Umberto Eco: O homem que sabia de tudo

Ao anunciar a morte de Umberto Eco, na última sexta-feira (19), o jornal italiano La Reppublica publicou um título que resume bem a importância do escritor e sua influência futura nas mais diversas áreas do conhecimento: “Morreu Umberto Eco, o homem que sabia de tudo”.

Por Felipe Tessarolo*

Umberto Eco - Divulgação

Natural de Alessandria, uma comuna da região de Piemonte, no norte da Itália, Umberto Eco foi escritor, filósofo, professor, crítico literário e semiólogo, sendo autor de vários livros sobre semiótica, estética medieval, linguística e filosofia. Acredito que um dos grandes méritos dele foi o de produzir conhecimento acadêmico numa linguagem acessível e sem os vícios de quem escreve trabalhos científicos. Quem é da área de semiótica sabe muito bem o que eu estou falando. Além de atuar no mundo acadêmico ele também trabalhou em programas culturais na televisão pública italiana, a RAI. Foi nesse período que se interessou pela semiótica e foi contratado para dar aulas na Universidade de Bolonha (a mais antiga da Europa).

Tenho um carinho especial pelo seu trabalho, pois leciono disciplinas que têm como base conhecimentos das áreas da Estética e das Teorias da Comunicação e utilizo algumas das obras escritas por ele. Percebi que muitos portais de notícias o “definiram” como o autor de O Nome da Rosa, mas isto seria o mesmo que dizer que Pelé foi um grande jogador de futebol. Assim como a semiótica estuda os fenômenos culturais como se fossem sistemas sígnicos, ou seja, como detentores de significado, o trabalho de vida do escritor italiano não pode ser descrito por um único ponto de vista, pois Eco soube atuar em diferentes áreas do conhecimento e da vida como um malabarista que brinca com várias bolinhas ao mesmo tempo.

Um bom exemplo dessa habilidade pode ser observado no livro O Nome da Rosa, no qual ele escreve uma narrativa que tem um pouco de relato histórico, suspense policial e ao mesmo tempo é uma crônica medieval. A história gira em torno de Guilherme Baskerville, um monge franciscano que visita uma abadia no norte da Itália, em 1327, e de repente se vê inserido numa sequência de eventos envolvendo crimes, conspirações e descobertas extraordinárias. O romance foi adaptado ao cinema em 1986 e contou com Sean Connery no papel principal, o ator foi premiado com o Bafta, de melhor ator de cinema, por sua interpretação nesse filme.

As obras acadêmicas

É engraçado assistir numa entrevista o escritor “reclamando” do sucesso do seu primeiro romance, O Nome da Rosa. Segundo o italiano, por mais que escrevesse um livro melhor do que aquele, ele sempre era lembrado como o autor de O Nome da Rosa, o qual ele não considerava um dos seus melhores trabalhos. “Os livros não são feitos para que alguém acredite neles, mas para serem submetidos à investigação. Quando consideramos um livro, não devemos perguntar o que diz, mas o que significa” (O Nome da Rosa).

Assim como a semiótica, que estuda os modos como o homem percebe aquilo que o rodeia, Umberto Eco soube interpretar vários aspectos do cotidiano do homem e transitar entre o mundo acadêmico e a cultura popular. Dentre as obras acadêmicas gostaria de ressaltar:

* Obra Aberta (1962) – o livro traz uma série de ensaios sobre a produção artística europeia que convidava o intérprete a participar da construção final do objeto artístico. Ou seja, toda obra de arte é aberta e não pode ser reduzida a apenas uma interpretação.

* Apocalípticos e Integrados (1965) – uma obra obrigatória dentro da disciplina de Teorias da Comunicação, pois nela o autor apresenta uma série de ensaios sobre a questão da cultura de massa na era tecnológica. Para o autor os apocalípticos são aqueles que condenam os meios de comunicação de massa enquanto que os integrados aqueles que os absolvem.

* História da Beleza (2004) – um trabalho audacioso onde o autor procura responder alguns dos grandes questionamentos sobre o Belo. O que é a beleza? O que é arte? Gosto se discute? O livro procura analisar as transformações do conceito do Belo através dos tempos.

* História da Feiura (2007) – O autor se volta agora para a feiura buscando identificar as representações visuais ou verbais e refletir sobre os parâmetros que definem a existência do feio, do cruel e do demoníaco.

A percepção da realidade que nos cerca

Além desses trabalhos, destaco seu trabalho mais recente. Em Número Zero o autor aborda o mundo do jornalismo, principalmente do mau jornalismo. Na história, um grupo de redatores, reunidos ao acaso, prepara o jornal Amanhã com o objetivo não de informar, mas de prestar serviços duvidosos a seu editor, manipulando, chantageando e amedrontando adversários políticos na preparação de uma edição que nunca é publicada. Apesar de ser um romance, o livro é um verdadeiro manual do mau jornalismo e traz uma série de reflexões sobre a comunicação e a informação na sociedade atual. “Não são as notícias que fazem o jornal, mas o jornal é que faz as notícias, e saber juntar quatro notícias diferentes significa propor ao leitor uma quinta notícia” (Número Zero).

Numa entrevista dada em 2015 ao jornal La Stampa, o escritor ainda aconselhou os jornais a filtrarem com uma “equipe de especialistas” as informações da web porque ninguém é capaz de saber se um site é “confiável ou não”. Segundo ele, “as redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas agora têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis”.

O futebol também mereceu a sua atenção, mesmo que eles não fossem tão próximos. “Não amo o futebol porque o futebol nunca me amou.” Dessa forma o italiano descreveu a sua relação com esse esporte. De qualquer forma, o time de futebol Alessandria utilizará uma braçadeira negra nas próximas partidas homenageando um dos seus filhos mais ilustres. “Quem assiste ao futebol é um depravado sexual. Marcar um gol é como fazer sexo. Além disso, diante de tamanha depravação, até mesmo o marquês de Sade pareceria uma criança inocente. O torcedor é como um voyeur. Em algumas ocasiões, pode ser também interessante assistir aos outros fazendo amor, mas você vai concordar que é definitivamente melhor fazer do que ficar assistindo. Mas eu não posso perder esse jogo, é muito importante. É melhor jogar futebol, claro, mas eu sou um apaixonado e não posso perder.”

Percebe-se agora o porquê do título “O homem que sabia tudo”, pois com o vasto repertório adquirido ao longo de sua carreira acadêmica Umberto Eco transitou entre diferentes áreas do conhecimento como uma habilidade que poucos possuem. Com a sua partida o mundo perde um homem dos mais importantes da cultura contemporânea e que nos fazia ampliar a nossa percepção sobre a realidade que nos cerca.