Felipe Bianchi: Monopólio da Globo na marca fatal

Detentora única dos direitos de transmissão do futebol brasileiro, a Rede Globo vê seu império ameaçado. Isso porque o tema voltou à pauta do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), órgão com a incumbência de tutelar abusos do poder econômico e que promete investigar a ilegalidade do monopólio da família Marinho sobre o esporte mais popular do país.

Por Felipe Bianchi*

Câmera da Rede Globo de Televisão no estádio do Vitória da Bahia

O processo (0800.000721/2016-18) não está disponível para acesso, mas de acordo com a coluna de Ricardo Feltrin no UOL, o texto inclui a suspeita de irregularidades e infrações à chamada livre concorrência. O colunista também informa que o pedido da abertura do processo foi feito por outras emissoras, descontentes com os privilégios da Globo.

Segundo Emanuel Leite Jr., jornalista pernambucano autor do livro “Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro: Apartheid futebolístico e risco de espanholização” (2015), o processo provavelmente corre em sigilo como forma de proteção do mercado. “A medida é tomada para não revelar valores”, diz. “O problema é que os clubes não têm dono. Em tese, os donos são os sócios, que deveriam ter, sim, o direito a acessar esses valores, que são mantidos nas sombras”.

Conforme revela o livro de Emanuel Leite. Jr., o modelo brasileiro destoa do resto do mundo da bola. Enquanto há prazos de vigência e contrapartidas a serem cumpridas em países como a Inglaterra e a Alemanha (neste último, por exemplo, o pacote oferecido inclui obrigatoriamente o futebol feminino), as cotas televisivas daqui são negociadas entre uma única emissora e a Confederação Brasileira de Futebol, sem nenhum pingo de transparência.

Pior: uma vez adquiridos os direitos de transmissão, o futebol se torna refém dos interesses comerciais da Globo. O “horário da novela”, que joga as partidas para 22 horas, prejudicando torcedores e telespectadores (em especial os que cedo madrugam em busca do ganha-pão), é um dos símbolos desse casamento obscuro entre Globo e CBF. Segundo Ricardo Feltrin, o Cade também deve analisar a legalidade da imposição deste horário.

A convite da coluna, Emanuel Leite Jr. produziu o seguinte texto para aprofundar e esclarecer o debate.

Agradecemos ao jornalista e reproduzimos a íntegra abaixo:

Esporte Interativo, livre concorrência e a pressão do mercado sobre o CADE

Todo monopólio é prejudicial ao mercado e, por consequência, a todos os envolvidos. Com um novo agente no mercado dos direitos de transmissão do futebol brasileiro, os clubes apenas têm a ganhar. A concorrência – se for realmente livre e não apenas de fachada, como as investigações do FBI que fez ruir a cúpula da Fifa têm demonstrado – traz como consequência o aumento do valor pago pelo produto. É o que acontece na Premier League inglesa e vai acontecer em La Liga espanhola.

Por Emanuel Leite Jr.

As grandes ligas europeias, que têm modelos de distribuição do faturamento das vendas dos direitos de transmissão televisiva de formas mais isonômicas, a propósito, obedecem a compromissos com a Comissão Europeia, que objetiva, exatamente, o cumprimento do artigo 81 de seu Tratado (consolidado em sua versão de Nice), que se preocupa, precisamente, com a preservação da livre concorrência. É por essa razão que os contratos das vendas dos direitos de transmissão não podem ter duração superior a três anos. A ideia é evitar a concentração dos direitos nas mãos de uma mesma empresa por longo período e, logicamente, permitir a outras empresas que tenham condições de disputarem o mercado.

No Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) tem como missão a busca pela preservação da livre concorrência. O processo 0800.000721/2016-18 (noticiado pelo UOL) não é o primeiro instaurado no âmbito do CADE que se debruça sobre as negociações dos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de futebol. Este órgão regulador já abriu uma investigação que tinha como alvos Globo e Clube dos Treze por formação de cartel referente ao contrato de 1997-1999.

