Comemorando a derrota

No ano passado, Barack Obama tentou usar o 40º aniversário da saída do Vietnã para reescrever a história e transformar em jornada gloriosa o extermínio em massa da população civil vietnamita e a derrota infringida aos EUA.

Por Carlos Azevedo

Bombardeio dos EUA no Vietnã

O presidente dos EUA, Barack Obama, proclamou a “Comemoração da Guerra do Vietnã”. Deu poderes ao Departamento de Defesa programar uma série de eventos comemorativos até 2025, isto é, até que o encerramento do conflito chegue a seu 50º aniversário. Justificou sua decisão com palavras remarcáveis: “ao comemorarmos o 50º aniversário da guerra do Vietnã, nós refletimos com solene reverência sobre o valor da geração que serviu com honra. Pagamos tributo àqueles mais de 3 milhões de homens e mulheres que deixaram suas famílias para servir bravamente num mundo distante de tudo que eles conheciam e de tudo que amavam. De la Drang a Khe San, de Hue a Saigon e incontáveis povoados, eles foram adiante através das florestas, campos de arroz, no calor e na chuva, lutando heroicamente para proteger os ideais que são caros para os americanos. Ao longo de mais de uma década de combate, pelo ar, terra e mar, esses orgulhosos americanos sustentaram as mais altas tradições de nossas Forças Armadas”.

Comentando essas palavras, Michael Yats, editor da revista americana de esquerda Monthly Review, escreveu: “Essa é uma mentira do começo ao fim”. Trata-se, segundo ele, de uma “operação de branqueamento” da imagem da guerra, que vem sendo trabalhada continuamente e começou quando o ex-presidente Jimmy Carter declarou “sem nenhuma sombra de vergonha” que os EUA não tinham nada para se desculpar diante do Vietnã, porque a destruição tinha sido “mútua”. O ex-presidente Ronald Reagan chamou essa guerra de “causa nobre”.

Existe até a tese de que os EUA não perderam a guerra. Henry Kissinger, o principal conselheiro do ex-presidente Richard Nixon durante o conflito, em seu recente livro, Ordem mundial, defende que os revolucionários vietnamitas foram derrotados militarmente pelos EUA e pelo Exército do Vietnã do Sul, que suas duas principais campanhas, a ofensiva do Tet, em 1968, e a ofensiva geral de 1973, foram “fragorosas derrotas”, transformadas em vitórias pela manipulação da mídia americana. De acordo com ele, a divisão interna na sociedade americana foi o principal motivo daquele final, pois inviabilizou a continuidade da ação das Forças Armadas. Argumenta que em 1973 o Congresso cortou totalmente os recursos. Kissinger classifica o resultado dessa guerra com o eufemismo de “retirada”.

Essa lavagem cerebral tem sido, ao menos em parte, bem-sucedida. O ativista veterano de guerra Michael Uhl, que escreveu o livro Despertar do Vietnã, nota que hoje a maioria dos jovens americanos de 18 a 29 anos acha que não foi um erro mandar tropas ao Vietnã. E assim por diante. Crimes inegáveis, cometidos pelos americanos, inclusive o massacre do povoado de My Lai, em 1968, têm sido tratados como erros individuais, fruto de descontrole emocional, em desacordo com as ordens de seus comandantes.

O repórter Seymour Hersh levantou evidências que mostram que My Lai não foi exceção. Ele trabalhou na Guerra do Vietnã e, recentemente, visitou pela primeira vez a cena do massacre de My Lai. Há um museu memorial no local. A lista dos 407 mortos inclui mulheres, crianças e velhos. Ele achava que sabia quase tudo sobre a guerra, mas nessa viagem aprendeu que não e concluiu que o massacre de My Lai foi único apenas quanto ao número de vítimas. Houve muitos outros, como o de uma aldeia vizinha, My Khe, com 97 mortos.

Nguyen Thi Binh, conhecida como Madame Binh, hoje com 87 anos, que participou como diplomata das negociações de paz realizadas em Paris e depois foi por duas vezes vice-presidente do Vietnã, lhe assegurou: “não houve apenas uma My Lai na guerra do Vietnã, houve muitas”.

O diretor do museu memorial de My Lai, Pham Thanh Cong, sobreviveu por acaso ao massacre. Ele tinha 11 anos. Quando os helicópteros americanos chegaram, ele, sua mãe e irmãos se esconderam numa trincheira improvisada em vez de ficar em casa. Foram retirados dali e alvejados com granadas e tiros de fuzil M-16. Ele levou três tiros, na cabeça, nas costas e numa perna e perdeu os sentidos. Os soldados devem ter achado que ele estava morto. Quando acordou, viu-se cercado pelos cadáveres de sua mãe, das três irmãs e do irmão de 6 anos. Quando os americanos foram embora, seu pai e outros sobreviventes vieram cuidar dos mortos e o encontraram.

