Manifestações exigem aprovação de PLs contra violência sexual

No Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual, mobilizações pressionam Congresso por mudanças no Código Penal para combater a impunidade desses crimes, propostas por Comissão Parlamentar M

Revoada de balões, carreata de caminhões, manifestações populares, reunião com ministros, pressão na Câmara dos Deputados, bateria de escolas de samba e apresentação de bandas musicais e grupos artísticos infanto-juvenis, das 8 horas da manhã de quinta-feira (18/05) até às 2 horas do dia seguinte, marcaram o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, que reuniu mais de dez mil de pessoas, em Brasília. A mobilização tinha como principais objetivos ampliar a comunicação sobre o tema com a população em geral e reivindicar a aprovação de projetos de lei que ajudam na luta contra a impunidade desses crimes.

Ao som da bateria da escola de samba paulistana Águia de Ouro, que tratou desse tema no samba-enredo deste ano, os manifestantes entregaram um abaixo-assinado à Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, pedindo urgência na aprovação dos projetos de lei elaborados pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Exploração Sexual, em 2003 e 2004, para que levem ao presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP). As propostas da comissão foram feitas a partir de uma análise da realidade brasileira e dos fatores que levam esses crimes a permanecerem impunes no país. Foram estudados processos, inquéritos, ações da polícia e do poder judiciário e de diferentes atores responsáveis por fazer cumprir a lei.

Os parlamentares chegaram à conclusão de que existe uma noção preponderante no Código Penal, de 1940, de que os crime sexuais são crimes contra os costumes. “Isso contamina toda a apuração. O que predomina na esfera dos inquéritos e do processo é a dificuldade de compor a prova, responsabilizar os abusadores, reproduzindo um processo permanente de revitimização de crianças e adolescentes e das mulheres. A mudança da lei é um primeiro passo para combater a impunidade”, afirma a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), relatora da CPMI e coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa da Criança e do Adolescente.

Para exemplificar essa situação, ela conta a história do prefeito de Goiás Velho, em Goiás, que foi condenado pelo estupro de diversas crianças na cidade. Ele acabou sendo liberado de cumprir a pena porque, já adolescentes, as meninas se casaram e o Código Penal prevê que quando a vítima se casa e não manifesta a posição de que o processo deve continuar, ele se extingue. “Existe um conceito subjacente de que se ocorreu o casamento significa que foi reparado o dano, já que ela foi aceita por algum homem, como se fosse um dano moral contra a sociedade e não contra ela. O pior é que tudo leva a crer que os casamentos foram arranjados pelo próprio prefeito”, lamenta a deputada.

Os projetos de lei que estão em tramitação prevêem uma reforma no capítulo de crimes sexuais, chamado de crimes contra os costumes, para que sejam consideradas práticas contra a liberdade e o desenvolvimento sexual. Entre outras coisa, pretendem unificar a noção de estupro e atentado violento ao pudor. Atualmente não existe o crime de estupro contra homens, só contra mulheres e meninas. Assim, outras formas de abordagem sexual, além da relação vaginal, atualmente são consideradas atentado violento ao pudor e recebem um tratamento penal mais moderado.

A reforma também prevê a tipificação do crime de tráfico interno de seres humanos para exploração sexual, pois hoje apenas o internacional constitui crime; a abertura de ação penal pública para todos os crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes e não apenas para aqueles em que for registrada queixa privada; e a responsabilização desse crime nas diferentes etapas: deslocamento, hospedagem, até o ato sexual em si. Isso quer dizer que serão punidos todos os envolvidos nas redes de exploração sexual infanto-juvenil – uma das atividades criminosas mais lucrativas do mundo, atrás apenas do tráfico de drogas e de armas – como donos de hotéis, de bares e bordéis.

“Os projetos não prevêem a ampliação das penas porque isso não resolve. Precisamos adequar para nossa época cada crime penal e criar agravantes quando as vítimas forem crianças, adolescentes e portadores de deficiência em geral”, afirma a deputada petista.

Já são quase dois anos de mobilização pela aprovação das propostas e a deputada atribui a demora na votação não apenas à crise política no Congresso e às medidas provisórias que freqüentemente trancam a pauta. “Existe uma dificuldade por parte de uma mesa unicamente masculina e das lideranças dos partidos que também são homens de compreender a natureza das propostas que estamos fazendo. Enquanto no parlamento temos 10% de mulheres, na CPMI éramos 90% de mulheres. Os projetos são resultado de um trabalho com olhar de gênero que não encontra ressonância nas lideranças e na mesa, que desvalorizam questões como essa”, avalia.

Representantes da frente parlamentar conversaram recentemente com o presidente da Câmara, que se comprometeu a colocar os projetos na pauta do plenário novamente e dar prioridade a isso após a votação das medidas provisórias. Os integrantes da CPMI pretendem conversar com as lideranças do partido antes do fim do mês e acreditam que a situação se encaminha para um resultado positivo.

Para Neide Castanha, coordenadora do Comitê Nacional pelo Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, são necessárias também mudanças na atuação do poder judiciário, para que a Justiça atenda com especialidade e celeridade esses casos, estruturando-se para cumprir as novas leis que devem ser criadas. Segundo ela, em cidades como Salvador, Fortaleza e Recife existe no sistema criminal varas, promotorias e delegacias especializadas no atendimento a crimes contra crianças e adolescentes. “Isso resultou em julgamentos muito mais rápidos, diminuindo a média de duração de cada processo de cinco anos para apenas um. O poder judiciário precisa se apropriar dessas experiências para que isso seja uma diretriz nacional”, completa a coordenadora do comitê.

Políticas públicas –
O Comitê solicitou ao governo federal que mostrasse nesse dia o que está sendo feito para colocar em prática o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Em solenidade no Ministério da Justiça, seis ministros apresentaram ações integradas de combate ao problema na área da saúde, educação, esportes, desenvolvimento social, turismo e direitos humanos.

“Em termos de políticas públicas, temos conseguido avançar em alguns setores nos últimos anos, como na educação. O MEC, por exemplo, vai capacitar professores para identificarem os primeiros sinais desses crimes contra crianças e adolescentes. A questão emergencial agora é acelerar esses passos e consolidá-los como políticas públicas no enfrentamento desse problema”, avalia Neide.

Além disso, uma carreata com centenas de caminhões circulou pela capital federal, como parte do projeto "Siga Bem Criança ", que torna o caminhoneiro um parceiro no combate à violência sexual contra meninos e meninas. Foi por meio dele que os caminhoneiros conheceram o disque-denúncia do governo federal, que desde maio de 2003, já recebeu e encaminhou mais de 17 mil denúncias de violência sexual infanto-juvenil aos órgãos de defesa, e que passou agora a atender pelo número 100, das 8 às 22 horas. “Os caminhoneiros são um segmento de interlocução necessária por causa da realidade machista dessa questão. A adesão dessa categoria, formada maciçamente por homens, significa sem dúvida tocar em mudanças importantes no padrão cultural. Não que eles sejam os únicos exploradores, mas por serem usuários cotidianos das rodovias, consideradas culturalmente corredores de prostituição”, afirma Neide.