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Tiradentes e Frei Caneca, heróis republicanos

Trecho colhido na dissertação de mestrado de Júlio César Vellozo, Um Dom Quixote Gordo no deserto do esquecimento – Oliveira Lima e a construção de uma narrativa da nacionalidade. São Paulo, Instituto de Estudos Brasileiros, USP, 2012.

Por José Murilo de Carvalho

Tiradentes e Frei Caneca - Reprodução

Frei Caneca era um competidor mais sério. Herói de duas revoltas, uma pela independência, a outra contra o absolutismo do primeiro imperador, morrera também com mártir, fuzilado, pois nenhum carrasco se dispusera a enforcá-lo.

Joaquim Norberto censurava a Tiradentes exatamente por não ter morrido como os mártires de 1817 e 1824, desafiadores, o grito de liberdade na garganta, autênticos heróis cívicos. Em vários discursos no Clube Tiradentes, mencionava-se o fato de não ter sido o herói mineiro o único mártir republicano, nem o primeiro. Frei Caneca era às vezes mencionado como merecedor de respeito.

Um dos fatores que podem ter levado à vitória de Tiradentes é, sem dúvida, o geográfico. Tiradentes era o heroico de uma área que, a partir da metade do século 19, já pode ser considerada o centro do país – Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, as três capitanias que ele buscou, num primeiro momento, tornar independentes. Aí foi também o mais forte o republicanismo e mais difundidos os clubes Tiradentes. O Nordeste, ao final do século 19, era uma região em decadência econômica e política e não se distinguia pela pujança do movimento republicano. Além do mais, a Confederação do Equador também apresentara tintas separatistas que a maculavam como movimento nacional. Se é verdade que a Inconfidência tinha em vista a libertação de apenas três capitanias, isso não se devia a qualquer ideia separatista, mas a um cálculo tático. Libertadas as três, as outras seguiriam com maior facilidade.

Parece-me, no entanto, que há ainda outro elemento importante na preferência por Tiradentes. É possível que sua vantagem estivesse exatamente no ponto que Joaquim Norberto o criticava. Frei Caneca e seus companheiros tinham-se envolvido em duas lutas reais, em que houvera sangue e morte. Morreu como herói desafiador, quase arrogante, num ritual seco de fuzilamento. Foi um mártir rebelde, acusador, agressivo. Não morreu como vítima, como portador das dores de um povo.

Morreu como líder cívico e não como mártir religioso [caso de Tiradentes], embora, ironicamente, se tratasse de um frade.

Tiradentes foi exatamente o contrário. O patriota virou místico A coragem que demonstrava – era coraçudo, como dele disse o frade Panaforte – vinha, ao final, do fervor religioso e não do fervor cívico. Assumiu explicitamente a postura de mártir, identificou-se abertamente com Cristo. O cerimonial de enforcamento, o cadafalso, a forca erguida a altura incomum, os soldados em volta, a multidão expectante – tudo contribuía para aproximar os dois eventos e as duas figuras, a crucificação e o enforcamento, Cristo e Tiradentes. O esquartejamento posterior, o sangue derramado, a distribuição das partes pelos caminhos que antes percorrera também serviram ao simbolismo da semeadura do sangue do mártir, que, como dissera Tertuliano, era semente de cristãos 290.