A história do neoliberalismo, para entendê-lo além dos clichês

Os pensadores franceses Christian Laval e Pierre Dardot lançaram, recentemente, na França – e a Boitempo traduziu no Brasil –, o livro A Nova Razão do Mundo: Ensaios sobre a Sociedade Neoliberal, que traz uma instigante história crítica do neoliberalismo. O Vermelho publica na íntegra o prefácio assinado pelos dois intelectuais à edição brasileira.

A nova razão do mundo - Divulgação / Boitempo

Christian Laval é professor de sociologia da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense. Autor de diversas obras, atualmente está escrevendo sobre a radicalização do neoliberalismo após a crise de 2008. A nova razão do mundo, que acaba de chegar no Brasil, foi publicado na Espanha, na Turquia, na Itália, na Hungria e na Coreia, e em 2017 será lançado na Alemanha e na Grécia.

Pierre Dardot é filósofo e pesquisador também da universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense, especialista no pensamento de Marx e Hegel. Desde 2004, com Christian Laval, coordena o grupo de estudos e pesquisa Question Marx, que procura contribuir com a renovação do pensamento crítico.

O livro se propõe a esclarecer o que significa o neoliberalismo em nossos tempos. Este sistema que leva a sociedade a pagar preços altíssimos em nome do mercado. A urgência deste tema levou os pensadores Dardot e Laval a escreverem esta obra que passa a limpo os lugares-comuns sobre a natureza do capitalismo contemporâneo.

A análise é feita por meio de recursos pouco ortodoxos que conciliam a investigação histórico-social e psicanálise a fim de desfazer mitos e revelar oque há de novo no neoliberalismo: uma racionalidade global, que já não é apenas uma doutrina econômica ou ideológica e transforma profundamente as sociedades.

“A figura central dessa nova racionalidade é o ‘sujeito empresarial’. Cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar. O conceito define a totalidade do que já foi chamado por estudos anteriores de sujeito ‘hipermoderno’, ‘impreciso’, ‘flexível’, ‘precário’, ‘fluido’, ‘sem gravidade’, ‘individualista’”, explica a Boitempo.

Para os autores, conhecer o neoliberalismo é imprescindível para combatê-lo, a partir de uma análise lúdica. “Somente a compreensão dessa racionalidade permitirá que se oponha a ela uma verdadeira resistência e que se inaugure uma outra razão do mundo.” 

Leia na íntegra o prefácio à edição brasileira:

Um sistema pós-democrático

O neoliberalismo tem uma história e uma coerência. Combatê-lo exige não se deixar iludir, fazer uma análise lúcida dele. O conhecimento e a crítica do neoliberalismo são indispensáveis. A esquerda radical e alternativa não pode contentar-se com denúncias e slogans, muitas vezes confusos, parciais ou atemporais. Assim, é errado dizer que estamos lidando com o “capitalismo”, sempre igual a ele mesmo, e com suas contradições, que inevitavelmente levariam à ruína final. Eficácia política pressupõe uma análise precisa, documentada, circunstanciada e atualizada da situação. O capitalismo é indissociável da história de suas metamorfoses, de seus descarrilhamentos, das lutas que o transformam, das estratégias que o renovam. O neoliberalismo transformou profundamente o capitalismo, transformando profundamente as sociedades.

Nesse sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida.

A obra que você lerá, e que finalmente está disponível em português graças à editora Boitempo, foi escrita no período de gestação da crise financeira mundial de 2008. Foi publicada no momento em que se podia constatar a amplidão dos estragos causados pelo neoliberalismo. A convicção que tínhamos ao escrevê-la possuía fundamento: a crise não foi suficiente para fazer o neoliberalismo desaparecer. Muito, pelo contrário, a crise apareceu para as classes dominantes como uma oportunidade inesperada. Melhor, como um modo de governo. Ficou demonstrado que o neoliberalismo, apesar dos desastres que engendra, possui uma notável capacidade de autofortalecimento.

Ele fez surgir um sistema de normas e instituições que comprime as sociedades como um nó de forca. As crises não são para ele uma ocasião para limitar-se, como aconteceu em meados do século 20, mas um meio de prosseguir cada vez com mais vigor sua trajetória de ilimitação. O capitalismo, com ele, não parece mais capaz de encontrar compensações, contrapartidas, compromissos. A maneira como a crise de 2008 foi provisoriamente superada, com uma inundação de moeda especulativa emitida pelos bancos centrais, mostra que a lógica neoliberal escapa de maneira extraordinariamente perigosa.

O acúmulo de tensões e problemas não resolvidos, o reforço de tendências desigualitárias e desequilíbrios especulativos preparam dias cada vez mais difíceis para as populações. No entanto, o caráter sistêmico do dispositivo neoliberal torna qualquer inflexão das políticas conduzidas muito difícil, ou mesmo impossível, no próprio âmbito do sistema. Compreender politicamente o neoliberalismo pressupõe que se compreenda a natureza do projeto social e político que ele representa e promove desde os anos 1930. Ele traz em si uma ideia muito particular da democracia, que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo: o direito privado deveria ser isentado de qualquer deliberação e qualquer controle, mesmo sob a forma do sufrágio universal.

Essa é a razão pela qual a lógica não controlada de autofortalecimento e radicalização do neoliberalismo obedece, hoje, a um cenário histórico que não é o dos anos 1930, quando ocorreu uma revisão das doutrinas e das políticas do “laissez-faire”. Esse sistema fechado impede qualquer autocorreção de trajetória, em particular em razão da desativação do jogo democrático e até mesmo, sob certos aspectos, da política como atividade. O sistema neoliberal está nos fazendo entrar na era pós-democrática.

Na ausência de margens de manobra, o confronto político com o sistema neoliberal enquanto tal é inevitável. Mas esse confronto também é problemático, porque é difícil reunir as condições em que ele se dá. O sistema neoliberal é instaurado por forças e poderes que se apoiam uns nos outros em nível nacional e internacional. Oligarquias burocráticas e políticas, multinacionais, atores financeiros e grandes organismos econômicos internacionais formam uma coalização de poderes concretos que exercem certa função política em escala mundial. Hoje, a relação de forças pende inegavelmente a favor desse bloco oligárquico.