Histórias de folia e afeto no carnaval de Fortaleza

Há quem diga que Fortaleza não foi feita para Carnaval. Talvez por ignorar que a Capital ferve com a festa desde os séculos passados. É verdade que houve hiatos nas comemorações, quando a Segunda Guerra Mundial transformou festa em seriedade ou quando os moradores optaram por destinos litorâneos como Paracuru, Aracati e Beberibe.

Por Isabel Costa, do jornal O POVO

Ilustração carnaval Fortaleza

Fortaleza tem carne e coração carnavalescos. E as ruas se desdobram em blocos, cordões, maracatus, afoxés, corsos e confetes. Historiadores e brincantes fazem relatos de alegria e improviso que só são possíveis de existir em Fortaleza – como a deposição de um Rei Momo, em 1975. Foi nossa gente que fez nascer Chão da Praça, Batuquê da Praia e tantas outras músicas que embalam Carnavais. E é aqui onde o Maracatu se reinventa ano após ano, onde Dona Mocinha deixou seu legado, onde a molecagem sempre encontra lugar e onde todos os ritmos conseguem ter espaço.

Carnaval e seca

Não é de agora que a estiagem influencia o Carnaval de Fortaleza. Em várias ocasiões do século passado a festa precisou ser cancelada ou reduzida em virtude da ausência de chuvas. Um ano emblemático foi 1916, após a chamada seca do quinze. Houve forte campanha contra a realização do ciclo carnavalesco. A Cidade se dividia entre quem achava a festa possível e quem não tolerava a realização diante de tantos flagelos vindos do Interior. À época, a imigração para a Capital era a única saída dos retirantes. A solução encontrada foi realizar bailes filantrópicos. As rendas foram convertidas para o socorro das vítimas “do terrível flagelo da fome”. Hoje, apesar da mudança no fluxo de imigrantes, Carnavais foram cancelados em virtude da seca que perdura há cinco anos.

O corso

Uma prática carnavalesca iniciada na década de 1920 fez sucesso durante quase todo o século. O Corso, desfile de automóveis pelas ruas da Capital, era uma das atrações da festa. Para isso, o poder público organizava e divulgava rotas. O tráfego dos bondes, inclusive, tinha o itinerário alterado. Cada casa de prostituição alugava um carro, conta o historiador Nirez. “Era uma brincadeira. As moças saiam sentadas no motor, no porta-malas. Todas as mulheres muito bem arrumadas, desfilando”, conta. O Corso perdurou por décadas.

O balanceio de Lauro Maia

Lauro Maia é um dos compositores fortalezenses mais icônicos, responsável pela criação do Carnaval do Balanceio. A estreia dele diante de uma plateia, entretanto, aconteceu por acaso. Com menos de 16 anos, foi convidado para substituir o pianista do Cine Majestic, que havia faltado. Deu certo e, dali em diante, seguiu se apresentando em palcos e rádios locais. Tempos depois, dividido entre o curso de Direito e o trabalho na Diretoria de Viação e Obras Públicas do Estado, passou a abraçar o ofício de compositor, se destacando como fino carnavalesco. Em 1942, chegou a ganhar uma escola de samba com o seu nome.

Fortaleza das escolas de samba

Para além dos Maracatus, Fortaleza tem uma história com as escolas de samba. Na década de 1930, era a Escola de Samba Lauro Maia que agitava os bairros. Com a Segunda Guerra Mundial houve um hiato forçado nas comemorações. Somente em 1946, as agremiações puderam desfilar e encantar a avenida. Foi no pós-guerra que a escola de samba mudou de nome, passando para Escola Luiz Assunção. “Ele (Luiz) era um dos componentes e, quando chegou na concentração para desfilar, teve a surpresa de terem mudado o nome.”, conta Nirez. Luiz comandou a escola nos anos 1960.

Chão da praça

Moraes Moreira, depois de sair dos Novos Baianos, estava em busca de parceiros para seu trabalho solo. Morava em Botafogo, Rio de Janeiro, quando conheceu o arquiteto cearense Fausto Nilo. Conversaram sobre música e nasceu a amizade. Certo dia, Moraes ligou para Fausto, dizendo que tinha uma ideia para uma canção. O arquiteto estava com uma letra pronta. Encontro marcado, música e letra se encaixaram perfeitamente. E os versos do frevo Chão da Praça ecoam até hoje no Carnaval de Fortaleza. Juntos também fizeram Coisa acesa, De noite e de dia, Eu também quero beijar e Meninas do Brasil.

Rei Momo deposto

João Bezerra de Menezes foi deposto do cargo de Rei Momo, em 1975. A decisão foi tomada em decorrência de atritos do monarca com cronistas carnavalescos. A deposição do Rei Bezerrão foi anunciada no domingo de Carnaval. O substituto na linha de sucessão real foi Catunda Pinho, 24 anos. “Catunda relutou e Bezerrão explodiu quando soube da decisão. Mas Rei deposto é rei morto. Morreu mesmo. E de raiva. Não quis entregar a fantasia, que lhe havia sido dada pela Prefeitura”, segundo dizeres do joprnal O POVO à época. Fortaleza ainda tem uma realeza de primeira linha. Em 2016, o escolhido para reinar foi Gilberto Félix, 39 anos. A coroação acontece sábado, 30, no Náutico Atlético Cearense, às 22 horas.

