Que o legado olímpico faça o esporte brasileiro seguir em frente!

Ao me despedir do Ministério do Esporte após 13 anos de trabalho, aproveito para realçar alguns pontos que marcaram essa trajetória, particularmente no esporte de rendimento, ao qual dediquei a maior parte dessa passagem pelo governo federal. Em 2003, quando o presidente Lula criou o ministério, o esporte brasileiro era relegado a apêndice do turismo, sem orçamento relevante, sem grande visibilidade na sociedade, sem inserção no calendário internacional.

Por Ricardo Leyser Gonçalves*


Ricardo Leyser - Foto: Glauber Queiroz

Em 2016, o país chega ao auge do que chamamos a década do esporte, que começou com os preparativos para os Jogos Pan-americanos de 2007, passou pela realização dos Jogos Mundiais Militares de 2011, a Copa das Confederações em 2013, a Copa do Mundo em 2014, os Jogos Olímpicos e os Jogos Paralímpicos que se avizinham. Isso era inimaginável em 2002, quando o Brasil precisou acolher os Jogos Sul-Americanos que originalmente se realizariam na Colômbia. Naquele ano, foi necessário dividir o evento em quatro sedes, porque nenhuma cidade tinha estrutura para fazer aquela competição multiesportiva simples, que nem de longe se assemelha aos requisitos de alta complexidade exigidos para as disputas olímpicas.

Nesse período, muita coisa aconteceu no esporte brasileiro. Houve três Conferências Nacionais do Esporte, numa clara demonstração de que o governo do presidente Lula abriu-se à comunidade esportiva. Nelas ocorreu delineamento da política nacional do esporte e dos principais programas que vêm sendo desenvolvidos, especialmente dos projetos na área social. O orçamento do ministério aumentou de R$ 52,2 milhões em 2004 para R$ 1,4 bilhão em 2015, considerando valores empenhados.

Na esteira do Pan de 2007, aprovamos a Lei de Incentivo ao Esporte (LIE), que trouxe novo formato de financiamento ao esporte nacional, para projetos de esporte educacional, de participação e de rendimento. Somando-se o orçamento do ministério, a LIE, o repasse da arrecadação das loterias (Lei Agnelo/Piva, aprovada pelo Congresso em 2001 e ampliada em 2011) e o patrocínio crescente das empresas públicas federais, o financiamento da União ao esporte atingiu valores jamais imaginados quando se criou o ministério. Infelizmente, o aporte de estados e municípios não condiz com o que deveria ser sua obrigação nesse segmento, sobretudo quando se trata da iniciação ao esporte, inclusão, participação e educação por meio de atividades esportivas e de lazer.

O programa Bolsa Atleta, iniciado em 2005, ofereceu mais de 44 mil bolsas desde então, a grande maioria para atletas iniciantes ou de categorias intermediárias que se destacam em seus esportes. Foram mais de 17 mil atletas beneficiados nesse período, em mais de 100 modalidades olímpicas, paralímpicas e não-olímpicas.

Quando o país venceu a disputa pelos Jogos Rio 2016, o governo enviou ao Congresso Nacional uma medida provisória (depois convertida na Lei 12.395/2011) que modernizou a legislação esportiva, criou novos programas no ministério (Rede Nacional de Treinamento, Cidade Esportiva e Bolsa Pódio), aperfeiçoou a Bolsa Atleta, inseriu o repasse de recursos das loterias aos clubes formadores de atletas e instituiu o contrato de desempenho, que, assim que for plenamente implementado, resultará em novos parâmetros de gestão nas entidades esportivas.

Nessa época também aprovamos a criação da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD), cumprindo compromisso assumido perante o Comitê Olímpico Internacional e a Agência Mundial Antidoping, e da Autoridade Pública Olímpica (APO), com o propósito de integrar as três esferas públicas (município do Rio, estado e governo federal) na organização dos Jogos Olímpicos. Outra iniciativa vitoriosa, após intenso debate no Congresso Nacional, foi a adoção do Regime Diferenciado de Contratações públicas, o RDC, inicialmente previsto para aperfeiçoar licitações de obras e serviços relacionados à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016. Posteriormente, devido ao sucesso registrado nas primeiras contratações, foi estendido para outras áreas da administração pública. Essas medidas são legado claro dos Jogos Rio 2016 à gestão pública e ao esporte do país.

Para mexer com o arraigado status quo de resultados esportivos previsíveis, propusemos que as entidades que representam os esportes olímpicos e paralímpicos estipulassem metas a ser buscadas a cada ciclo olímpico. Isso significava ir além do trivial na preparação das equipes. Após uma reação negativa inicial, foi decidido que o Brasil vai lutar para se classificar entre os dez primeiros nos Jogos Olímpicos do Rio e entre os cinco nos Jogos Paralímpicos. Metas plausíveis, sobretudo no caso dos esportes paralímpicos, que vêm subindo de posição a cada ciclo. Porém, mais importante que atingir a meta é adotar o hábito de se planejar para alcançar objetivos mais ousados. E deixamos claro que os Jogos Rio 2016 são o ponto de partida, não o de chegada, para esse novo patamar.

