Sem categoria

Um testemunho do enforcamento de Tiradentes

Este é um texto extraído do relato deixado pelo frei Raimundo de Penaforte, que foi confessor de Tiradentes e assistiu a seus momentos finais. Embora seja o depoimento de um representante do oficialismo, ele não consegue disfarçar a comoção que o espetáculo do enforcamento provocou entre o povo. Daí seu interesse.

O suplicio de tiradentes - Wikicommons

Residem no coração do homem uns certos pressentimentos cujas causas não nos são ocultas; porém, se quisermos ser fiéis à nossa fé, ela nos ensina que entre as nossas almas e as secretas disposições da Providência há um mútuo comércio, donde resultam aqueles presságios que nós mesmos chamamos batimentos de coração. Seja o que for, contudo, o mais esperançado foi o mais eloquente persuasor de uma irremediável morte. Sim, Alvarenga levantou a voz e falando aos principais culpados, disse: ‘Meus Amigos, aquela exceção não se entende comigo, nem com Vms., apenas Vidal e Salvador escaparão do laço’.

Quando pela meia hora apareceu o mesmo ministro, o seu rosto vinha como transformado e ninguém empregava nele os olhos que não respeitasse a terrível majestade da Justiça. Abriu os autos, e leu: Não são admitidos os últimos embargos pelas razões expedidas nos primeiros (…)

Um mortal suor os lavou e tragaram a gota do fel (…) mas vista a carta da Rainha, nossa Senhora, tornaram à vida (…) Comuta-se aos réus, exceto Tiradentes, a pena de morte em degredo perpétuo para os lugares da África, e se tornarem à América, morrerão irrevogavelmente morte natural da forca para sempre (…)

A pena não pode pintar os extremos de alegria que se deixaram ver tanto nos réus como nos outros presos da cadeia e na infinita gente que estava esperando pela última e fatal decisão! Os gritos, ou louvores, e as ações de graças se elevaram ao céu. Uns admirados celebravam tão inaudita piedade da soberana, outros mil vivas repetiam; qual perguntava ao outro: que é isto que ouço! É verdade? (…) Tal exclamava: quem tal dissera! (…) Os presos com toda efusão de seu coração entoavam a Salve Rainha e prosseguiram o terço de Nossa Senhora, finalmente todos a uma só voz diziam: que clemência! Que piedade! Só vós, Senhora, nascestes para governar! Que felicidade a nossa sermos vassalos de uma Rainha tão cheia de comiseração pelo seu povo! Governai-nos, Senhora, vós nos cativastes (…) Em verdade, este perdão firmou muito mais o direito de vassalagem nos corações de seu povo, do que a Justiça, ainda que revestida da clara luz do dia, que castigaria delito semelhante. Resplandece nesta clementíssima providência o inato amor, que consagra a soberana aos seus vassalos; qual o terno amor da mãe para com seus filhos, não menos em jogo de política, tão necessária aos príncipes, com o qual pretende atrair a si os corações de seus colonos, já aterrando-os, já confundido-os e concutindo-lhes os ânimos, como para lhes mostrar evidentemente a infidelidade de alguns, já com o horror dos últimos castigos, já finalmente com mitigar estes mesmos castigos até chegar ao excesso de dispensar nas leis ordinárias.

No meio de tão vivos transportes de alegria, só o Tiradentes estava ligado de mãos e pés, que justamente foi por último declarado sedutor; testemunhou esta não esperada metamorfose, mas tão coraçudo como contrito, respondeu ao diretor (*), que o confortava até aqui, ‘que agora morreria cheio de prazer, pois não levava após si tantos infelizes, a quem contaminara: que isto mesmo intentara ele nas multiplicadas vezes que fora à presença dos ministros, pois sempre lhes pedira, que fizessem dele só vítima da lei’. (…)

Amanheceu o dia 21 de abril, que lhe abriria a eternidade. Entrou o algoz para lhe vestir a alva e pedindo-lhe de costume o perdão da morte, e que a Justiça é que lhe moveria os braços e não a vontade; placidamente, voltou-se a ele e lhe disse: ‘a meu amigo, deixe-me beijar-lhe as mãos e os pés’; o que foi feito com demonstração de humildade com a mesma despiu a camisa e vestiu a alva dizendo “Que o seu Redentor morrera por ele também nu”.

Então vieram aqueles, que talvez tratavam de bagatela este fato, qual foi o peso em que o tomaram os que devem vigiar sobre os sagrados direitos dos reis; fazer temer e respeitar a sua suprema autoridade e conservar o sossego público. Soaram com alegria os instrumentos bélicos; de uns quartéis marcharam os regimentos, que guarneciam esta praça, com os seus respectivos uniformes maiores, e foram portar-se nos lugares determinados. O regimento de Moura bordava toda a rua da Cadeia de uma a outra banda, continuava o regimento de artilharia até o largo da barreira de Santo Antônio, chamado o campo da Lampadoza; avulsas patrulhas demandavam continuadamente este largo, apartando o indizível concurso do povo, que cada vez mais se apinhava. Os demais regimentos estavam postados em figura triangular, deixando uma praça vazia, na qual estava a forca elevadíssima, de sorte que a escada, por onde se subiria a ela tinha mais de vinte degraus, e as colunas dos regimentos reforçavam-se ao depois das outras, que bordavam a dita rua e marcharam na retaguarda de todo o acompanhamento, que seguia o réu. Dava a tropa as costas ao patíbulo; as cartucheiras estavam providas de pólvora e bala.

