Memória da ditadura: o navio fantasma em Santos, a prisão Raul Soares

No dia de hoje (25) o Comitê Popular de Santos – Verdade, Memória e Justiça vai promover, às 18 horas, um ato em memória das vítimas e parentes de presos políticos trancafiados, em 1964, no navio prisão Raul Soares.

Por José Carlos Ruy *


Memória da ditadura: o navio fantasma em Santos, a prisão Raul Soares

O navio foi atracado no cais do Porto de Santos, em 24 de abril de 1964, logo no início da ditadura militar, sendo usado como presidio para dirigentes sindicais, democratas, comunistas e outros opositores à ditadura implantada em 1º de abril, poucas semanas antes.

Era um navio velho, que não servia mais para suas funções. Fora construído para transporte de passageiros em 1900, pela companhia Hamburg Süd. Era usado para o transporte de imigrantes da Europa para a América do Sul. Foi vendido em 1919, para a Grã-Bretanha e, em 1925, para o Lloyd Brasileiro. Foi então batizado como Raul Soares, tendo sido usado para o transporte de migrantes nordestinos em busca do porto de Santos; depois foi adaptado para o transporte de carga. Em 1964 estava inativo, ancorado no Rio de Janeiro, sendo então requisitado pela Marinha, pintado de preto e rebocado até Santos, para cumprir a triste tarefa de presídio de democratas. Mais de 500 presos políticos passaram por ele – eram sindicalistas, estudantes, professores, militares dissidentes, comunistas e trabalhadores de todas as categorias que tentavam resistir contra a ditadura que se instalava no país.

As condições naquele navio-prisão eram as piores possíveis A comida era péssima, e os presos tinham que comer com as mãos, pois não havia talheres. E quem se recusava a comer sem os garfos, ficava com fome! Tinha três calabouços onde os presos eram deixados em condições degradantes e imagináveis. Aqueles calabouços foram batizados com os nomes de “inferninhos” da Boca do Lixo de Santos – "El Marroco", um salão totalmente metálico ao lado da caldeira, sem ventilação nem iluminação, onde a temperatura passava dos 50 graus; o outro era o "Night And Day", uma pequena sala onde o preso ficava com água gelada até o joelho; finalmente havia o "Casablanca", onde eram despejadas as fezes dos presos. O uso desses “inferninhos” fazia parte da tortura psicológica praticada contra os aprisionados.

Os sobreviventes relatam que não havia banheiro nas celas improvisadas, qualquer conversa era proibida e, quando alguns tentaram montar um sistema de comunicação (cartas, bilhetes, ou as conversas ao pé do ouvido ao estilo rádio – peão), a descoberta era punida com a proibição dos arejamentos e das idas ao imundo banheiro coletivo, sendo obrigados os presos a fazer suas necessidades no chão da própria cela.

Os carcereiros, comandados pelo tenente torturador da Polícia Marítima Ariovaldo Pereira (apontado como o mais violento entre eles), não acatavam nenhuma ordem judicial, nem mesmo habeas corpus.

Fazia parte da tortura psicológica deixar os presos ouvirem, nas noites, que o Raul Soares seria rebocado durante a madrugada, e deixado em alto mar.

Os raros presos que por ventura recebiam habeas-corpus, eram detidos outra vez assim que pisavam no cais; outros eram repetidamente trocados das celas próximas às caldeiras para as junto ao frigorífico do navio – chamado choque térmico – que deixou muitos deles doentes e que pode ter levado alguns desses prisioneiros à morte.

Seis meses depois, em 23 de outubro, o Raul Soares foi desativado como prisão e rebocado de volta para o Rio de Janeiro, onde chegou em 2 de novembro de 1964; foi desmontado e suas peças vendidas como sucatas.

“O Raul Soares é um emblema do golpe militar e da humilhação sofrida pela cidade de Santos, quando perdeu a sua autonomia política”, diz Maurício Valente, coordenador do Comitê.