Vo Cao Loi, um dos poucos sobreviventes do massacre de My Khe, tinha 15 anos na época. Quando os soldados americanos chegaram à aldeia, sua mãe teve um mau pressentimento e mandou que ele se escondesse fora. Primeiro, a aldeia foi bombardeada por artilharia. Depois, veio a tropa pelo chão. Ele ouviu os tiros e gritos. De noite, saiu do esconderijo e foi encontrar sua mãe e irmãos entre os mortos. Dois dias depois, uma patrulha de vietcongs – como eram conhecidos os membros da Frente pela Libertação do Vietnã, que atuava no sul e era aliada do governo do norte – o encontrou e o levou consigo. Foi muito bem tratado e ajudou essa unidade durante a guerra. “Ganhei uma segunda família”. Loi e outros vietnamitas veteranos da guerra consideram que os massacres de My Lai e My Khe foram terríveis; porém, divulgados nos EUA, deram suporte para o movimento contra a guerra.

Em 2013, o jornalista e historiador Nick Turse publicou o livro Kill anything that moves: the real american war in Vietnam (em tradução livre, Mate tudo que se mova: a verdadeira guerra americana no Vietnã). Ele defende que a guerra foi um morticínio em massa contra a população civil. E a chama de “a guerra de negócios de Mc Namara”. Robert Mc Namara era o secretário de Defesa do então presidente Lyndon Johnson. Expert em logística, organizou o sistema de bombardeiros americanos durante a II Guerra Mundial, e havia sido presidente da Ford. Ele acreditava que vencer a guerra era simplesmente estabelecer uma meta e tentar alcançá-la como se faz em gerenciamento de uma empresa. A meta era fixar um “quociente de mortalidade”, a proporção entre inimigos e soldados americanos mortos, um número tão alto até alcançar o ponto sem volta em que o inimigo não teria mais soldados para substituir os abatidos. Então não teria mais capacidade de resistir e se renderia. Ele imaginava a guerra como um processo capitalista de produção. Só que em vez da acumulação de capital, o objetivo era a acumulação de inimigos mortos. A dificuldade estava em que o inimigo usava a tática de guerrilha, não se oferecia abertamente para o combate. Era difícil para as tropas dos EUA diferenciarem os combatentes da população civil. Todo vietnamita podia ser um soldado, mesmo sendo mulher ou criança. Embora isso não fosse oficialmente admitido, o incentivo ao aumento do quociente de mortalidade significava matar tantos civis quanto possível. É o mesmo que pensava Ronaldo Rumsfeld, secretário de Defesa do presidente George W. Bush, 35 anos depois, quando comandava a chamada “guerra ao terror”: “secar o brejo onde eles [os inimigos] vivem”. Isto é, matando os não combatentes, os soldados não teriam onde se esconder.

Para vencer a natural repulsa de matar dos jovens soldados, fazia-se uma combinação de apologia (o comandante das tropas americanas no Vietnã, general William Westmorelland, disse que “os orientais não dão valor à vida como nós”) com métodos de treinamentos cruéis e humilhantes, visando a transformar os recrutas em matadores frios. Eram levados a praticar assassinatos e tortura, comandados por oficiais frequentemente racistas sedentos de sangue e fazendo da guerra trampolim para avançar na carreira. Turse dá centenas de exemplos de que as matanças não eram exageros de subordinados, mas a politica oficial (ver “Os números da tragédia”, abaixo). Viajou pelo interior vietnamita e viu que em cada povoado, não importa quão pequeno e isolado, camponeses tinham construído memoriais com os nomes dos seus mortos, muitos deles vítimas de atrocidades tornadas rotineiras e não registradas porque encobertas por oficiais americanos. Destes, os mais sanguinários foram listados por Turse, como o general Julian Ewell, que ficou conhecido como o “açougueiro do Delta do Mekong”.

O defeito da “guerra de negócios” de McNamara foi que, a despeito do morticínio, os vietnamitas continuaram sua luta pela independência e terminaram por derrotar os EUA, como haviam vencido a França duas décadas antes. Contaram com apoio da URSS, da China e de outros países. E teve papel fundamental a oposição dentro dos EUA. As associações de veteranos, que denunciavam os crimes de guerra, os estudantes, que iam em massa para as ruas, e a juventude em geral, que fugia do recrutamento, somados ao fato de essa ter sido a primeira guerra mostrada diariamente nas telas da TV e nos jornais, evidenciando crimes, violência e derrotas. Esse conjunto de fatores criou um poderoso movimento contra a guerra que pressionou o governo e influenciou as decisões do Congresso.