Ao mesmo tempo que propôs desafios, o governo ofereceu as condições para que as modalidades tivessem a melhor preparação de todos os tempos. Lançamos o Plano Brasil Medalhas, que assegurou R$ 1 bilhão adicional entre 2013 e 2016 para construção de centros de treinamento e incremento de dezenas de modalidades com chance de bom desempenho nos Jogos do Rio – bom desempenho vai além de conquistar medalhas; significa melhorar de posição comparando-se com resultados anteriores. A parte dos recursos destinada à preparação de atletas se somou ao orçamento regular do governo federal para participação em competições e treinos no exterior, contratação de técnicos e outros profissionais, compra de materiais e equipamentos de alta qualidade, acesso a métodos científicos e tecnológicos avançados e desenvolvimento de categorias de base. Dessa forma, os atletas – os novatos e os já consagrados – puderam se dedicar exclusivamente à performance esportiva, e os resultados apareceram nos campeonatos mundiais, copas do mundo, seletivas e eventos-teste. A julgar pelo que se viu durante o ciclo, a meta no Rio 2016 poderá ser alcançada.

Paralelamente, o ministério aperfeiçoou mecanismos de desembolso e controle dos recursos públicos repassados a entidades privadas. Uma das medidas tornou mais rigorosa e técnica a aprovação de projetos. Para obter apoio, os interessados agora precisam demonstrar claramente objetivos de desenvolvimento do esporte, investimento concomitante no topo e na base, valorização de modalidades menos conhecidas do grande público e apoio a esportes para pessoas com deficiências. O objetivo do governo tornou-se evidente: menos eventos e marketing e mais sustentabilidade do esporte.

Essa reorientação na distribuição orçamentária provocou surgimento de atletas de destaque em modalidades que antes nem se imaginava que teriam evidência no Brasil, como tiro com arco, canoagem, luta olímpica, taekwondô, ginástica, pentatlo moderno, tiro esportivo e outras em que o país vai se mostrar competitivo nos próximos anos, como badminton, tênis de mesa, ciclismo BMX, ciclismo mountain bike, golfe, esgrima, polo aquático, hóquei sobre grama.

Também como parte do legado olímpico, a infraestrutura esportiva do país, historicamente insuficiente e defasada, ganhou impulso com o início da constituição da Rede Nacional de Treinamento, que propiciou construção, reforma e equipagem de centros para ginástica, judô, tiro com arco, luta olímpica, handebol, saltos ornamentais, ciclismo, canoagem e outras modalidades. Importante registrar que a diretriz governamental foi a de espalhar esses benefícios por todo o país, por isso hoje boa parte das modalidades conta com centros de treinamento equiparados aos melhores de suas concorrentes. O atletismo, esporte símbolo do olimpismo, está ganhando pistas oficiais em todos os estados, o que lhe permite contar com uma rede de treinamento para todos os tipos de prova, em qualquer estágio de formação do atleta. Aqui, vale ressaltar a feliz parceria com as universidades federais e suas escolas de educação física para construção de pistas. Com essas novas estruturas, a comunidade ganha espaço para praticar esporte, os alunos têm melhores condições de aprendizagem e os professores têm facilidade para ensinar na prática.

Também investimos na construção de estruturas multiesportivas como o Centro de Formação Olímpica do Nordeste, em Fortaleza, que pode desempenhar importante papel no crescimento do esporte na região, e o Centro Paralímpico Brasileiro, em São Paulo, erguido para abrigar 15 modalidades de esportes adaptados, seguindo modelos de países bem-sucedidos nos esportes paralímpicos como a Coreia, Ucrânia e China.

O propósito da Rede Nacional de Treinamento é oferecer o caminho do atleta, desde que ele dá os primeiros passos no esporte, até o ápice do seu rendimento na carreira esportiva. É, portanto, uma ação que precisa estar integrada desde a base até o topo da pirâmide, tanto em termos de infraestrutura quanto de programas e projetos esportivos. O hardware conectado ao software.

A vertente de infraestrutura esportiva do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, também trouxe ganhos adicionais. Entre 2011 e 2014 foram aprovadas obras para construção e cobertura de 9.817 quadras em 3.807 municípios nas 27 unidades da Federação, totalizando R$ 3,8 bilhões em investimentos. Em 2013, lançamos os Centros de Iniciação ao Esporte, que estão em obras em dezenas de municípios, sendo que as primeiras unidades ficam prontas até o fim de 2016. O investimento, para mais de 250 unidades em todos os estados, é de quase R$ 1 bilhão, o que vai dotar os municípios de estruturas esportivas em padrões oficiais, para iniciação à prática, formação de atletas e realização de competições locais e regionais. Poucas cidades dispõem de ginásios e outras instalações nos parâmetros recomendados pelas entidades internacionais das modalidades, mesmo não sendo para práticas de alto desempenho. Com os CIEs, esse déficit na base do esporte será reduzido.

