Magda Biavaschi: O impeachment e os direitos do trabalhador

 O que está na pauta, para além das questões da soberania, é o redesenho da proteção social conquistada a ferro e fogo neste país de mil e tantas misérias.

Por Magda Barros Biavaschi*

Trabalhadores
 Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
(Carlos Drummond de Andrade, Nosso Tempo)

As desigualdades sociais têm sido acirradas pela ditadura dos mercados financeiros, impactando as relações de trabalho e os direitos sociais. Segundo Tomas Piketty (PIKETTY, 2014), enquanto em 1973 a população 1% mais rica detinha 10% da renda, em 2013 passou a deter 20%.

Preocupado com esse cenário de desigualdade global e seus efeitos deletérios, o informe Oxfam 210, jan. 2016, acessível em: http://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos, o atribui a alguns fatores: paraísos e evasão fiscais, lucros altíssimos do 1% mais rico, exploração do trabalho, influência das grandes corporações e dos interesses financeiros e capacidade cada vez menor de os Estados nacionais controlarem a saída de capitais.

O Brasil não fica alheio a esse cenário. Ainda que dados do mercado de trabalho, sobretudo de 2006 a 2013, com algumas inflexões, apresentem real melhora dos índices de emprego, redução da informalidade e elevação da renda, e conquanto a política de elevação do salário mínimo tenha permitido, dentre outras igualmente relevantes, o início de um processo de integração dos “de baixo” a espaços sociais até então vedados, vivem-se tempos de inflexão dessa tendência.

Em meio à crise econômica mundial, desde o primeiro momento do governo Dilma as forças derrotadas nas urnas passaram a contestar seu poder de governar e, ao embalo da grande imprensa e com apoio de elites econômicas e financeiras deste país, prepararam as condições para o impeachment, finalmente proposto e em andamento no Parlamento brasileiro.

Nesse cenário, o PMDB, partido do vice-presidente Michel Temer, em outubro de 2015 lançou, pela Fundação Ulysses Guimarães, um programa de medidas detalhadas no documento “Uma Ponte Para o Futuro”. É sobre suas diretrizes que este artigo traz alguns elementos para se discutir o que está sendo preparado para o campo da regulação social do trabalho caso o impeachment se concretize, focando aspectos relacionados às normas de proteção ao trabalho, conquistadas pelos trabalhadores e, não sem muita tensão, consolidadas em 1943 para, em 1988, serem elevadas à condição de direitos sociais fundamentais.

Em meio ao avanço do processo de impeachment da presidenta que, aliás, não responde a nenhum processo-crime – ao contrário de quase todos os deputados da Comissão que votaram pela abertura – e visando a que os que desfrutam dessa proteção tenham clareza do que poderá ocorrer se o impeachment se concretizar, seguem considerações sobre as propostas do programa do PMDB, aliás, localizadas no campo ultraliberal do pensamento humano, fundamentadas em teorias que levaram a finança global ao colapso, como abordou Luiz Gonzaga Belluzzo em: “A independência do BC”, acessível em http://www.cartacapital.com.br/revista/815/a-independencia-do-bc-5208.html.

Além do aprofundamento de desastroso programa de ajuste fiscal, as medidas incluem, entre outras: retomada do crescimento via investimento privado; desvinculação dos gastos com as receitas para saúde e educação, o que desobriga o governo de destinar determinado percentual de recurso do orçamento para essas áreas, afetando setores que historicamente sofrem com falta de investimento; benefícios previdenciários não atrelados ao salário mínimo; elevação da idade para aposentadoria; manutenção da política de juros elevados, com aposta na queda da inflação via redução de gastos. Além disso, diretamente quanto ao tema deste texto, aponta para: reforma da Constituição de 1988; ampliação da terceirização no serviço público via parcerias privadas; e adoção do “negociado sobre o legislado”, em que o encontro das vontades “iguais” produz a norma que rege as relações sociais do trabalho, atribuindo à lei a condição de apenas fonte supletiva.

Nesse sentido, se adotadas, tais medidas provocariam substancial reforma trabalhista, edulcorada por retórica sedutora que se fundamenta na ideia de que somos todos iguais porque nascemos nus. Ao introduzir o tema do negociado com supremacia sobre o legislado, acatando proposição da Confederação Nacional da Indústria, CNI, nega, por essa via, o caráter de disputa entre classes próprio da relação capital e trabalho, apostando que o encontro das vontades “livres” define as normas que regem as relações de emprego. Quanto à terceirização, ao apontar para o aumento da contratação de servidores via parcerias com a iniciativa privada, escancara a possibilidade do incremento do uso dessa forma de contratar no serviço público, no pressuposto, aliás, de serem cumpridas as metas da Lei de Responsabilidade Fiscal. Tudo ao gosto do receituário que mostrou seus efeitos deletérios no final do século 19 e início do 20.

Segundo o DIAP, www.diap.org.br, são 55 projetos de lei no Parlamento, com potencial altamente destrutivo da tela de proteção social ao trabalho e que, na hipótese do êxito do impeachment, terão tramitação favorável à ação das forças que aprovaram o impedimento, em desrespeito aos princípios constitucionais da dignidade humana e do valor social do trabalho. Dentre eles, o que reduz a idade mínima para o trabalho de 16 para 14 anos (PEC 18/2011 – Câmara); estimula as relações trabalhistas entre trabalhador e empregador sem participação do sindicato (PL 8294/2014 – Câmara); flexibiliza o conceito de trabalho escravo, suprimindo tanto a jornada exaustiva quanto o trabalho degradante (PL 3842/2012 – Câmara, PL 5016/2005 – Câmara e PLS 432/2013 – Senado); estabelece prevalência das Convenções Coletivas do Trabalho sobre as Instruções Normativas do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE (PL 7341/2014 – Câmara); institui a prevalência do negociado sobre o legislado (PL 4193/2012 – Câmara); regulamenta a terceirização sem limites (PLC 30/2015 – Senado, PLS 87/2010 – Senado); extingue a incidência do percentual de 10% nas despedidas sem justa causa (PLP 51/2007 – Câmara e PLS 550/2015 – Senado, já aprovada na Comissão), em verdadeira barbárie impensável neste século 21.

O que está na pauta, para além das questões da soberania do país, é o redesenho da tela de proteção social conquistada a ferro e fogo neste país de mil e tantas misérias. Ao acenar para o retorno da vencida proposta do “negociado sobre o legislado”, encaminhada ao Parlamento no período FHC e arquivada pelo presidente Lula em 2003, propõe caminho de regresso a momentos que se mostraram nefastos para os trabalhadores, valendo lembrar, com Belluzzo, que o direito que nasce das relações mercantis não reconhece nenhum outro fundamento senão o da igualdade entre os produtores de mercadorias, bem como o que registrou o subprocurador-geral da República, João Pedro de Sabóia de Mello Filho, em encontro dos juristas com a presidenta: “Querem flexibilizar a legislação trabalhista, querem acabar ou pelo menos diminuir significativamente programas sociais, enfim, querem que o pobre fique eternamente passando fome”.

Será que é isso que a sociedade brasileira deseja? Calo-me, espero, decifro. As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto.

* Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do TRT4, doutora e pós-doutora em Economia Aplicada, IE-Unicamp/SP, pesquisadora do CESIT/IE/Unicamp, professora colaboradora/Pós-graduação do IE e IFCH/Unicamp.