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Sociólogo desmistifica relação entre comunistas e intelectuais

Ele é, atualmente, um dos principais estudiosos da cultura de esquerda brasileira nas décadas de 1960 e 1970 e autor, entre outros, do livro “Em busca do povo brasileiro – artistas da revolução, do CPC à era da TV” (Ed. Record), Marcelo Ridenti, professor

Em recente palestra realizada na USP, em homenagem ao centenário de Caio Prado Jr., abordou um tema bastante polêmico que é o da relação entre os intelectuais e os comunistas no Brasil. Ridenti, de maneira corajosa, desmistificou o discurso dominante sobre a instrumentalização dos intelectuais por parte do PC do Brasil (PCB) nas décadas de 1940 e 1950.



Ele afirmou que esta relação teve mão dupla e, no final, acabou sendo benéfica para ambos os lados. As idéias esboçadas nesta entrevista estão desenvolvidas no artigo “Brasilidade vermelha: artistas e intelectuais comunistas nos anos 1950” que será publicado no livro “O moderno em questão. A década de 1950 no Brasil” (Topbooks), organizado por Elide Rugai, Gláucia Villas Boas e André Botelho.



Buonicore: No imediato pós-guerra, entre 1945 e 1947, o Partido Comunista do Brasil (PCB) emergiu como uma das forças mais influentes entre a intelectualidade. Quais os artistas e intelectuais mais importantes pertenceram ao Partido Comunista nesta época e, também, quais as razões desse fenômeno?


Ridenti – Uma infinidade de artistas e intelectuais integrou as fileiras do partido no pós-II Guerra, no contexto da vitória dos aliados e do fim do Estado Novo: Jorge Amado, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos, Mário Lago, Oduvaldo Viana, Lima Duarte, Oscar Niemeyer, Villa-Nova Artigas, Caio Prado Jr., Elias Chaves Neto, Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Bráulio Pedroso, Luis Ventura, Mário Gruber, Otávio Araújo, Ruy Santos, Pedro Mota Lima, Dias Gomes, Camargo Guarnieri, Guerra Peixe e outros tantos.



Mas a lua de mel acabaria depois que o PC foi para a ilegalidade e passou a ter uma atitude mais obreirista, que valorizava pouco a autonomia relativa dos intelectuais e artistas. Não obstante, muitos deles seguiram ligados ao Partido.



Em parte, eram razões políticas amplas que levavam os intelectuais e artistas ao círculo do PCB, pois muitos viam no Partido – que reconhecidamente tinha bases operárias e apoio sólido da União Soviética (URSS) – o caminho viável para contestar a ordem social extremamente desigual e a condição de subdesenvolvimento da sociedade brasileira, que mantinha a maioria da população na miséria, em particular no campo, e não oferecia um lugar institucional seguro para os intelectuais, quer aqueles que vinham da aristocracia decadente, quer aqueles que ascendiam na escala social, originários especialmente de famílias de imigrantes estrangeiros ou de migrantes nacionais.



Além das razões políticas mais abrangentes, havia aquelas específicas aos meios intelectuais e artísticos, que ajudam a compreender a adesão ao PC: a organização no Partido dava legitimidade a certos grupos e indivíduos que buscavam marcar posição e ganhar (ou evitar perder) prestígio em suas atividades, lutando por um lugar de destaque e – no limite – pela hegemonia em cada campo artístico ou intelectual, não só de seu grupo, mas também das idéias comunistas.
 
 
Buonicore: Parece que a eclosão da guerra fria causou sérios estragos nesta quase hegemonia, especialmente no mundo da literatura. Poderia falar um pouco sobre isso?



Ridenti: Nos anos 1950, havia forte influência do realismo socialista de Jdanov, que ditava a política cultural soviética na época, que envolvia uma arte inteiramente pedagógica, comprometida com a propaganda ideológica do Partido Comunista e da URSS, com a construção de heróis positivos e a exaltação de feitos revolucionários, algo que não convencia muitos artistas, mesmo os que continuaram militantes do PC, como Graciliano Ramos.



A obra mais conhecida do realismo socialista no Brasil foi Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado, que dá uma perspectiva idealizada da luta do PCB durante o Estado Novo.



Buonicore: Apesar de tudo – a repressão de um lado e o autoritarismo e sectarismo, de outro – os comunistas mantiveram alguma influência no mundo da cultura. Como eles conseguiram esta façanha?