Quero também realçar programas sociais como o Segundo Tempo, que ao longo dos anos foi se aperfeiçoando e, por meio de parceria com instituições públicas, tornou-se importante ferramenta de inclusão social, para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social. Dele derivam o Programa Forças no Esporte, realizado pelo Ministério da Defesa com os Ministérios do Esporte e do Desenvolvimento Social; e o Segundo Tempo/Mais Educação, desenvolvido com o Ministério da Educação, ambos com caráter de complementação educacional no contraturno escolar.

Vale ainda lembrar o estímulo do ministério à recuperação do papel dos clubes sociais como ambiente para a prática esportiva em larga escala. Eles receberam recursos federais para investir na descoberta de novos talentos e na preparação de atletas de ponta. A aprovação do Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (Profut), também chamado de Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte, e o investimento no futebol feminino constam do esforço do ministério para melhorar as condições do futebol brasileiro.

Necessário frisar o legado de conhecimento produzido nesses treze anos, com destaque para o Diagnóstico Nacional do Esporte, divulgado em 2015, que gerou estatísticas básicas inéditas sobre prática de esporte no Brasil e cuja metodologia foi adotada pelo IBGE para realizar uma PNAD, em fase de conclusão, em 156 mil domicílios, sobre o perfil dos praticantes de esporte e atividade física no país. Também por indicação do Ministério do Esporte, o IBGE está fazendo outras duas pesquisas censitárias de Informações Básicas Municipais (Munic) e Estaduais (Estadic) para mapear a infraestrutura esportiva brasileira.

Ainda sobre conhecimento, parcerias com as Universidades Federais do Paraná (projeto Inteligência Esportiva) e do Rio Grande do Sul (projeto Referências) estão fornecendo dados sobre o esporte de rendimento em diversas nuances, para embasar programas, legislações e outras decisões de governo. Em outra vertente, a Rede Cedes (Centros de Desenvolvimento de Pesquisas em Políticas de Esporte e Lazer), firmada como ação programática do ministério em 2003, aglutina grupos de pesquisa de instituições de ensino superior dedicados a produzir e difundir conhecimento para qualificar políticas públicas, programas e projetos esportivo-educacionais, de lazer e de inclusão social.

Evidentemente há muitos desafios a superar, entre os quais cito: 1) a necessidade de definição do Sistema Nacional do Esporte, trabalho que deixamos em andamento, para que haja clareza das competências e responsabilidades das entidades privadas, dos municípios, dos estados e da União, bem como mecanismos de ampliação da prática esportiva, democratização do acesso, controle social, perenidade das políticas e transparência na gestão em todos os âmbitos e esferas; 2) atrair novas fontes de financiamento, especialmente na iniciativa privada; 3) implementar os contratos de desempenho, que terão como parâmetro o Plano Nacional do Desporto, tarefa que também deixamos em andamento, para estipular obrigações, metas e avaliação de resultado dos projetos executados com recursos públicos; e 4) consolidar a Rede Nacional de Treinamento, o que requer traçar o modelo de gestão em conjunto com as diversas parcerias em cada local, partindo do uso das instalações olímpicas de alto padrão construídas e reformadas para os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, passando pelos centros de treinamento das modalidades, até a utilização dos CIEs que serão inaugurados.

A despeito do que ainda precisa ser feito, não tenho dúvidas de que o balanço do que fizemos é largamente positivo, muito em função de profícua parceria com universidades, clubes, comitês, confederações, federações, Forças Armadas, prefeituras e governos estaduais. E pela dedicação dos ministros que lideraram o ministério desde a sua criação.

E se não fossem os grandes eventos esportivos, o país não estaria no centro das atenções do mundo, não teria potencializado o orçamento do esporte, não teria ampliado a infraestrutura e não teria investido na formação de novos talentos. Contrariamos a “regra” que diz que primeiro se deve desenvolver o esporte para depois realizar megaeventos. No Brasil, os grandes eventos propiciaram orçamento governamental para desenvolver o esporte. A presidenta Dilma determinou que o legado olímpico fosse amplo (para todas as modalidades), democrático (da base ao alto rendimento), nacional (para todas as unidades da Federação) e de longo prazo (para além dos Jogos em 2016). E assim o fizemos. Nossa palavra de ordem preferida: “Os Jogos Olímpicos são no Rio mas o legado é para todo o Brasil”. As bases para a sustentação duradoura do esporte brasileiro estão lançadas.

Saio com o sentimento do dever cumprido. E foi com essa sensação que fiz o primeiro pronunciamento de um ministro do Esporte do Brasil na ONU, em 29 de abril, quando exaltei os avanços do esporte brasileiro e a responsabilidade com que tratamos a organização dos Jogos Olímpicos que se aproximam. Sucesso aos nossos atletas! Que sejam sempre o orgulho do país e exemplo para as novas gerações.

*Ricardo Leyser Gonçalves foi ministro do Esporte e, antes, secretário de Esporte Educacional, secretário para os Jogos Pan-Americanos de 2007, secretário de Esporte de Alto Rendimento e secretário executivo do Ministério do Esporte. Atuou no ministério entre maio de 2003 e maio de 2016.