Se a realidade for demasiada, corta: mete um sonho

Essa máxima talvez seja única na vida do cineasta espanhol que nunca se ateve a regras: Luis Buñuel. Ele a aplicou na autobiografia, metendo sonhos na cena da morte para a qual não estava preparado.

Por Christiane Brito

Luis Buñuel - Divulgação

Uma imagem vale mais do que mil palavras até que a perda da memória revele o contrário. Então as palavras se tornam preciosas e vale a pena ir atrás de um milhar delas para narrar histórias.

Foi o que o cineasta Luis Buñuel fez aos 82 anos quando decidiu escrever a autobiografia Meu último suspiro. O título acabou por se tornar profético já que o espanhol morreu pouco depois, aos 83 (em 29 de julho de 1983).

Afiado na palavra “falada” (era um grande debatedor de ideias), Buñuel pediu ajuda a um amigo para conseguir escrever.

“Não sou um homem da escrita. Após longas conversas, Jean-Claude Carrière, fiel a tudo o que lhe contei, me ajudou a escrever este livro”, diz no prefácio da obra.


Cena de O discreto charme da burguesia 
 

Carrière aceitou a missão com vantagem, já que foi co-roteirista dos clássicos Bela da tarde (1967) e O discreto charme da burguesia (1972), além de assinar o filme com o qual Buñuel se despediu da carreira: Esse obscuro objeto do desejo (1977).

Optou por uma narrativa simples, no entanto lírica e discretamente bem-humorada, exatamente como o amigo de longa data.

"Se a realidade for demasiada, corta; mete um sonho" foi, talvez, a única máxima na vida do mestre que nunca se ateve a regras. Temia o extremo oposto, o fanatismo, onde quer que se apresentasse.


Cena de Bela da Tarde
 

Por isso foi expulso do colégio de jesuítas quando menino, por isso deixou a militância no comunismo, por isso escreveu uma espécie de antibiografia, na qual, contrariando paradigmas da modalidade, confessou fracassos e atacou amigos com a honestidade despudorada que levou para o túmulo.

Ao rever o passado, acaba sendo mais romântico do que jamais se permitiu.

Eleva o amor ao topo da arte quando elege O retrato de Jennie (1948) como um dos filmes preferidos (a história, baseada em fatos reais, mostra um pintor que só consegue se tornar artista depois de amar uma mulher). Descreve o filme como "…misterioso, poético e largamente incompreendido".

Quanto à liberdade, ideal pela qual sempre lutou na obra e na vida, Buñuel acaba por identificar com uma conquista pessoal, criativa, portanto a salvo dos tiranos do mundo. Exulta:

"Felizmente, em algum lugar entre o possível e o mistério, está a imaginação, a única coisa que preserva a nossa liberdade…"

Entre os momentos tocantes da autobiografia está a explicação do que seja “uma vida”, concebida a partir da degeneração na velhice, com as crescentes perdas de audição e visão que levaram o cineasta à aposentadoria “precoce”:

“Você tem que começar a perder sua memória, em lapsos breves ou duradouros, para perceber o que ela significa em nossas vidas. Uma vida sem memória não é vida de modo algum, assim como uma inteligência impossibilitada de expressão não é inteligência de fato. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento e pode ser até mesmo a nossa ação no mundo. Sem ela, somos nada”.

O retiro voluntário que empreendeu do trabalho mergulhou o cineasta não só nas lembranças da infância distante como também na imaginação da morte. Com relação a essa última, decidiu dirigir a cena para espantar o horror do desconhecido.

Fez duas versões:

A morte racionalizada

“Há muito tempo que o pensamento da morte me é familiar (…), nunca quis ignorá-la, negá-la. Mas não há grande coisa a dizer da morte, quando se é ateu como eu. É preciso morrer com o mistério. Algumas vezes digo para mim próprio que gostaria de saber, mas saber o quê? Não se sabe nem durante, nem depois. Depois do Tudo, o Nada”.

A morte espetacularizada:

“Imagino inúmeras vezes uma última partida. Convoco os meus velhos amigos, que são ateus convictos como eu. Entristecidos, eles sentam-se à volta da minha cama. Então, chega um padre, que eu mandei chamar. Para grande escândalo dos meus amigos, confesso-me, peço a absolvição de todos os meus pecados e recebo a extrema-unção. Depois, viro-me de lado e morro”.

Por fim, o aclamado cineasta formula um último desejo, representativo do seu interesse eterno pelos destinos do mundo, mais forte do que o desprezo pela mídia:

“Uma coisa lamento: não saberei o que vai acontecer. Apesar do meu ódio à indústria da informação, gostaria de poder levantar-me entre os mortos a cada 10 anos, dirigir-me a uma banca e comprar vários jornais. Não pediria nada mais”.