Programa de emergência do PT e utilização de reservas internacionais

O programa nacional lançado para discussão pela direção nacional do PT em fevereiro passado (também chamado de programa de emergência para a crise) apresenta como novidade uma proposta de utilização de parte de nossas reservas internacionais como fonte de recursos (funding) para o financiamento de projetos de infraestrutura.

Por Lécio Morais*

Dólar

Parte das reservas, em valor não definido, formaria um Fundo Nacional de Desenvolvimento e Emprego, destinado a financiar “obras de infraestrutura, saneamento, habitação, renovação energética e mobilidade urbana”.

Dado o elevado nível de nossas reservas de divisas (US$ 371,7 bilhões em 29/02), a destinação de uma parcela, mesmo que seja, por exemplo, um quarto dela, já constituiria um enorme funding para o financiamento do investimento, mesmo que o volume disponível seja diferido ao longo de alguns anos.

Entretanto, dada a significância econômica do mecanismo a ser criado, a proposta levanta uma oportuna discussão sobre o funcionamento do Fundo e as consequências macroeconômicas dele decorrentes, assim como as dificuldades institucionais à sua concretização.

O funcionamento do Fundo e as consequências macroeconômicas

Não é a primeira vez que o uso de reservas internacionais é proposto como solução de problemas internos da economia.

Em setembro de 2015, por exemplo, o professor Amir Khair propôs a venda de até 100 bilhões de dólares das reservas com o objetivo de reduzir a dívida mobiliária pública federal em seu equivalente em reais. O dólar empregado para o resgate da dívida pública a reduziria em um terço. A operação reduziria a dívida pública bruta do setor público, em valores atuais, 67% do PIB, para cerca de 45%. Uma drástica redução, que recuperaria um grande espaço fiscal.

No entanto, em análise procedida sobre esta proposta, um artigo neste mesmo site, revelou que a operação traria, mesmo se executada ao longo de alguns anos, consequências macroeconômicas indesejáveis e inclusive contraproducentes. A necessária conversão maciça das reservas em reais traria uma pressão considerável para valorizar o real, criando também uma grave restrição à ação do Banco Central na execução da política monetária e até mesmo em para operar a necessária conversão do dólar em reais. [ii]

Embora a fonte de recursos seja a mesma, o objetivo da proposta do PT, bem como seu mecanismo da conversão do dólar em reais, é muito diferente. A proposta do Fundo é constituir uma fonte permanente de financiamento interno de longo prazo, inicialmente constituída pela conversão de parte das reservas em reais. A conversão também seria procedida de forma diferente, não diretamente por meio de uma operação cambial de venda, mas sim, de modo indireto, com emissão direta de reais para constituir o patrimônio do Fundo.

Embora o programa não traga maiores detalhes sobre o fundo proposto, seu mecanismo de funcionamento provável seria assim:

1) O BC transferiria parte dos dólares das reservas, certamente em parcelas, para constituição do Fundo (que pode ter natureza pública, mas de direito privado). Cada parcela em dólar seria, revendida ao BC em troca de reais, para financiar obras públicas de infraestrutura. Em consequência, os dólares entregues ao Fundo retornariam às reservas do BC. E os reais resultantes seriam depositados diretamente na conta do agente financeiro nas reservas bancárias do próprio BC, permanecendo fora da circulação monetária;

2) Na verdade, a transação entre o BC e o Fundo assumiria a natureza de uma operação contábil, pois a entrega de dólares não alteraria a posição das reservas internacionais (exceto quando o financiamento fosse feito à importação). Na prática, o BC estaria apenas autorizado pela lei a emitir reais a ser entregue, como patrimônio, a um fundo público, que o ofertaria como crédito de longo prazo para obras de infraestrutura. Como este tipo de financiamento se dá em parcelas vinculadas à entrega de fases da obra, os reais emitidos, entrariam em circulação paulatinamente, reduzindo o hiato entre o acréscimo monetário e a produção, minimizando qualquer efeito inflacionário;

3) Haveria uma instituição financeira para administrar e ser o agente principal do Fundo (podendo ser, por exemplo, o BNDES). Mas o Fundo também poderia ser agenciado por outras instituições estatais ou privadas.

A nova proposta de criar um Fundo para financiar o investimento público tem natureza distinta da proposta de Amir Khair. No caso de Khair, haveria uma redução das reservas tendo como objetivo diminuir a dívida bruta e líquida do Tesouro. Neste caso, o BC teria que atuar diretamente na determinação do equilíbrio entre a taxa de câmbio e o preço do título público, criando possivelmente mais um constrangimento ao exercício da política monetária.

O objetivo da proposta do Fundo nada tem a ver com o endividamento público. E, como descrito, o mecanismo de utilização das reservas e de emissão de reais é também muito diferente. Como descrito, a troca de dólares por reais sequer afeta o estoque de divisas. Tão pouco trazem desequilíbrio ao balanço da autarquia.

Isso acontece porque ao Fundo não interessa constituir seu patrimônio com as divisas transferidas. Os dólares serão para o Fundo apenas uma fonte inicial para constituir um patrimônio em reais. Carregar dólares só lhe traria custos com o risco cambial, o que causaria a elevação do custo do crédito ofertado.