Comandava este campo o brigadeiro Pedro Alves de Andrade, que tinha dado o risco desta postura em ordem aos respectivos chefes do regimento. Em soberbo e bem ajaezado cavalo, o brigadeiro percorreu todo o campo, observando o alinhamento da tropa. Ao lado do brigadeiro ricamente montado ia D. Luiz de Castro Benedito, como Exmo. ajudante-de-ordens do Vice-Rei, seu pai; a sua guarda de respeito era de dois soldados de cavalaria, e dois sargentos-mores, igualmente bem montados, acompanhavam o ajudante-de-ordens para as expedições que fossem necessárias. (…)

Abria o caminho por entre o desfilamento dos regimentos, que bordavam a rua, a primeira companhia do esquadrão; seguiu-se o clero, a irmandade e os religiosos, que rodeavam o padecente, repetindo os salmos próprios para estas ações.

Causava admiração a constância do réu, e muito mais a viva devoção que tinha aos grandes mistérios da Trindade e da Encarnação; de sorte que, falando-se-lhes nestes mistérios, se lhe divisavam as faces abrasadas e as expressões eram cheias de unção: o que fez que o seu diretor não lhe dissesse mais nada se não repetir com ele o símbolo de S. Atanásio. O valor, a intrepidez e a pressa com que caminhava, os solilóquios que fazia com o Crucifixo, que nas mãos levava, encheram de extrema consolação aos que lhe assistiam.

Os ministros da Justiça formavam um respeitável e majestoso ajuntamento. Os meirinhos guardavam o réu executor; após estes ia o juiz de fora montado em brioso cavalo; era de prata a ferragem dos arreios e as crinas iam trançadas e rematadas com laço de fita cor-de-rosa. Apostava o ouvidor da comarca no asseio, riqueza e melindre de sua cavalgadura com o juiz de fora. Sobre todos aparecia o desembargador ouvidor geral do crime; os arreios de seu vistoso cavalo eram de prata dourada, de veludo escarlate e franjas de ouro as gualdrapas e os estribos dos arreios. Fechava este acompanhamento a 2ª companhia do esquadrão: no coice desta procissão vinha o carretão, que traria os quartos, depois de feita a execução, puxado por galés. (…)

Ligeiramente subiu os degraus e sem levantar os olhos, que sempre conservou pregados no Crucifixo sem estremecimento algum, deu lugar ao carrasco para preparar o que era necessário, e por três vezes pediu-lhe que abreviasse a execução. Não desistiram os sacerdotes de dirigir a Deus os auxílios tão necessários para avivar a fé, a esperança e a caridade em transe tão arriscado.

O guardião do convento de Santo Antônio, que também acompanhava a seus súditos, inflamando-se desmarcadamente em caridade e justiça, subiu a escada e daí admoestou os espectadores que não se deixassem possuir só pela curiosidade e do assombro, mas que implorassem a Deus a última graça para quem tão constante ia pagar o seu delito, e que assim mesmo tinha servido de objeto da clemência da soberana, que não o punia mais gravemente, e não menos da iluminada justiça de seus ministros, que não lhe agravaram a pena.

Repetido pelo mesmo padre guardião o credo, viu-se suspenso de uma das traves da forca o corpo do infame réu, cuja alma em paz descanse. (…)

As janelas das casas estão vindo abaixo de tanto mulherio, cada uma apostava com a outra o melhor asseio. Não permitiu a Providência que a curiosidade roubasse a maior parte deste espetáculo; foi tal a compaixão do povo da infelicidade temporal do réu, para que lhe apressarem a eterna, ofereceram voluntariamente esmolas para dizerem missas por sua alma: e só nessa passagem tirou o irmão da bolsa cinco dobras. Era impossível que este fato com as suas circunstâncias, não tocasse vivamente os corações dos bons e fiéis vassalos, e que vassalos cristãos não descobrissem nele uma particular providência, e que não adorassem! Assim o sentiu a câmara dessa cidade, que determinou que se pusessem as luminárias nas três noites seguintes, e se fizesse uma ação de graças; para o que escolheram a igreja dos Terceiros Carmelitas.

Por convite da mesma fez pontifical de manhã o Exmo. e Rvmo. Bispo diocesano, e de tarde repetiu o muito reverendo padre-mestre Sr. Dr. Fernando Pinto, carmelita, uma nervosa oração fundada sobre três pontos dados pelo Ilmo. e iluminado juiz da alçada e chanceler, para que não se misturassem com os transportes do povo os verdadeiros, que deviam surpreender os ânimos e corações dos bons e fiéis vassalos, e foram: 1° – Render graças a Deus pelo benefício que fez aos povos de Minas Gerais em se descobrir a infame conjuração a tempo que foi dissipada e sem que fosse posta em execução, e se seguissem as perniciosíssimas consequências que dela resultariam; 2º – Por não ser contaminada esta cidade do contágio da dita infame conjuração; 3º – Persuadir ao povo fidelidade, amor e lealdade a uma soberana tão pia e tão clemente e rogar a Deus que lhe conserve a vida e o Império. (…)

Finalmente, a pena não pode pintar o contentamento, a alegria e o prazer que se divisavam no rosto de todos, e a voz comum, que por muitos dias se ouviu, dizia: nunca se viu tanta clemência. Esta universal e sincera expressão formará para sempre a fidelidade deste povo à nossa augusta, pia e fidelíssima Rainha, que Deus conserve por dilatados anos”.

(*) Diretor era sinônimo, na época, de sacerdote, de guia espiritual.