Ridenti: Numa época em que a universidade era restrita a poucos, em que as oportunidades de publicação, intercâmbio intelectual e comunicação eram escassas e difíceis, não era insignificante pertencer ao circuito intelectual do PCB, publicar artigos assinados em periódicos difundidos nacionalmente, como Fundamentos e, mais tarde, Para Todos e Estudos Socais, ou próximos do Partido, como a revista Brasiliense – sem contar a possibilidade de contatos no exterior, ao ingressar na rede dos partidos comunistas, que contava com artistas e intelectuais importantes no mundo todo.



Apesar das perseguições, do pesado estigma de ser comunista e da disciplina dura do PCB, abria-se um caminho para aprimorar a formação, difundir idéias e obras e obter certa legitimidade intelectual.



A oportunidade de projeção intelectual – no círculo interno do PCB e também fora dele – era ainda mais importante para o número crescente daqueles que não tinham lugar nos estreitos círculos intelectuais e artísticos estabelecidos e consagrados, particularmente no eixo Rio-São Paulo, para onde afluíam intelectuais de todas as regiões.



O Partido era um dos meios de expressão de novos círculos intelectuais, que se ampliavam com a tendência ao aumento rápido da escolaridade da população, cada vez mais urbana.



Especialmente após as mudanças no PCB ao final dos anos 1950, jovens artistas e intelectuais gozariam de autonomia inédita e desfrutariam de certa  notoriedade.



Em suma, a militância comunista implicava riscos – como o de perseguição, de prisão e, em casos-limite, de morte –, além de exigir disciplina e obediência às ordens do PCB na clandestinidade, sem contar o preconceito socialmente disseminado contra o comunismo.



Mas também oferecia uma rede de proteção e solidariedade entre os camaradas no Brasil e no exterior, o sentimento de pertencer a uma comunidade que se imaginava na vanguarda da revolução mundial e podia dar apoio e organização a artistas e intelectuais em luta por prestígio e poder, distinção e consagração em seus campos de atuação, para si e para o Partido.



Buonicore: Os aparelhos culturais dirigidos pelos comunistas – como editoras e revistas -, contribuíram, de algum modo, para soldar a relação entre intelectuais e o Partido mesmo nos anos mais difíceis?



Ridenti: O Partido veio a constituir um conjunto de revistas culturais bastante ativas na década de 1950: Fundamentos em São Paulo, Para Todos no Rio de Janeiro, Horizonte em Porto Alegre, Seiva em Salvador, entre outras.



Os principais intelectuais e artistas comunistas colaboravam com elas no período áureo do realismo socialista. Sem contar uma infinidade de jornais e outras publicações por todo o território nacional, que faria do PCB uma escola de formação de jornalistas, já que o partido era proibido, mas não sua imprensa.



A mesma observação vale para grupos comunistas rivais, como os trotskistas: a velha lição leninista de criar jornais daria uma infinidade de quadros para a “imprensa burguesa”, alguns atuantes até hoje, embora em geral distantes das idéias da juventude.



Buonicore: O teatro de Arena e o CPC da UNE também foram fortemente influenciados pela visão de cultura esposada pelos comunistas. Qual o papel de pessoas como Vianinha e Guarnieri nesta revolução no teatro e na cultura brasileiros?



Ridenti: O Arena contava com vários ex-integrantes do Teatro Paulista do Estudante, como Guarnieri, Oduvaldo Viana Filho e Vera Gertel, todos eles militantes, filhos de comunistas.



Eles haviam começado a fazer teatro para ganhar presença política no movimento estudantil secundarista em meados da década de 1950, mas acabaram tomando gosto pelo palco.



A busca da brasilidade e a estreita aproximação entre arte e política marcariam as experiências dramatúrgicas a partir do final dos anos 1950, um teatro participante e “autenticamente brasileiro”, sintonizado com o momento político que se vivia, como foi o caso do Centro Popular de Cultura (CPC) e do Teatro Opinião que, assim como o Arena, teriam forte presença de artistas comunistas já na década de 1960.



O Teatro de Arena – e mais tarde o CPC e o Opinião – expressava a busca de jovens artistas por um lugar de destaque, quase todos eram de esquerda e mesmo comunistas.



Para tanto, fez-se necessária uma ruptura crítica com o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), que dava o tom de qualidade teatral nos anos 1950, mas era acusado por seus adversários de ser distanciado do povo e dos problemas nacionais, concentrando-se na montagem de peças estrangeiras.