No campo de batalha, um acontecimento crucial: cada vez mais soldados se recusavam a lutar. Os soldados negros descobriam a contradição entre serem oprimidos em seu país e estarem oprimindo outro povo. Crescia a recusa em cumprir ordens dos oficiais. Com certa frequência, soldados mataram seus oficiais. Encarregado de um estudo sobre o moral da tropa, o coronel Robert Heinel escreveu em relatório: “o moral, a disciplina e a disposição de combate das Forças Armadas dos EUA são, com algumas exceções, mais baixas e piores que em qualquer tempo neste século e possivelmente na história do país”. Ele disse que o Exército estava perto do “colapso”, com “unidades evitando ou recusando combater, soldados matando seus oficiais e seus substitutos, usando drogas, deprimidos quando não próximos de amotinados”. Destacou grande número de exemplos. Disse que em uma divisão, a morte de oficiais ocorria à média de uma por semana, em 1971. Citou ainda conspirações para matar oficiais, recusa em massa a obedecer ordens de combate, recusa em vestir uniforme, agitação aberta nas bases militares, largo uso de heroína e deserção, em alguns casos juntando-se às forças inimigas.

Soldados dissidentes eram mandados de volta aos EUA. Uma parte considerável deles estava tão desencantada com o que vira e com o que tivera que fazer que precisou tomar alguma atitude. Começaram a formar organizações de veteranos. A mais conhecida foi “Veteranos do Vietnã contra a guerra”. Realizavam manifestações públicas, como jogar fora as medalhas recebidas, relatar crimes cometidos, fazer petições, caminhadas, ocupação de edifícios públicos como a Estátua da Liberdade, fazer publicações, literatura, cinema, teatro etc. Veteranos tinham bastante credibilidade junto ao povo americano e isso produziu um forte movimento contra a guerra. Era a primeira vez na história do país que tantos soldados falaram aberta, honesta e publicamente sobre a loucura da guerra.

Andrew Hunt termina seu livro The turning: a History of Vietnam veterans against the war (em tradução livre, A virada: uma História dos veteranos do Vietnã contra a guerra) dizendo que a ação dos veteranos contribuiu significativamente para o fim da guerra do Vietnã. Muitos veteranos voltaram ao Vietnã após o conflito para ajudar na reconstrução do país. E tiveram estressantes lembranças do que foi feito lá em nome dos EUA. Quanto ao governo americano, por mais de 20 anos após a guerra recusou-se a pagar por prejuízos causados por bombas ou pelo “agente laranja”. Em 1996, aprovou um modesto fundo para a eliminação de minas. De 2001 a 2011, o Fundo de Memória de Veteranos do Vietnã, também ajudou a financiar esse programa, colaborando para reduzir o número de mortes. Veteranos americanos que voltaram ao Vietnã se dedicaram a colaborar com as autoridades na eliminação das minas e bombas não detonadas e para instruir a população, principalmente os camponeses, em detectar e neutralizar esses artefatos mortíferos.

Em 30 de abril passado, o Vietnã promoveu um grande desfile militar na cidade de Ho Chi Minh (antiga Saigon, capital do Vietnã do Sul) para comemora o aniversário de 40 anos de sua vitória contra o maior Exército do mundo. Nesse período, os vietnamitas, que se mantiveram sustentando a política do Partido Comunista, vêm deixando para trás a enorme tragédia que se abateu sobre o país e reconstruindo a nação. Desde os anos 1980, o país prospera com taxas de crescimento impressionantes e redução significativa da pobreza. Hoje, tem renda per capita de nível médio e membro da Organização Mundial do Comércio. A previsão é de um PIB avançando 6,2% neste ano, dando continuidade a uma sequência de 24 anos ininterruptos de crescimento. Apesar desses avanços, o povo vietnamita é obrigado a conviver diariamente com as sequelas da guerra, seja no esforço para recuperar o meio ambiente severamente prejudicado, seja pelas imensas perdas humanas, os milhões de pessoas, milhares de famílias inteiras, que o Exército dos EUA eliminou, e aquelas que ainda sofrem suas consequências.

