Como ganhar dinheiro à custa de oito milhões de empregos

A rigor, a história do filme A Grande Aposta (The Big Short), que está na corrida para ganhar um Oscar este ano, não deveria ser uma comédia dramática; deveria ser um drama. Ou melhor: deveria ser uma tragédia. Mas para se tornar palatável às grandes plateias, a linguagem escolhida para tratar de assunto tão específico (Economia) foi a do quase deboche.

Por Léa Maria Aarão Reis*, na Carta Maior

A Grande Aposta - Divulgação

No bojo do roteiro escrito pelo seu diretor, Adam McKay, e baseado no livro homônimo de Michael Lewis sobre a avassaladora crise financeira de 2007/2008, cuja origem ocorreu nos Estados Unidos, os dados conclusivos são sombrios.

Cinco trilhões de dólares de aposentadorias de idosos americanos viraram pó. Oito milhões de indivíduos perderam os empregos e seis milhões de pessoas viram suas casas – seu único bem – se transformar em dívida impagável.

Contabilizada no filme de Mckay, esta é a conta obscena de uma monumental crise capitalista iniciada lá atrás e ainda agora longe de acabar. Embora a mídia e jornalistas econômicos hoje silenciem sobre o assunto (mais uma vez, aliás), a bolha do desastre americano estourou, mas voltou a inchar e se perpetua até aqui como mostra The Big Short, com um elenco de estrelas, magníficos atores de Hollywood da nova geração: Christian Bale, Steve Carell, Ryan Gosling e Brad Pitt. Trunfos para chamar e prender a atenção.

Outro achado inteligente é o tratamento dinâmico, com pequenas legendas esporádicas que de vez em quando surgem na tela e explicam ao espectador as referências da engrenagem que move o universo de Wall Street; bancos, agências reguladoras (que não regulam coisa alguma exceto seus interesses), dealers, corretores, investidores, todos caçando dinheiro grosso diante de monitores e  nos bares de downtown,  movidos a Zoloft e a Xanax (como é sublinhado no filme) e nos esnobes restaurantes japoneses da moda.

“Os termos complexos que os economistas usam, ”diz um personagem,” são propositais, para confundir as pessoas.”

 A história começa alguns anos antes do estouro. Os personagens são reais. Mostra Michael Burry (Christian Bale), dono de uma empresa de porte médio, no interior do país, um nerd alucinado que decide investir uma fortuna do fundo que coordena ao apostar que o sistema imobiliário nos Estados Unidos quebraria dentro de alguns poucos anos. Sacrilégio. Nunca antes alguém apostara contra o sistema e levado vantagem. Mas algumas poucas pessoas foram capazes de enxergar isso e Burry foi uma delas. No final do boom, ficou ainda mais bilionário do que já era apostando contra os bancos e, portanto, contra o mercado imobiliário americano.

Ao saber do investimento de Burry, um corretor, Jared Vennett (Ryan Gosling), percebe que ali está uma oportunidade e passa a oferecê-la a seus clientes. Um deles é Mark Baum (Steve Carell),  outro alucinado, um atormentado pelo suicídio do irmão e alimentado com tranquilizantes.

Em narrativa paralela, dois iniciantes na Bolsa de Valores percebem que também podem ganhar muito dinheiro ao apostar na crise imobiliária que se avizinha; procuram e pedem conselhos e orientação a um ex-guru de Wall Street, Ben Rickert (Brad Pitt), então aposentado, que vive recluso com a mulher, numa fazenda na Europa entre plantas e sementes (da Monsanto).

O dinheiro e a ganância que manipula as expectativas são as molas que impulsionam a ansiedade sem limites e reforçam a insensibilidade diante do sofrimento humano. “Para os bancos,” diz o experiente Rickert/Brad Pitt,” os seres humanos são meros números.”

O filme acompanha o ritmo sem fôlego dos personagens tanto nas reuniões brutais com analistas experientes do Goldman Sachs, às gargalhadas, assegurando que o mercado nunca quebraria porque o sistema “é extremamente sólido”, assim como na cena em que o cínico redator de economia do Wall Street Journal se recusa a produzir e publicar uma matéria de advertência, mesmo acreditando que ocorrerá o boom, para “não perder minhas fontes” – e o emprego dele, naturalmente.

 E ilustra bem como, durante o período anterior à crise, apesar de perceberem o que acontecia, as agências de risco e outros agentes do mercado financeiro ajudaram, como normalmente fazem, a esconder o desastre anunciado. “As mesmas agências de risco que avaliam hoje o Brasil de maneira pior do que avaliam economias bem menos estáveis, como a russa,” ressalta o advogado Marcos Villas – Bôas, depois de ver o filme.

“Isto se chama fraude! É dinheiro que deveria ir para a saúde, alimentação, para a educação, e está indo para o ralo,” exclama um agente financeiro, quando começa a quebradeira, antes da visita de Benjamin Bernanke e Alan Greenspan à Casa Branca – e mencionada no filme de passagem -, para pedir o resgate do governo… aos bancos. “As pessoas comuns são as que vão pagar por isto!” diz o corretor.

“Até hoje a grande maioria das pessoas não entende o que ocorreu,” diz outro. “As pessoas tendem a não pensar em coisas ruins e acham que coisas ruins nunca vão acontecer.”

Num dos bares de Washington onde se reúne a nata do pessoal do mercado,  o cartaz na parede sobre o balcão relembra: ”Em geral, as pessoas odeiam a verdade; e a verdade é como a poesia.” Já a legenda com assinatura do poeta japonês Murakami é clara: ”No fundo do coração, todos nós esperamos o fim do mundo.”

O fim do mundo ocorreu – ou está ocorrendo aos poucos?

No final de A grande Aposta algumas cifras corroboram essa sensação para além do desastre financeiro; a de fracasso humano.

Depois da explosão do mercado, em 2007/2008, apenas um banqueiro foi preso. Entre 2009 e 2012 a renda de 1% da população americana aumentou 32%. Os restantes 99% de indivíduos do país mal viram seus salários subirem 1%. Sessenta mil pessoas são homeless – sem teto. Dormem em abrigos públicos e vivem de dia pelas ruas de Nova Iorque. Dessas, quase a metade são crianças.

Para um dos mais sérios economistas brasileiros, Marcio Pochmann, da Unicamp, “quase oito anos após o seu começo, a crise capitalista de dimensão global segue sem saída à vista. Ao que parece, avizinha-se uma quarta onda de sua manifestação.”

E o pior, se é que pode haver um dado ainda pior apresentado no final de A Grande Aposta: no ano passado, os bancos começaram a vender bilhões de dólares em investimentos chamados Bespoke Tranche Opportunities (BTOs), que, segundo os especialistas dizem, é  um outro nome para CDOs, aqueles mesmos causadores do apocalipse de oito anos atrás.