Em 2010, o CADE o fim do direito de preferência que a Rede Globo tinha junto ao Clube dos Treze nas negociações dos direitos de transmissão do Brasileirão para o triênio de 2012 a 2014. O Termo de Compromisso de Cessação (TCC) previa exigências para a negociação coletiva, a fim de que se preservasse a livre concorrência entre as redes de televisão. O CADE, contudo, levou um “drible”. Como a negociação coletiva levada adiante pelo Clube dos Treze não foi reconhecida pelos clubes associados à entidade, a negociação individual foi aceita pelo CADE. Assim, com o caminho aberto pelo próprio órgão regulador das atividades econômicas, clubes e Rede Globo firmaram seus acordos individuais, com contratos válidos de 2012 a 2015.

Situação bem distinta, por sinal, daquela que aconteceu na Itália, quando a autoridade antitruste e o Ministério do Esporte do país determinaram que, pela livra concorrência e a preservação da competitividade desportiva, determinaram, em relatório, o fim das negociações individuais e a instituição das negociações coletivas. Trato do episódio em meu livro, “Cotas de televisão do campeonato brasileiro: aparhetid futebolístico e risco de espanholização”.

Este novo processo – 0800.000721/2016-18 – é diferente. De acordo com UOL, “o Cade foi instado a abrir o processo a pedido de outras emissoras de TV, que consideram o monopólio da Globo inaceitável. Desde março o conselho já acompanhava as negociações entre a Globo e os principais clubes brasileiros. Tal "pacote" daria direito à exclusividade não só na TV aberta, mas também na TV paga e na internet”. Ou seja, a investigação não se limita a um contrato específico, mas sim ao monopólio de décadas da emissora do Jardim Botânico, bem como ao comportamento monopolista desta empresa que insiste em negociar o “pacote” por todos os direitos, quando existe orientação para que as negociações sejam fragmentadas – TV aberta teria que ser um acordo, TV fechada outro, internet outro, etc.

O surgimento do Esporte Interativo no mercado dos direitos de transmissão é revolucionário a partir do momento em que quebra paradigmas, na medida em que transforma a realidade e o contexto no qual está inserido. Além de trazer a livre concorrência, o que apenas beneficia os clubes, que passam a ter maior poder de negociação com aquela que era, até então, a monopolizadora deste mercado.

Este novo player no mercado pode estimular a participação de outras concessionárias de serviços de radiodifusão. Na TV fechada, por exemplo, Fox Sports e ESPN Brasil podem se juntar e formar um pool para tentarem, também, conquistar um quinhão deste mercado. Na TV aberta, pode ser que Record e RedeTV, que foram prejudicados na “concorrência” mandrake que resultou na implosão do Clube dos Treze, possam se interessar novamente em disputar o mercado com a Rede Globo – seja individualmente, seja através de um pool, como acontece na Inglaterra, por exemplo.

A entrada do Esporte Interativo na disputa pelos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro, com os altos investimentos que têm sido feitos por parte do Grupo Turner, também pode significar que, desta vez, o CADE não vai estar sujeito a um novo “drible”. Agora, existe uma concessionária de serviços de radiodifusão efetivamente na briga e com interesse direto na restauração (não vou dizer preservação porque só se preserva o que já existe, o que não é o caso, pois o que temos hoje é um monopólio) ou na implantação, melhor dizendo, de uma verdadeira livre concorrência no mercado dos direitos de transmissão do futebol no nosso país.

Talvez com este interessado que tem se mostrado financeiramente poderoso, o CADE se sinta mais pressionado a dar uma resposta à sociedade e aos torcedores que esperam por uma lógica menos excludente.

Sobre o Esporte Interativo, entretanto, faço apenas uma ressalva. Embora sua entrada no mercado seja salutar e possa influenciar em um processo mais rígido e eficaz por parte do CADE contra o monopólio que impera, é preciso dizer que só se faz justiça quando há a persecução da igualdade. E a igualdade só se obtêm quando há equidade no tratamento a todos os clubes. Pagar R$ 3 milhões de luvas a um clube e R$ 40 milhões a outros é tudo menos equânime.