Os dramaturgos, cineastas, escritores e demais artistas e intelectuais do PCB faziam parte de uma empreitada mais ampla da época, de popularizar a arte e a cultura brasileira, registrando a vida do povo, aproximando-se do que se supunha fossem seus interesses, comprometendo-se com sua educação, buscando ao mesmo tempo valorizar suas raízes e romper com o subdesenvolvimento – mesmo que por vezes incorressem em certa caricatura do popular e em práticas autoritárias e prepotentes que envolviam o mito do Partido como intérprete qualificado das leis da História.



Buonicore: Mesmo em áreas culturais mais complexas (e caras), como a produção cinematográfica, os comunistas também deixaram suas marcas desde a década de 1940. O próprio Cinema Novo, me parece, foi fruto deste esforço pioneiro dos comunistas. O quanto isso tem de verdade?



Ridenti: No âmbito do cinema, nos anos 1950, os comunistas realizaram importante trabalho de base em cineclubes que difundiam filmes clássicos e outros que não chegavam ao circuito comercial, incluindo aqueles originários dos países socialistas.



Essa atividade contribuiria para formar cineastas e outros artistas e intelectuais em todas as regiões do país. Por exemplo, a cultura fílmica e política de Glauber Rocha, Geraldo Sarno, Orlando Senna, Paulo Gil Soares e outros na Bahia, em boa medida, é tributária da atividade cineclubística do comunista Walter da Silveira em Salvador.



Talvez a colaboração comunista mais visível ao cinema brasileiro no início dos anos 1950 tenha sido a realização de concorridos Congressos de Cinema. Em março de 1951, com forte presença de comunistas, foi criada a Associação Paulista de Cinema, que promoveria em abril o 1.º Congresso Paulista de Cinema, com a participação de 40 empresas produtoras de filmes.



Procuravam-se rumos para viabilizar o cinema nacional e dar resposta à ideologia tida como imperialista da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, inspirada nos padrões de Hollywood, e ao anteprojeto do Instituto Nacional de Cinema (INC) – iniciativa do governo Vargas, ao qual o PCB então se opunha visceralmente.


 


Em seguida, foram promovidos mais dois congressos nacionais: em setembro de 1952, no Rio de Janeiro, e em dezembro de 1953, em São Paulo. Assim, a força organizada e articulada dos comunistas era usada pelos jovens cineastas identificados com o Partido para intervir no cinema brasileiro e ocupar um lugar de destaque e, se possível, dirigente no campo em constituição.



O eixo da crítica pesada dos jovens cineastas comunistas aos filmes da Vera Cruz estava na atuação de diretores estrangeiros que fariam uma caricatura do povo brasileiro em seus filmes.



De certa forma, os cineastas comunistas como Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos prepararam o terreno para a hegemonia do Cinema Novo nos anos 1960 – que se colocava tarefas revolucionárias, mas já sem o didatismo e a submissão ao PC, embora congregasse cineastas comunistas e ex-integrantes do Partido.



O Cinema Novo não seria possível sem a história anterior de disputas no meio cinematográfico, fomentada pelos comunistas. Ou seja, cineastas formados nos anos 1950 sob influência do PC viriam a ganhar hegemonia no cinema brasileiro na década de 1960.



Buonicore: Por fim, um tema mais polêmico.  Na grande parte da bibliografia  sobre o tema – na qual se inclui várias biografias – predomina uma visão bastante negativa sobre a relação que existiu entre os intelectuais e o Partido Comunista. Você, pelo contrário, fala de relação de mão dupla. Explique um pouco isso.


 


Ridenti: Passados cerca de cinqüenta anos do final do período stalinista, quase vinte da desintegração da União Soviética, é pertinente reavaliar com mais distanciamento a relação de artistas e intelectuais com o Partido. Certamente, ela não foi de mão única.



Ao que tudo indica, de fato, o Partido tinha uma linha política estreita e dogmática, dava pouco espaço a seus intelectuais, quase não contribuía para pensar a especificidade da sociedade brasileira, era marcado pelo centralismo e por relações autoritárias.



Contudo, é preciso colocar esses aspectos no contexto da década de 1950, no auge da Guerra Fria, considerando a condição de ilegalidade a que o Partido fora lançado a partir de 1947, após um breve e intenso período de atuação institucional.