Batuquê de praia

O Carnaval de 1983 foi marcado por um álbum compacto contendo duas composições de Petrúcio Maia: Batuquê de Praia e Cantos do Rio. As gravações foram feitas por Raimundo Fagner e pelo então jogador de futebol Zico. As canções foram sucesso no ciclo carnavalesco, tocadas exaustivamente pelas rádios do País. Meses antes, entretanto, foi divulgado que Martinho da Vila seria o parceiro de Fagner no trabalho – previsão não concretizada. Até hoje, Batuquê da Praia permanece como uma das canções mais tocadas no Carnaval alencarino. Petrúcio Maia, falecido em 1994, é um notório compositor fortalezense. No seu legado estão as canções Frenesi, Conflito, Morena Penha e Cebola Cortada.

O legado de Dona Mocinha

Iraci de Souza Batista, a Dona Mocinha, não foi uma apaixonada por samba desde o início. A presença de jovens boêmios em seu bar, entretanto, fez a matriarca “criar gosto” pelo ritmo. Entre os frequentadores antigos estão Gilberto da Cuica, Haroldo Capoeira, Zé Renato, Fernando Cavaco e Júnior da Cuica. Dilson Pinheiro, integrante do grupo, conta que o local se firmou como um polo de sambistas. “De vários bairros. Sabiam que lá tinha um samba legal, de raiz”. Depois, Dona Mocinha viajou para o Rio de Janeiro – onde foi elevada à ala das baianas da União da Ilha. Por seu ponto, passavam puxadores de samba de escolas cariocas e paulistas. Ela era apaixonada por Fortaleza e uma incentivadora do Carnaval. Morreu em 2011 e deixou como presente para a cidade o Bar da Mocinha – que continua sendo o reduto dos sambistas e polo oficial do ciclo carnavalesco da Capital.

O carnaval do Benfica

O bloco Quem é de Bem Fica – um dos responsáveis por firmar o Pré-Carnaval em Fortaleza na década de 1990 – surgiu a partir de uma conversa na calçada, conta Dilson Pinheiro, folião e organizador. “Um jornalista que morava no Benfica estava aniversariando. E o Marcos Braga, amigo dele, me chamou para ir lá. Eu fui. Como eu não conhecia bem o rapaz, dei parabéns e fui para a calçada. Encontrei vários amigos do Benfica e disse que tinha saído da (avenida) Beira Mar e estava pensando em fazer um bloco, que já tinha até o nome: Quem é de bem fica. Isso era 20 de dezembro de 1994”. A empolgação foi tanta que, em 14 de janeiro, o bloco desfilava pela primeira vez, em um cortejo que saiu com 30 pessoas e voltou com 100. A agremiação fez a festa por seis anos, até a extinção. O Benfica não deixa de ser carnavalesco. Hoje, é a casa dos blocos Sanatório Geral e Cachorra Magra.

A rivalidade dos clubes

Desde a década de 1930, os clubes encabeçaram o Carnaval de Fortaleza. Havia festa nas ruas, sim. Mas os bailes em locais fechados, para grupos escolhidos e com grande preparação, eram as grandes atrações. Durante o século passado, foram muitos os locais que surgiram, fizeram sucesso e desapareceram. Os clubes travavam verdadeira disputa para decidir quem conseguiria fazer o melhor Carnaval. Entre os que marcaram época estão Clube Líbano Brasileiro, Clube de Regatas Barra do Ceará, BNB Clube. Outros, como o Náutico Atlético Cearense e o Ideal Clube, permanecem com seus Carnavais até hoje.

Nasce o maracatu Nação Fortaleza

Fundado por Calé Alencar, o Maracatu Nação Fortaleza é um dos mais representativos da Capital. Em 2005, quando fazia a estreia na avenida Domingos Olímpio, o grupo precisou de apoio para conseguir fazer o desfile. Imersos nos preparativos, na confecção das roupas e na coleta de recursos, os integrantes acabaram esquecendo um item essencial: a tinta preta para pintar os rostos. “No momento da preparação, já na avenida, vimos que ninguém havia lembrado. Fomos até o Maracatu Nação Baobá e o grupo, gentilmente, cedeu uma lata. Graças a generosidade, estreamos no Carnaval com muita dignidade”, conta Calé. Hoje, segundo o compositor, a tinta preta é o primeiro item adquirido para o desfile.

Carnaval para todos os ritmos

O bloco Concentra Mas Não Sai dava os primeiros passos no ciclo carnavalesco no início dos anos 2000. À época, os encontros eram feitos no Mercado dos Pinhões. O cantor Waldonys foi convidado para fazer participações – tocando marchinhas, frevo e, claro, forró. Um dos foliões ficou indignado e enviou cartas para os jornais. A alegação era que Fortaleza passava o ano inteiro escutando forró e deveria abrir espaço para outros ritmos. Marcos Vinícius Oliveira, o Marvioli, organizador, procurou o rapaz para argumentar que a cooperação do sanfoneiro era, sim, boa para a folia. “Waldonys participava de boa vontade. O rapaz era um folião assíduo e continuou frequentando o Concentra. Foi se aproximando e hoje é um dos dirigentes (risos). O episódio prova que vários ritmos cabem no Carnaval de Fortaleza, uma festa plural”, diz Marvioli. O nome do rapaz permanece em sigilo.