O único impacto macroeconômico do uso das reservas seria o aumento da oferta de crédito de longo prazo. Uma mudança que só estaria em contradição com uma interpretação muita restrita da atual política monetária contracionista. Pois esta oferta monetária teria como maior efeito atrair a demanda solvente dos investidores, um efeito que é um dos objetivos finais de qualquer política monetária, por mais contracionista e draconiana que seja.

A proposta deste novo funding para o investimento de longo prazo substituiria, com vantagem, o mecanismo utilizado de emissão de dívida pública ao BNDES, posto em prática pelo governo entre 2009 e 2014. A nova fonte significaria uma mudança no sistema financeiro, pois, embora o funding venha a ter um limite definido em dólares, ele constituiria, ao final, um patrimônio do Fundo em reais, adquirindo dinâmica própria e se perenizando.

Deste modo, podemos concluir que a proposta não fragilizaria a posição das reservas, não tem natureza inflacionária e se constitui em uma medida estrutural que fortalecerá o sistema financeiro nacional no que diz respeito à oferta de crédito longo prazo.

O problema institucional da proposta

Até agora, as críticas à proposta de utilização das reservas para financiamento de longo prazo, concentram-se em dois argumentos institucionais.

O primeiro, é que as reservas não pertencem ao Tesouro, mas sim ao Banco Central, tanto que elas contam como um ativo em seu balanço. Deste modo, não poderiam ser transferidas para outra instituição. O segundo argumento é que a criação do Fundo faria com que o Banco Central voltasse a ser um banco de fomento, como aconteceu no passado, prejudicando a exclusividade de objetivo da autoridade monetária.

Quanto à “propriedade” das reservas pelo Banco, o argumento equivoca-se. Primeiro pelo fato de que a aquisição de reservas pelo BC não foi feita as suas custas, mas por emissão de títulos do Tesouro. Por isso, elas são propriedade da União, e não do BC ou de qualquer outra entidade.

E segundo porque o fato de as reservas serem um ativo do BC é apenas uma determinação legal. Ela decorre de uma conveniência da lei também determinar ser o Banco Central o responsável por geri-las. É apenas um arranjo legal. E como tal, não há empecilho que outra lei faça diferente.

Em outros países, como os EUA, a gestão das reservas é feita por um órgão diferente e independente do Banco Central, sem que isso provoque qualquer efeito na autoridade do FED, nem muito menos na gestão das reservas.

Quanto ao “perigo” de o Fundo fazer com que o BC se transforme em um banco de fomento, é um argumento sem o menor sentido. O Fundo será uma instituição independente, não subordinada ao Banco Central. Não cabendo ao Banco participar de sua direção e muito menos de sua política de aplicação.

Mas essas razões não evitarão uma forte reação conservadora à criação do Fundo. Em especial porque, sendo necessária uma lei para criá-lo, terá que contar com a maioria das Casas do Congresso Nacional.

O verdadeiro problema por trás da resistência conservadora não é jurídico, mas sim ideológico. É o entendimento de que as reservas do país, na verdade, são de propriedade dos capitais domiciliados no Brasil, não pertencem propriamente ao Estado brasileiro. O argumento é que as divisas adquiridas têm por origem, em sua quase totalidade, a ação dos capitais privados, seja pelos saldos em moeda estrangeira decorrentes do comércio externo, seja de empréstimos tomados, ou ainda pela captação de investimento estrangeiro.

Reivindicam, desta forma, que as reservas, apesar de administradas pelo Estado para regular os meios internos de pagamento, têm por objetivo precípuo garantir a reconversão de reais em divisas caso haja decisão do capital para ser repatriado ou para buscar ganhos no exterior. Estas decisões são tomadas exclusivamente pelo interesse privado de obter ganhos ou de se defender de eventos ou política que ponham o capital em risco. Em resumo, é a doutrina do direito do capital a livre movimentação interfronteiras.

Esta é uma interpretação falsa. Sua sustentação ideológica não tem sequer base jurídica. Primeiro, porque a conversão em moeda nacional é uma transação livremente decidida pelo capital, não existindo nela nenhuma obrigação de reversão, tanto fazendo a troca ser feita diretamente pelo Banco Central ou por um banco privado. E quando as divisas são centralizadas no Banco Central, como é o caso brasileiro, são por ele adquiridas com recursos públicos.

É claro que as reservas devem manter-se com grande grau de liquidez, já que servem à defesa de nossa moeda contra um ataque especulativo ou a sua indisponibilidade. Na situação atual, no entanto, o volume das reservas é mais do que suficiente para defender a economia, não havendo nenhuma razão para que esta parte excedente não possa ser utilizada para cumprir outros objetivos nacionais, mesmo porque, como vimos, sua utilização de reservas pelo Fundo sequer compromete o seu volume total.

Em resumo, a conclusão de nossa avaliação é que a proposta do uso das reservas internacionais para criar uma nova fonte de financiamento do desenvolvimento nacional é uma forma criativa de usar nossas volumosas, e caras, reservas. A criação do Fundo como proposto pode ser uma mudança estrutural no nosso sistema financeiro, um sistema disfuncional para com o financiamento de nosso desenvolvimento de longo prazo. O uso das reservas institucionais para este fim atender o interesse nacional mais legítimo de garantir um desenvolvimento robusto e, em especial, equitativo.

*Lecio Morais é economista, mestre em Ciência Política. Atua como assessor técnico na Câmara dos Deputados.