Lecio Morais: O mundo abaixo de zero; a crise em uma nova fase

 Em fevereiro, notícias sobre a adoção de taxa negativa de juros por vários bancos centrais, ou a sua elevação, ganharam destaque na mídia. As decisões que mais ganharam destaque foram as dos bancos centrais do Japão e da Suécia.

Por Lecio Morais*

Taxa de juros

A Suécia, que já as tinha adotado em 2015, elevou sua taxa negativa para empréstimo aos bancos para 0,5% ao ano, e o Japão adotou este empréstimo a 0,1%.² Tidas, com razão, como esdrúxulas, as medidas são reações à pressão deflacionária que já se manifesta há algum tempo, em especial na Europa Ocidental e no Japão, mas que também já se revelam nos EUA e mesmo na China.

A deflação, uma queda de preços contínua, eleva o valor do dinheiro, trazendo, em consequência, uma forte retração da demanda solvente, a daqueles que têm dinheiro para comprar, mas não o fazem. O que aumenta ainda mais a massa dos que, desempregados e falidos, ficam sem dinheiro algum à medida que o desemprego aumenta e o governo corta despesa por conta da queda da arrecadação.

A princípio pode-se imaginar que a valorização do dinheiro seja positiva para quem o detêm sob a forma de capital, já que poderia valorizá-lo sem correr nenhum risco. Mas não funciona assim.

O problema é que a desvalorização das mercadorias vai tornando sua produção e comercialização impossível, ameaçando a evaporação dos lucros. Perde-se também a possibilidade de investir capital ou emprestá-lo, dado o evidente risco de perda. Se a produção e a distribuição da mais-valia tender a cessar, o valor dos capitais em dinheiro também se evaporará. E a eclosão de grandes convulsões sociais entra na ordem do dia. A deflação é, de fato, o maior terror dos capitalistas. Nesta fase da crise o capitalismo periga soçobrar, desarticular-se.

Por essa razão, a evolução de uma deflação vem sempre acompanhada do fenômeno do entesouramento. Como até o capital em dinheiro é prejudicado por ela, uma parcela cada vez maior do capital monetário começa a buscar proteção de seu valor de outra forma. Eles começam a fugir do dinheiro fiduciário (como o papel-moeda e os depósitos bancários), adquirindo moedas-mercadoria (como o ouro ou outros metais). Estas moedas não servem bem às transações, mas são boas para preservar valor.

O entesouramento pode ser definido como o movimento de furtar-se a participar do ciclo de produção da mais-valia e de sua acumulação, negando, assim, sua própria natureza de capital. Esta definição mais geral permite entender como o entesouramento antes feito principalmente em ouro, agora passa a ser realizado, nesta crise, como veremos, em títulos dívidas públicas de alguns países.

Porém, o que é uma solução para uns, torna-se um perigo crucial à existência do sistema capitalista. Embora esta fuga seja temporária, até que melhores tempos retornem, ela eleva o risco demore a retornar.

O entesouramento como uma nova fase da crise

O fenômeno do entesouramento já era apontado por Marx como uma fase crítica da crise capitalista. Ele acontece logo no início da crise, mas sua importância ainda é secundária. Nesta fase, os principais fenômenos são a redução súbita do investimento, a destruição do capital por insolvência, o desemprego em massa e uma importante queda na demanda agregada.

A expansão paulatina do entesouramento, pari passu com a deflação, é a marca do que se pode considerar uma segunda fase da crise. Por isso, já é notável as mudanças nas políticas monetárias iniciais. Até então, os objetivos relacionavam-se à garantia do funcionamento dos mercados financeiros, mantendo a liquidez e o valor dos seus ativos, evitando a destruição em cadeia (o risco sistêmico). Agora, o objetivo passa ser cada vez forçar o capital a manter-se como capital: investindo, produzindo ou financiando.