Por tudo isso, quem tem o direito moral de comemorar os 40 e os 50 anos do fim da guerra como vitoriosos não são os americanos, mas os vietnamitas. Seja como for, nos últimos anos, as relações entre os dois países ficaram amistosas. Avançaram as trocas comerciais e investimentos dos EUA no Vietnã. Os americanos também têm estabelecido laços militares com o pequeno país do sudeste asiático, explorando pendências territoriais do Vietnã com a China. Tentando aliviar o sentimento de culpa, ou por haverem constituído família no Vietnã, muitos ex-soldados dos EUA, veteranos da guerra, têm voltado ao país. Uma parte deles decidiu morar lá e encontrou um ambiente amigável. Pham Thanh Cong, o encarregado do museu de My Lai, que escapou da morte por um capricho da sorte, sintetiza o sentimento dos vietnamitas: “Somos um povo gentil, acolhedor. Nós perdoamos, mas não esquecemos”. Como um autêntico representante do seu povo vitorioso, ele poderia acrescentar: “E sabemos guerrear!”

Do domínio chinês à expulsão dos americanos

O Vietnã também foi colônia da França por cerca de um século

A região do atual Vietnã fez parte da China Imperial por mais de dez séculos, período encerrado no ano 938 da era cristã. Dessa data até meados do século 19, quando a Indochina foi colonizada pela França, os vietnamitas foram independentes. O domínio francês perdurou até 1954, quando se encerrou a Primeira Guerra da Indochina, com a expulsão das tropas francesas (em meio a esse período, durante a II Guerra Mundial, o Vietnã foi ocupado por forças do Japão). O Vietnã foi então dividido em dois Estados rivais, o Vietnã do Norte (tendo Hanói como capital) e o Vietnã do Sul (Saigon). No sul, formou-se a Frente Nacional para a Libertação do Vietnã (cujos membros eram conhecidos como vietcongs), em apoio a Hanói. A partir de 1964, o conflitou se intensificou com a entrada de forças dos EUA em apoio ao Vietnã do Sul, dando início à chamada Guerra do Vietnã. Em 30 de abril de 1975, as tropas americanas se retiraram apressadamente de Saigon, que caiu sob domínio do Vietnã do Norte. A partir daí o país foi unificado como República Socialista do Vietnã, com sua capital estabelecida em Hanói. Saigon teve seu nome alterado para Ho Chi Minh, em homenagem ao grande líder comunista que dirigiu o Vietnã do Norte.

Números da tragédia

Nick Turse apresenta um sumário quantitativo da guerra, incluindo, além do Vietnã, Laos e Cambodja

No início da guerra, a população do Vietnã era de 19 milhões de pessoas; ao fim, 21% menor; 

ao menos 4 milhões de vietnamitas morreram em consequência direta da guerra, sendo 2 milhões de civis; nesse total, incluem-se 1,7 milhão de combatentes vietcongs; 250 mil soldados do governo pró-americano do Vietnã do Sul; 65 mil civis norte-vietnamitas, vítimas dos bombardeios massivos que alvejaram fábricas, escolas, hospitais, diques e barragens;.

o total estimado de feridos é de 5,3 milhões – um rápido levantamento indica que entre 8 mil e 16 mil sul-vietnamitas ficaram paraplégicos, de 30 a 60 mil ficaram cegos, entre 83 mil e 166 mil sofreram amputações;

mais bombas caíram sobre o Vietnã do que as jogadas por todos os lados em todas as guerras anteriores ao longo da História, foram três vezes o número que todos os lados jogaram na II Guerra Mundial;

19 milhões de galões de herbicidas envenenaram o solo;

entre 9 mil a 15 mil povoados rurais foram destruídos;

no Norte, todas as seis cidades industriais foram devastadas; 28 de 30 cidades provinciais e 96 de 116 distritos urbanos foram alvejados por bombardeios;

Nixon chegou a cogitar três vezes usar bombas nucleares, tendo censurado Kissinger por seus “escrúpulos” (na verdade, Kissinger temia que o uso de armas nucleares pelos EUA iriam dar pretexto para a URSS usar também);

após a guerra, bombas e minas não explodidas espalhadas pelo interior vietnamita mataram 42 mil pessoas e feriram milhares de outras; milhões de acres de terra não foram limpos das minas tornando-se inutilizáveis para agricultura;

o “agente laranja” e outros desfolhantes à base de dioxina têm causado severos problemas de saúde para milhões de vietnamitas até hoje, elevando a incidência de câncer, de aborto natural e de nascidos com má-formação física e mental;

grande parte das florestas do país foi destruída;

no Camboja, 3 milhões de toneladas de bombas destruíram 100 mil habitações, causando grande deslocamento social, destruição e fome, o que influiu diretamente para a ascensão do regime Kmer Vermelho, liderado por Pol Pot, com o consequente genocídio que se deu a seguir;

2,7 milhões de toneladas de bombas foram atiradas contra o Laos em mais de 100 mil locais (grande parte do interior laociano foi pelos ares).