de Economia da Unicamp