O entesouramento e as taxas de juros negagtivas 

Primeiro é necessário compreender que o aparecimento de taxas negativas não existe apenas em uma circunstância, mas sim, em três diferentes casos. Todos relacionados à emergência da deflação e do entesouramento. Discutiremos estes casos na ordem cronológica de seu surgimento.

O primeiro caso de taxa negativa surge como consequência direta da política monetária anticrise inventada pelo FED, o banco central americano, que foi logo acompanhada pelos principais bancos centrais. A política anticrise do FED criou um programa de compra maciça de títulos financeiros privados que se tornaram invendáveis no crash de 2008. Algo absolutamente inédito.

Este programa foi continuado, a partir de 2011, com a política do “quantitative easing” adotando pelo FED e também por outros bancos como o BCE. Novos títulos continuaram a ser comprados ou recomprados. O FED que manteve tais compras e recompras até 2013, adquirindo títulos no valor de mais de meio trilhão de dólares por ano. O BCE não manteve o programa e, recentemente, elevou a cota mensal de 60 para 80 bilhões de euro, sem prazo de conclusão.

O funcionamento do mercado financeiro internacional, apesar da aparente normalidade, depende dessas operações chapas brancas para não se paralisar.

O plano do FED se baseou na ideia de que, preservando os capitais financeiros da insolvência, o mercado internacional se restabeleceria, com seus recursos voltando a estar disponíveis para retornar o financiamento do investimento ao nível pré-crise. O que resolveria a crise.

Porém, os bancos e investidores não restauraram sua confiança. Os recursos dos títulos podres, trocados por títulos públicos pelos governos e outros recursos disponíveis não se transformaram em empréstimos. Os títulos públicos foram mantidos e os recursos foram mantidos como depósitos voluntários remunerados nos próprios bancos centrais. Os bancos preferiram a segurança que o mercado. Mas isto não pode ser considerado ainda como entesouramento.

Em 2013, o FED zerou a remuneração dos depósitos voluntários, tentando forçar os bancos a retornar esses valores às transações do mercado financeiro. Em seguida, em 2015, a maioria dos grandes bancos centrais passou a cobrar pelos depósitos voluntários, aumentando a pressão sobre os bancos para aumentar a oferta de crédito. Porém, os recursos continuam a retornar ao mercado.

Os bancos passaram a optar assim por pagar para manter seu dinheiro nos bancos centrais, surgindo assim, o primeiro caso de taxa negativa de juro. O entesouramento se materializava.

A partir de 2014 passou a se registar um segundo caso de transação com taxas de juro negativas. Os mercados de títulos públicos europeus e japonês as transações com títulos públicos passaram a ocorrer por um valor superior ao que estes títulos renderiam no futuro. Neste caso, de novo, os bancos e outros investidores preferiam pagar para emprestar em vez de investir para ganhar. O entesouramento sofreu forte expansão.

Há agora, nesta crise, um novo tipo de entesouramento. Em vez do ouro monetário, instrumento preferido até a crise da década de 1970, a demanda está se concentrando em títulos públicos de países considerados mais “sólidos” e financeiramente mais conservadores. É possível que o volume de ouro monetário tornasse inviável o enorme volume da demanda por proteção de valor. Mas também, esta secundarização do ouro, pode ser também uma consequência do fim das moedas com lastro em ouro.

A importância que o entesouramento sob a forma de títulos públicos com taxa de juro negativa pode ser avaliado pelo seu volume nos mercados secundários, como se ver na tabela abaixo (de março de 2016). Os países que têm mais títulos entesourados são aqueles em que atingem maior prazo de duração. O campeão é a Suíça, que tem todos seus títulos, até quinze anos de vencimento, “rendendo” juros negativos.

Os títulos que hoje apresentam taxas negativas não são os emitidos pelos governos. Estes, quando emitidos, continuam a pagar taxas positivas, embora cada vez mais próximas a zero. As operações feitas com títulos são aqueles emitidos no passado, agora pertencentes a investidores, que especulam no mercado, embolsando os juros negativos embutidos em preços de títulos mais caros. O que cria um problema adicional de o entesouramento em títulos vir criando ele próprio uma “bolha financeira”.