A relação de intelectuais e artistas com o PC não caberia numa equação simples, como aquela que supõe que a militância comunista de intelectuais e artistas fazia parte de um desejo de transformar seu saber em poder. Tampouco seria adequado, no outro extremo, supor que houvesse mera manipulação dos intelectuais pelos dirigentes do PCB.



Não se trata essencialmente de uso indevido e despótico da arte e do pensamento social para fins que lhes seriam alheios, mas de uma relação intrincada com custos e benefícios para todos os agentes envolvidos, que implica ainda uma dimensão utópica que não se reduz ao cálculo racional.



Ao que tudo indica, a organização comunista foi fundamental para as lutas nos meios artísticos e intelectuais no período, de onde surgiram obras significativas, sendo assim um expressivo elemento constituinte da cultura brasileira, que não pode ser pensada sem considerar as ações e as idéias dos comunistas e de outras correntes de esquerda ao menos da década de 1930 à de 1980, particularmente nos anos 1950.



Buonicore: Você não acha que um dos fatores que amalgamou o comunismo e os intelectuais foi a construção do paradigma nacional-popular na cultura brasileira, que muito mais do que o realismo socialista foi o que fincou raiz entre nós? Você chegou mesmo a falar em ''certa utopia da brasilidade libertadora''.



Ridenti: Tendo a concordar, mas noto que utopia da brasilidade revolucionária ia além do nacional-popular dos comunistas, envolvia também os trabalhistas e outras forças de esquerda. Ademais, marcava uma estrutura de sentimento que era compartilhada também por adversários do nacional-popular, como os tropicalistas.



A utopia da brasilidade revolucionária tem raízes na ideologia das representações da mistura do branco, do negro e do índio na constituição da brasilidade, tão caras, por exemplo, ao pensamento conservador de Gilberto Freyre.



Nos anos 1960, formulavam-se novas versões para essas representações, não mais no sentido de justificar a ordem social existente, mas de questioná-la: o Brasil não seria ainda o país da integração entre as raças, da harmonia e da felicidade do povo, pois isso não seria permitido pelo poder do latifúndio, do imperialismo e, no limite, do capital.



Mas poderia vir a sê-lo como conseqüência da “revolução brasileira”; haveria tais potencialidades nacionais que se chegava a pensar numa “civilização brasileira”, retomando à esquerda uma utopia do período Vargas.



Buonicore: Em sua opinião, quando os comunistas começaram perder a hegemonia nos meios culturais brasileiros e quais as razões? 



Ridenti: São vários fatores a considerar, especialmente a crise internacional do socialismo que culminou com o fim da URSS, e especialmente o advento da ditadura e da modernização autoritária no Brasil, que paradoxalmente soube a seu modo dar um lugar institucional para artistas e intelectuais dentro da ordem estabelecida, algo consolidado após a redemocratização.



A sociedade brasileira foi ganhando nova feição, artistas e intelectuais chegaram a constituir um segmento de produção e consumo de mercadorias culturais consideradas críticas ao regime, que censurava seletivamente alguns desses produtos. O mercado oferecia ótimas oportunidades a profissionais qualificados – até mesmo aos artistas de esquerda, representantes da cultura viva do período anterior, que se esgotara em 1968.



Eles não tinham muita dificuldade para encontrar bons empregos em redes de rádio e televisão, produtoras de teatro e cinema, empresas de jornalismo, agências de publicidade, universidades, fossem órgãos públicos ou privados – ainda que houvesse “listas negras” elaboradas pelo Serviço Nacional de Informações. É um tanto paradoxal que a Rede Globo tenha firmado sua identidade com base na dramaturgia de comunistas como Dias Gomes e Vianinha.



Há quem considere que isso tenha sido a vitória – ou o fracasso anunciado – do nacional-popular, que teria conseguido na Globo o objetivo de criar um mercado para artistas brasileiros. Mas a meu ver perdem de vista que o projeto envolvia muito mais do que isso e se perdeu.



Talvez o PCB – como esboço de “construção de uma (contra-)elite de corte nacional”, na expressão de Gildo Marçal Brandão – tenha constituído, nos anos 1950 e início da década de 1960, a ala esquerda de um movimento mais abrangente que apostava no desenvolvimento nacional com base na intervenção do Estado, modernizando a sociedade brasileira e tirando-a do “atraso”, rompendo com o poder dos latifundiários e ampliando significativamente os direitos sociais.