Fernando Henrique Cardoso – da glória à lama  

Fernando Henrique Cardoso é o exemplo perfeito do trânsito de inúmeros intelectuais brasileiros, entre a glória acadêmica e o pântano e a lama da política oligárquica.  

Por José Carlos Ruy  

LASA, maior Congresso de Estudos da América Latina no mundo

Na década de 1960 ele fez parte do trio de ouro da sociologia paulista, tida como a principal no Brasil. Era formado pelo professor Florestan Fernandes e seus alunos Otávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. 

 
Aqueles foram os tempos da glória. O prestígio acadêmico de Fernando Henrique Cardoso estava no auge, e ganhou dimensão pública pela militância na resistência contra a ditadura militar (1964/1985).
 
Esse reconhecimento tinha dimensão política. O livro que escreveu em parceria com o chileno Enzo Faletto (Dependência e desenvolvimento na América Latina, 1970) se tornou a bíblia dos dependentistas que o usavam em análises para denunciar a subordinação do Brasil ao imperialismo, sobretudo norte-americano. 
 
Foi uma interpretação, por assim dizer, de boa fé – afinal, Fernando Henrique Cardoso, que fora aposentado compulsoriamente pela ditadura e proibido de lecionar na Universidade de S. Paulo, se exilara no Chile e se apresentava como um perseguido político.
 
Mas a relação de Fernando Henrique Cardoso com instituições norte-americanas, até então pouco divulgada, coloca em dúvida o entendimento corrente sobre aquele livro. E mesmo sobre o papel que Cardoso desempenharia na política brasileira. 
 
Num livro recente (O Príncipe da Privataria) o jornalista Palmério Dória revelou, com farta documentação, como o Cebrap – Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento – foi fundado em 1969 com financiamento da Fundação Ford, ligada à CIA. E o principal fundador do Cebrap foi… Fernando Henrique Cardoso!
 
Na reta final da resistência contra a ditadura, na Campanha das Diretas Já (1984/1985) Fernando Henrique Cardoso se empenhara, junto à direção política daquele movimento, pelo afastamento dos vermelhos e dos comunistas. Daí a cor celebrizada por aquela campanha: o amarelo, sugerido justamente pelo presidente do Partido Comunista do Brasil, João Amazonas.
 
No início da década de 1980 Fernando Henrique Cardoso tornou-se senador (ocupou a vaga deixada pelo paulista Franco Montoro, eleito governador do Estado). Foi pivô então de um romance extraconjugal com a jornalista Miriam Dutra, que se tornou conhecido das principais rodas de jornalistas e políticos. E resultou num filho fora do casamento. Quando Miriam Dutra rompeu com o senador, foi envolvida numa rede formada por políticos da oligrquia e jornalistas conservadores para evitar que o escândalo se tornasse público. Miriam Dutra foi convenientemente exilada na Europa (Portugal, Inglaterra e finalmente Espanha) e seu silêncio comprado por contratos fictícios com a Rede Globo de televisão e outra empresa, a Branif, ligada ao governo federal brasileiro. 
 
A descida da glória para a lama estava pavimentada. Fernando Henrique Cardoso havia abandonado, desde 1989, qualquer veleidade social-democrata e assegurava que a queda do muro de Berlim demonstrava a falência de toda proposta socialista. O capitalismo vencera, dizia, realidade que se impunha de maneira incoercível. 
 
Foi com este espírito, e com o privatismo entranhado nele, que deu seu maior passo na política. Surfando no prestígio do Plano Real, candidatou-se à presidência da República em 1994, e foi eleito. Foi reeleito em 1998 através da compra dos votos de deputados federais para aprovarem aquela mudança constitucional, como foi denuciado na época e é confirmado agora com as denúncias do ex-deputado Pedro Correa. Segundo ele – que foi condenado e preso por corrupção – a reeleição de Fernando Henrique Cardoso foi "um dos momentos mais espúrios" que presenciou e “mais de 50 parlamentares receberam propinas” para votar pela reeleição.
 
Seus dois mandatos presidenciais foram períodos de grande retrocesso para os brasileiros. Foram mandatos nos quais FHC, aliado à oligarquia direitista mais tradicional, formada pelos herdeiros diretos da ditadura militar: os políticos do então Partido da Frente Liberal (PFL) que, depois, foi transformado em Democratas (DEM). Aliou-se também à tecnocracia neoliberal e ao capital financeiro rentista e especulador, e em seus governos ocorreu o desmonte sistemático de órgãos do Estado voltados ao desenvolvimento nacional e à afirmação soberna do Brasil. 
 
Os resultados foram vistos ao longo dos oito anos de seus mandatos, que levaram o Brasil a uma crise de profundidade inaudita, ao crescimento da miséria, da pobreza e da exclusão social, ao mesmo tempo que aquelas oligarquias se locupletam, pilhando o patrimônio público. Foi um período em que a submissão ao imperialismo voltou aos níveis coloniais.
 
A perda de prestígio político de Fernando Henrique Cardoso e seu partido, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) se aprofundou desde a eleição, em 2002, de Luís Inácio Lula da Silva para a presidência da República, apoiado por uma frente de esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores. 
 
Desde então, apesar da intensa campanha difamatória promovida (contra Lula, o PT e a esquerda) pela direita e pela mídia hegemônica e patronal, o PSDB perdeu todas as eleições presidenciais e – expressão da lama – os candiadtos da direita evitavam, cuidadosamente, fazer qualquer referência a Fernando Henrique Cardoso…
 
Na crise atual, com o golpe contra Dilma Rousseff em andamento e o assalto ao governo federal promovido pela direita e seus acólitos – golpe vencido no “tapetão”, para usar uma figura cara aos futebolistas – Fernando Henrique Cardoso volta a aparecer como capitão golpista. Defendeu, com ardor, em artigos publicados desde janeiro de 2016, a renúncia da presidenta Dilma Rousseff. Seria o caminho mais fácil, argumentava! Mais fácil… para a direita. 
 
Mas a presidenta – que foi miitante contra a ditadura e, nessa condição, presa e torturada quando mal tinha passado dos 20 anos de idade – recusa-se a qualquer decisão desse tipo, e tornou-se a lider contra o golpe. Sem dar facilidades para a direita!
 
O retrato mais veemente da decadência, política e científica, de Fernando Henrique Cardoso, foi a recusa dos cientistas políticos norte-americanos em aceitar sua participação na Sessão Presidencial do congresso da Latin American Studies Association (LASA) – que seria o evento mais importante naquela reunião ocorrida, de 26 a 31 de maio, em Nova York; 499 cientistas sociais assinaram uma petição rejeitando a participação do antigo “príncipe dos sociólogos”, e marcaram uma manifestação (um escracho) contra sua presença. FHC fugiu daquela manifestação e desistiu de ir a Nova York. Mesmo assim, o escracho foi feito, levantando um não veemente contra FHC, em defesa da democracia e da legalidade no Brasil, que são vítimas do golpe que tem, entre seus promotores principais, a figura do ex-presidente neoliberal e conservador e que é hoje o nome mais conhecido e rejeitado da direita brasileira.