Em defesa da Arte Pública

Quando uma coisa é pra frente ou uma coisa é pra trás? Quando o pra frente é pra trás e o pra trás é pra frente? Quando pra frente e pra trás é tudo a mesma coisa? Quando morde a serpente o seu próprio rabo?

Por Amir Haddad* no Outras Palavras

arte pública - Lutti Pereira

O ouruboros (ou ouroboro ou uróboro) é um símbolo representado por uma serpente, ou um dragão, que morde a própria cauda. O nome vem do grego antigo: οὐρά (oura) significa “cauda” e βόρος (boros), que significa “devora”. Assim, a palavra designa “aquele que devora a própria cauda”. Sua representação simboliza a eternidade. Está relacionado com a alquimia, que é por vezes representado como dois animais míticos, mordendo o rabo um do outro. Simboliza o ciclo da evolução voltando-se sobre si mesmo. Contém as ideias de movimento, continuidade, autofecundação e, em consequência, eterno retorno (Dictionnaire des symboles).

É impossível fugir de si mesmo e do que você tem a fazer. Seu primeiro pensamento articulado, em sua mais distante infância, já é e será todo o seu pensamento a ser articulado por toda a sua vida. O mesmo, sempre. Mudando em direção a uma síntese cada vez maior dele mesmo. Como uma nebulosa que vai se condensando e se articulando cada vez mais para formar estrelas, sóis, planetas, cometas. Enorme diversidade, mas tudo o mesmo princípio (impulso invisível). Motivo pelo qual você foi organizado no cosmos e materializado no planeta.

Arte pública

A arte pública, como a chamo, me deu a oportunidade de entrar em contato com minha ancestralidade. Participar de maneira clara e consciente da memória e do inconsciente coletivos. O que me dá um pouco esta sensação de reencarnação ou de já ter vivido o que estou vivendo e vou viver.

Certa vez um “pai de santo” disse que eu era uma alma muita velha e iria lembrar de minhas outras “encarnações”. Presente, passado e futuro, tudo misturado. Não se trata, porém, de predestinação. Mas de estar tendo acesso à memória de nossa ancestralidade e nos ver como seres históricos, em movimento na vida deste planeta.

Não só eu já vivi aquilo. Mas toda a humanidade também. O cidadão pobre, carente e ignorante, maltrapilho, que para na rua para ver meu teatro (arte pública) tem também a sensação de já ter visto aquilo muitas vezes, em todas as épocas, e sente-se reconfortado ao reconhecer tão bem uma coisa que nunca viu. Eu também já o vi me assistindo muitas vezes, em muitos lugares.

Você ergue um braço na praça, faz um gesto e, de repente, a sensação de ter feito aquilo sempre. De já ter feito aquele gesto naquela ou outra praça em qualquer lugar, em qualquer parte do mundo, em qualquer parte do tempo. Um só lugar, um só momento. Todos os lugares, todos os momentos.

Você nunca fez aquilo antes, ali naquele lugar. Mas o ser humano, portanto você, já fez aquilo muitas vezes, em muitos lugares, em todos os tempos. Faz parte de um patrimônio valioso da memória coletiva da humanidade, a que se pode ter acesso através das artes. Das artes que se manifestam nos espaços públicos, por meio do contato direto do artista e sua obra com a população, sem discriminação de nenhuma espécie, em todo e qualquer lugar.

O que é muito diferente do que se faz hoje quando o ser humano tem garantido um lugar para exibir, montar, compartilhar o que seu afeto e inteligência generosamente produzem. E está autorizado a cobrar por esta doação, produção da natureza humana, limitando assim o âmbito de suas ambições de atingir uma plateia absolutamente diversificada, e, principalmente, condicionando esta produção dos seus afetos e inteligência a um único critério. Aquele do seu comprador. Eu pago para ver o que eu quero ver, do jeito que quero ou estou acostumado a ver. Mesmo o novo, que já nasce velho.

Os laços que se criam entre obra/autor e espectador serão profundamente alterados. Dificilmente um espetáculo privado, pago, mercantilizado teria a capacidade de remeter a nossa ancestralidade. Não conseguiria por uma questão de linguagem, adequação ao seu público pagante. No entanto, cada vez que o ator entra em cena estão entrando com ele milênios de história da humanidade. Mas não é um patrimônio a que ele está acostumado a recorrer para compartilhar artisticamente.

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Suas dúvidas e certezas. Seus sentimentos do mundo, como o homem das cavernas que em vez de caçar o búfalo, preferiu pintá-lo na parede de sua caverna. Aquilo ali era também a sua vida. Como seus cantos, suas danças, guerras, ritos, religiões, encontros noturnos em torno do fogo recém-conquistado para contar as histórias do tempo da escuridão total e do medo da morte. A aventura de sentir-se ameaçado e ao mesmo tempo livre do perigo. A aventura humana de viver. O teatro, o drama, a narrativa e a possível e inevitável continuidade da vida e da arte.

Dante, Virgílio, Boccaccio, Scheherazade, Chaucer, Shakespeare, Molière. Voltar na história para remover a couraça ideológica implantada sobre o mundo dos nossos afetos mais verdadeiros. O teatro é filho da história, não da ideologia. As artes todas também.

Melodias populares da Idade Média são executadas por músicos e cantores com trajes a rigor nos salões dos palácios reais da Bélgica ou da Inglaterra para uma burguesia que se quer aristocrata.
É preciso recuperar a indignidade perdida. Descamar a manifestação artística e descobrir o que se esconde por baixo de séculos de calcificação mas que, contudo, ainda e sempre pulsa.

O que você aprende como artista público, trabalhando nas ruas, em contato com a população, é que nada é definitivo e tudo está em movimento. E a arte, ou a produção artística é, e será sempre, eternamente velha, eternamente jovem. Não há nada a ser salvo a não ser nossa ancestralidade. Não mais a política ou a economia, mas novas velhas maneiras de beneficiamento da produção cultural do ser humano. Não mais o latifúndio. Mas o minifúndio “agrícola” e cultural.

Devolver à arte seu sentido público original obriga a nos repensar como seres humanos, a rever nossos afetos, a pensar que as coisas são de um jeito, mas podem perfeitamente ser de outro jeito. E que cabe a nós mesmos dar os passos necessários para que conceitos e pré-conceitos sejam constantemente revisitados, sem preconceitos. Para construirmos outro mundo, muito diferente deste aqui, igual a este aqui.