Segundo analistas em maio de 2015, cerca de 30% dos títulos públicos de países europeus em circulação eram transacionados com taxas negativas.³ E a estimativa global do valor dos títulos públicos com taxa de juros negativos, afora os “depósitos voluntários” nos grandes bancos centrais atingia 5,3 trilhões de euros (US$ 6 trilhões).4 E este valor vem continuando a aumentar.

Embora, os governos possam neutralizar este entesouramento em nível sistêmico, retornando o dinheiro à circulação pelo aumento de seu gasto, isto é praticamente impossível. O volume do entesouramento é muito elevado também em nível nacional, o que torna impossível realizar o nível de monetização necessário. O volume de meios de pagamentos seria multiplicado e as taxas de juros explodiriam, levando a economia nacional ao mesmo resultado que se pretenderia evitar.

Por fim, em 2016, surgiu o terceiro tipo de taxa de juro negativa, desta vez para incentivar, outra vez, a oferta de crédito. Agora alguns bancos centrais (em especial, o BCE), reagindo ao entesouramento, passaram a pagar aos bancos para eles tomarem emprestados. Agora o BCE está “pagando” o risco dos bancos para que voltem a emprestar!5

O esforço governamental e a inventividade dos bancos centrais mais importantes para trazer os capitais monetários “à força” para o mercado de crédito, vem mostrando o pavor que os move frente à ameaça da deflação e do entesouramento e também a tendência do capital em seguir se protegendo.

O fracasso da política de salvar os capitais financeiros

O avanço do entesouramento mostra que as expectativas são no sentido de que a crise se agrave ou, pelo menos, continue. Mostra também o fracasso da estratégia inventada pelo FED para enfrentar a crise. O esforço dos maiores estados capitalistas e de seus bancos centrais para dar solvência aos capitais financeiros, salvando-os da destruição, fez com que eles, na prática, venham substituindo o próprio mercado no comando direto do funcionamento do sistema financeiro internacional, mantendo sua solvência. Uma situação absurda e que nega as certezas do neoliberalismo.

As armas dos bancos centrais, agora, começam a se restringir. Ainda é possível, se continuar a não dar certo, que passe a se usar novos instrumentos para se reativar a demanda via mercado financeiro, mas tais instrumentos serão cada vez mais esdrúxulos com resultados ainda mais incertos e efeitos colaterais ainda mais perigosos, como é o caso, já aludido, de simplesmente distribuir dinheiro a todos os cidadãos.[6]

Mas até agora tem adiado apenas uma grande depressão, e criando uma tendência crescente à estagnação em meio a grande instabilidade financeira.

A fase do entesouramento, por ser a mais destrutiva, traz consigo também uma premente pressão de resolver a crise. Uma tendência como a solvência do capital financeiro, pouco ou nada conseguiram até agora.

Mas o sistema capitalista é diferenciado e as barreiras nacionais podem facilitar ou obstaculizar a difusão das perdas e dos custos da crise internacional. Todos tratam de se defender ou mesmo de tirar vantagens da crise para seus capitais. Como sempre, algumas nações sairão perdendo e outras ganhando (ver mais sobre isso em meu artigo, em fevereiro último).

E isso diz respeito também ao Brasil. Para nós o tema crucial é particularmente crucial, pois, temos também uma crise interna que vem nos colocando inermes. Mas esta é outra história.

²Na verdade, outros bancos europeus menores, como os da Áustria e da Dinamarca já a adotaram em 2015.

³Ver Jeremy Warner, The Telegraph

4Ver Contra Corner

5Esta mudança, assim como o fim da remuneração do depósito voluntário, tem também reflexo no câmbio das diversas moedas e podem estar sendo usadas para impedir valorização. Mas, a variação da taxa faria um efeito muito pequeno no câmbio.

6Ver discussão sobre “distribuir dinheiro por helicóptero”, por A. Nadal, em Sin Permisso: