Jagunços e homens livres pobres – o lugar do mito no Grande sertão

Em 27 de junho de 2008 João Guimarães Rosa faria cem anos. O escritor mineiro, nascido em Cordisburgo (“burgo do coração”), mudou-se para Belo Horizonte em 1918; formou-se em medicina, trabalhou durante dois anos num povoado no município de Itaúna, em Minas Gerais.

Por Ana Paula Pacheco*

guimarães rosa - Reprodução

Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, foi médico voluntário da Força Pública, integrando em seguida seus quadros. Ingressou na carreira diplomática aos 26 anos, passando, a partir de 1938, a viver em cidades como Paris, Hamburgo e Bogotá. Distante do lugar de origem, interessou-se cada vez mais pelo sertão e pelos vilarejos do interior de Minas, culturalmente afastados dos centros do país. Por assim dizer, aprendeu com palavras o amor pelo sertão que já estava em seu sangue (como se sabe, Florduardo, seu pai, foi memória viva do escritor, colaborando na pesquisa da linguagem, dos “causos” e das particularidades do norte de Minas Gerais).

Do nome da cidade natal ao nome do pai, passando pela prodigalidade de uma linguagem ímpar, tudo que cerca o autor parece ter sido tocado pelo dedo de Midas. Ilusões de óptica à parte, na linguagem e na representação literária de um sertão brasileiro, Guimarães Rosa eternizou-se, passando a figurar como escritor situado um passo acima da história. O encantamento, sem dúvida uma das tônicas de suas narrativas, não há de ser entretanto o ponto de chegada crítico: assim como a exceção só confirma a regra, o mito remete a suas determinações sociais. Uma primeira pergunta, talvez a de mais difícil resposta, diz respeito ao teor de verdade dessa obra cujo valor literário, fora de dúvida, assombra e permanece pouco especificado. De qual perspectiva e em que medida a experiência social brasileira é apreendida na obra rosiana por meio do sertão?

Desde logo em Sagarana (1946), mas sobretudo em Grande sertão: veredas e Corpo de baile (ambos de 1956), a linguagem rosiana apareceu como avanço. A atualização estética, logo reconhecida, dava outra dimensão à matéria social atrasada. Da perspectiva da história literária brasileira, um achado estrutural se fazia ver, e foi o crítico Antonio Candido quem primeiro o notou, num texto (“Sagarana”) publicado em O jornal, ainda em 1946. Parte do achado consistia em eliminar a distinção linguística entre narrador culto e personagens locais, tal qual ela se dava nos relatos da maioria da ficção regionalista ao longo do século 19, que fazia do “outro”, o habitante do interior brasileiro ou do sertão mais recôndito, figura pitoresca. Do ângulo dos regionalistas, aliás, o homem “de lá” era a representação do que precisava ser civilizado, seja porque sua “barbárie” era consequência do não-esclarecimento, seja porque sua “candura” precisava das armas da razão e da cultura para desenvolver-se… Mais adiante, Antônio Candido falaria do “superregionalismo” de Guimarães Rosa como uma superação do exotismo regionalista. Ainda no âmbito da região, mas agora vista como lugar em que as contradições do país se fazem presentes, com especificidades, a mimese rosiana ao mesmo tempo supera e repõe de outro jeito o problema: para dar conta do dado local, materiais da chamada alta literatura afinam-se com materiais sociais do país atrasado e com outros, derivados da tradição oral. Reedição do exotismo, agora universalista? Assim o lêem alguns intérpretes, o mais das vezes, em chave positiva.

A formulação rosiana do problema — nas palavras de Riobaldo, “o sertão é o mundo” — é também, sem prejuízo do esteticismo, uma leitura da modernização brasileira (1), vista pelo ângulo da região. A crer na sintaxe, o sujeito, sertão, é e não é o mundo, que no caso lhe dá amplitude diversa, mas sem deixar de ser um predicativo. Se pensarmos no alcance ideológico do enunciado, ele remete à leitura mítica, mitificada — muito brasileira —, das mudanças ditadas por um outro universal (o capital), cujo novo estágio histórico viria a colocar em outro lugar o meio rural como um todo, o habitante pobre em particular (2). O sertão é o mundo — ontologia em que se misturam erudição, metafísica e jaguncismo barranqueiro (aquele que existiu de fato na região do rio São Francisco até por volta de 1930) —,tal qual, podemos arriscar, o mundo poderia ser visto no e do sertão, mas segundo o olhar de uma outra classe social (a do doutor, não a do jagunço), que reinventa o sertão e as regiões interioranas do norte de Minas Gerais. Esse me parece ser o princípio estrutural de Grande sertão: veredas, dando contornos ao jorro verbal de Riobaldo durante quase quinhentas páginas. O ex-jagunço fala a um interlocutor citadino que recria para o leitor a história narrada: assim entendida, a voz do sertão que fala à cidade é a voz da cidade que fala a voz do sertão que fala à cidade… um artifício do foco narrativo, cheio de consequências a verificar. Uma delas é a estetização literária em que a voz do “outro” — de outra classe e de outro contexto social — passa por uma espécie de preconceito invertido. Por ora, é de se notar a utopia em que o mais avançado (simbolizado por uma linguagem de vanguarda, que é a de Grande sertão) se conjugasse, sem violência, ao que permaneceu vivo na cultura popular.

Numa perspectiva que vê a “aura” criada em torno da obra e do autor (e desde sempre cara a ele), o encantamento da poesia rosiana é hoje marca de envelhecimento, a matéria morta de passagens constantemente repetidas sem contexto. Já numa perspectiva interna à obra e nela estruturada, o encantamento é índice de uma falta, ou antes, de muitas — problema, fecundo, da construção literária. Sua medida é dada em grande parte pela mimese de um universo mágico-religioso que, presente por assim dizer como fundo para as aventuras extraordinárias de Riobaldo, ainda permeia as esferas do cotidiano, apontando para carências efetivas de um país cujo processo de modernização se fez com base no atraso. Isto é, o processo da modernização brasileira que também chega aos lugares mais distantes dos centros é abordado de maneira específica, conjugando-se ao modo corrente da população mais pobre pensar seu destino, não como história, mas como fatalidade, o que desloca para as esferas divinas o ideal de superação dos problemas materiais. Nesse sentido, o mítico, o lendário, o trágico surgem como modos da cultura popular redimensionados pelo olhar erudito do autor, que recria o nó brasileiro entre História e mito. A questão é que, mudando-se a perspectiva no ato mesmo de buscar incorporá-la — o que idealiza a “cultura popular”, vista, em alguma medida, como universo infenso à ideologia —, o olhar compassivo do escritor implica também adesão mítica e suspensão dos problemas de ordem social que envolveriam proprietários e homens pobres, alijados da posse da terra e de outros meios de produção.

Em Grande sertão: veredas, o humor relativo às relações entre jagunços (homens “provisórios” e desconfiados) e proprietários (cuja calma bovina é sempre ardilosa) dá conta, até certo ponto, de apontar as razões para a suspensão da representação dos conflitos, visto que independência e submissão ao senhorio são inconciliáveis (3). A invenção rosiana dessa independência é um ponto sobre o qual gostaria de me estender em seguida, mas vale sublinhar desde já que, no mito dos heróis jagunços, torna-se modelar a história de poucos (4); nos termos do livro: organização grupal, à margem não só da ordem, como do capital, por parte dos homens (livres?) do sertão, não detentores de bens (seja porque os abandonaram, seja porque nunca os possuíram).

A disposição mitificante das narrativas rosianas não é novidade para nenhum de seus leitores, embora para além da mentira ou da sabedoria, decerto presentes, poucos tenham se ocupado da dimensão de mentira histórica que ela contém. Como se sabe, mentiras historicamente formadas passam a compor o real, e para entender as contradições deste, não será o caso descartá-las. Tornadas material literário, vem ao caso entender a dupla mentira, ou a verdade formalmente configurada. Pois se o mito se passa sempre e para sempre “em tempo algum” (in illo tempore), o gesto de apropriar-se literariamente de formas míticas localiza o não-tempo num contexto. Suspendendo a História, o mito é também atravessado por ela.

No entanto, tudo estará em saber até que ponto e de que modo. A constituição do narrador em Grande sertão: veredas nos dá algumas pistas. A invenção rosiana do “mundo-jagunço” (5), outras. Na aventura permeada por esferas mágico-religiosas, a potência mítica dos heróis (do Bem e do Mal) é marca específica deste livro no conjunto da produção do autor (6), mas não é, de início, atributo de sua voz central. Mesmo em ação, nas cenas em flashback a todo momento, Riobaldo apresenta uma consciência dividida: qualidade gravada no nome, como sombra em que o sentido dos atos heroicos se apaga sempre — Riobaldo: percurso malogrado, fluxo falho, baldado, falto. Margem parada que observa a própria história — não só em retrospectiva, mas enquanto ela se passa —, Riobaldo é de certo modo um homem de ação (jagunço) às avessas (7). A todo momento, e até no olho da batalha, ou preparando-se para ela, a reflexão interrompe seu caminho (8). Assim, o ethos arcaico da personagem traz uma dimensão moderna insuspeitada (9). Num universo ficcional em que tudo é paradoxo, mesmo o diabo — personagem central e deste mundo — sintetiza um princípio, se quisermos, moderno, o da desagregação. O Cujo, o Oculto, o Que-não-Fala, o Que-não-Ri, o Sem-Gracejos, o Tristonho, o Homem, o Indivíduo, o Outro, o Que-não-Há, é, entre outras coisas e ao pé da letra, a expressão simbólica das forças desagregadoras da personalidade, num contexto social determinado. Nesse sentido, as relações entre não-ser e ser mito são formadoras, também elas, de uma “dialética rarefeita” (10). De resto, elas são parte do imaginário de Riobaldo a todo passo. Postas em forma de pergunta, revelam uma autoconsciência de sua não-constituição plena: “[…] mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda” (11); “Eu queria ser mais do que eu. […] Carecia Deus ou o Demo?” (12). O pacto, como o ponto de fuga que rege simbolicamente todo o passado relembrado, lhe confere uma potência ambígua, sem libertá-lo da dúvida sobre si mesmo; antes pelo contrário: “[…] o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. […] Vendi minha alma? Vendi minha alma a quem não existe? Não será o pior?…” (13).

A opção de Rosa por esse narrador, sua construção, aponta para a contemporaneidade do sertão rosiano, em que o universo da oralidade comparece sem o corpo de suas certezas, alguma vez tecidas por uma vida (que pôde imaginar-se) autêntica. A dúvida, no entanto, não arranha a aura mítica dos heróis que ali figuram. Isto é, os anseios de Riobaldo parecem ter relação com a historicidade do sujeito no Brasil — com sua não-formação, ligada à não constituição de uma racionalidade burguesa de fato, à auto-imagem de uma subjetividade “que não é ainda”, nem sequer como projeção ideológica — e atualizam-se numa consciência moderna, dividida. O indivíduo autônomo, por sua vez, surge no livro projetado para trás: nos chefes jagunços, especialmente Medeiro Vaz e Joca Ramiro, a autonomia alia-se a relações pré-burguesas, idealmente pautadas pelos signos da lealdade e da ética pessoal, com vistas ao grupo.(Até Zé Bebelo, como todos lembram, o herói por assim dizer republicano do livro, que quer reformar o sertão e pôr fim ao jaguncismo, passa para o lado dos jagunços por dívida de lealdade — sustando seus ideais políticos, de dimensão pública, para executar junto a pares jagunços a vingança pessoal.). Mas se arcaico e moderno são dois lados da moeda no livro, em si mesmos reversíveis, é preciso refletir ainda sobre sua dialética rarefeita, assim como sobre o idealismo que a rege. Vejamos.

O episódio mais célebre de Grande sertão mostra como os sertanejos recebem os influxos dos “novos tempos”. Os heróis míticos do livro buscam estabelecer o Bem no sertão por via de uma ética interna em que a violência jagunça adquire caráter ordenador, enquanto um homem de fora, que quer o progresso e exclama “vivas” à lei, pretende acabar com o jaguncismo.

Horas tantas, narrando a luta encarniçada entre vários bandos jagunços reunidos, de um lado, e de outro o grupo comandado por Zé Bebelo, Riobaldo conta o desfecho da guerra local: capturado vivo, fora da batalha, Zé Bebelo exige do inimigo, Joca Ramiro, morte súbita ou julgamento. Ocasião do famoso tribunal jagunço. Para desconcerto do leitor citadino, racionalidade, equanimidade e impessoalidade atuam num julgamento no meio do sertão “bárbaro”, numa terra distante dos “braços da lei”. O que é de interesse comum será nesse momento tratado como coisa pública: há por volta de quinhentos homens reunidos, e a palavra é dada a todo jagunço que queira argumentar, acusando ou defendendo o réu. Este, como se sabe, depõe advogando e protesta quando os argumentos da parte contrária resvalam para a lógica da vingança. De resto, o tribunal se coloca na contracorrente da regra do cabresto, vigente nas regiões; João Goanhá diz ao chefe:“– Eu cá, ché, eu estou p’lo qu’ o ché pro fim expedir…”, e a resposta de Joca Ramiro é: “– Mas não é bem o caso, compadre João. Vocês dão o voto, cada um. Carece de dar…” (14). Da reflexão conjunta que vai se formando, destoam apenas Ricardão e Hermógenes, que consideram o tribunal sertanejo um desagravo à regra jagunça, coisa de “mamãezada”. Colocam em primeiro lugar o interesse dos coronéis com os quais têm amizades, defendem o “olho por olho”, e mais, Hermógenes sugere “amarrar este cujo [Zé Bebelo], feito porco. O sangrante… Ou então botar atravessado no chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele…” (15).

A sugestão, como lembramos, não é aceita, e pelo contrário, princípios do direito natural são praticados ali de maneira exemplar, o que dá a medida da provocação autoral. Tudo segundo uma particular ótica sertaneja, como não poderia deixar de ser. Titão Passos, um dos chefes presentes, argumenta que Zé Bebelo

[…] não tem crime constável. Pode ter para o Governo, para delegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é sertanejos […]. Ele quis guerrear, veio — achou guerreiros! […] A bem, se, na hora, a quente a gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava certo, estava feito. Mas o refrego de tudo já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou talho?… […] (16).

Um certo Gu pede a palavra e mostra que pode ser vantajoso para os jagunços dar o exemplo de maior civilidade à “civilização”:

Com vossas licenças, chefe, cedo minha rasa opinião. Que é — se vossas ordens forem de se soltar esse Zé Bebelo, isso produz bem… Oséquio feito, que se faz, vem a servir à gente, mais tarde, em alguma necessidade, que o caso for… […] … se em alguma outra ocasião […] algum chefe nosso cair preso em mão de tenente de meganhas — então hão de ser tratados com maior compostura, sem sofrer vergonhas e maldades […] (17).

Riobaldo segue o mesmo fio do raciocínio:

Pois então, xente, hão de se dizer que aqui na Sempre-Verde vieram se reunir os chefes todos de bandos, com seus cabras valentes, montoeira completa, e com o sobregoverno de Joca Ramiro — só para, no fim, fim, se acabar com um homenzinho sozinho — se condenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi de corte? (18)

O interesse maior do episódio está nos argumentos de parte a parte, no senso de justiça presente nas falas dos jagunços, no paradoxo de que ali quase todos (tirante Hermógenes e Ricardão, representantes de um Mal maior sem contradições) buscam na guerra local uma ordem mais justa do que a ordem estabelecida e do que a desordem que atua a serviço da manutenção dessa ordem (a saber, a de coronéis, políticos e outros jagunços). Nesse sentido, mesmo Zé Bebelo declara: “Tenho nada ou pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados… Coisa que eu queria era proclamar outro governo…” (19).

Na temporalidade dúplice do livro, as aventuras narradas em retrospectiva remetem ao final da Primeira República, ao passo que o presente da enunciação (quando fala o jagunço aposentado, ou, para brincar com a moldura em que figura o doutor: quando o jagunço já não fala) parece próximo à época em que se escreveu o romance. Como se sabe, a República Velha caracterizou-se pelos conchavos entre poder público e mando dos “coronéis” locais, de modo que o poder central não se constituiu como força independente do mandonismo — apenas começava a tentativa de se desvincular das velhas forças do latifúndio (mantendo-se, porém, tributário delas e delas extraindo seus representantes públicos). Guimarães Rosa tira do proscênio a parte mais poderosa e inventa o “mundo-jagunço”. Num contexto de arranjos pessoais, familismo, justiça de mãos próprias, que estava em jogo, Rosa fabula, entre jagunços, um princípio de esclarecimento, que atua para julgar um homem ligado à política citadina.

A ponderação e a decisão razoável se sobrepõem à desforra sanguinária. Fica assinalada a ironia rosiana com relação à ideia de que a barbárie seja um atributo do outro, no caso, o sertanejo bruto, objeto da representação literária. Fica também assinalada a valorização autoral de uma ética dos grandes jagunços, compondo o mito local como modo de apreender a história.

Nos jagunços mitificados que figuram no centro de Grande sertão encarna-se uma forma peculiar de luta contra a desordem; como se disse, peculiar porque autônoma com relação ao poderio dos fazendeiros e mandões locais, bem como distinta da violência tida por “gratuita”. Esta talvez seja a grande invenção rosiana: a mitificação de uma violência ordenadora e à margem, ligada a um Bem maior (mesmo quando pactária) que busca vencer a anomia e a arbitrariedade, presentes em mandões e mandados, e resultantes dos acordos entre coronéis e Governo. A história de Medeiro Vaz, “tenente dos Gerais”, segundo Riobaldo, é exemplar dessa urgência, ocasião para o idealismo heroico do romance: herdeiro de uma grande propriedade, podia “gerir e ficar estadonho”, mas vieram guerras, desmandos de jagunços, violência às mulheres; então, Medeiro Vaz se desfez de terras e gados, pôs fogo na própria casa e reuniu homens “para impor a justiça” (20).

Zé Bebelo, por sua vez, é acusado pelo chefe Joca Ramiro de ter vindo ao sertão “querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei… […]”. “— Velho é, o que já está de si desencaminhado”, responde Bebelo,“— O velho valeu enquanto foi novo” (21). Até certo momento ele é, no sertão ao qual não pertence, o representante maior da ideia de um “progresso” nacional, capaz de vencer o atraso — este entendido como problema pontual das regiões mais distantes dos centros do país, ótica que faz os jagunços desconfiarem de que seja “mandadeiro de políticos e do Governo”. Mas o livro não compra essa visão dualista de dois brasis, um arcaico e um moderno, vide aliás o próprio julgamento. Vide também a trajetória de Zé Bebelo, que, depois de fazer a guerra para dar cabo da jagunçagem e ser julgado pelos inimigos, acaba reconhecendo elementos progressistas na conduta ética dos grandes chefes jagunços e, sentindo-se em dívida com Joca Ramiro pelo respeito durante o julgamento, passa, como já relembramos, para o lado dos jagunços.

No seu primeiro ensaio sobre Grande sertão: veredas, escrito próximo à publicação do romance, ainda no ano de 1956, Antônio Candido saúda a “literatura de invenção” de Guimarães Rosa, num campo da mimese em que a maioria costeava o “documento bruto”. Reconhecendo em primeira mão a grandeza da obra, o crítico propõe analisá-la a partir de três elementos estruturais, regidos por leis próprias, antieuclidianamente: a terra, o homem, a luta. Ao passo que o meio físico, simbólico, é também projeção da alma, mapa que se desarticula e foge, o homem, por sua vez, é produzido pelo meio físico. Seu comportamento se molda à rudeza do meio, diz Antônio Candido, e a anomia incita a “fazer a lei”. Daí a guerra local entre bandos, visando aperfeiçoar o mundo à pauta dos fortes.

Por isso o indivíduo avulta e determina; manda ou é mandado, mata ou é morto. O Sertão transforma em jagunços os homens livres, que repudiam a canga e se redimem porque pagam com a vida, jogada a cada instante. Raros são apenas bandidos, e cada um chega pelos caminhos mais diversos (22).

A passagem interpreta a formação do jagunço no livro, cuja verossimilhança, se não estou enganada, se localiza ao mesmo tempo na base histórica das dificuldades da vida sertaneja e na idealização literária das possibilidades de reagir a ela (leia-se: de desvencilhar-se do jugo paternalista, escapando, de um lance, à dependência e à miséria, por obra da elevação do caráter, visto como autodeterminado). Um nó irrealista que dá o que pensar, e que compõe com outras perplexidades dessa grande obra. Articulado a outros nós, realistas inclusive, teremos, em negativo, o emaranhado (histórico) de nossas heranças, que, dificilmente superável, é descartado num salto. Um salto que supõe entretanto o abismo e, mensurando-o, inventa o sobrevôo. Não ser ou ser mito, diz mais uma vez o enunciado formal rosiano. (Note-se a propósito que Riobaldo concentra os dois lados, oscilando sempre; já os catrumanos e os heróis jagunços figuram nitidamente cada um dos polos.) A invenção revigora o lado arcaico do sertão — virando-o inclusive pelo avesso, como no julgamento de Zé Bebelo, arcaicamente moderno. Parte de um país cuja modernidade é constitutivamente atrasada, o sertão, palco de heróis, é também uma imagem de luta contra a barbárie (a civilização como ordem por excelência, mas ali vista de fora) e de uma outra transformação já ficcionalmente posta — aquela que permite ao arcaico produzir a grandeza de tais heróis —, cujas mediações históricas, porém, não estão dadas.

A formulação de Antonio Candido remete a formas sociais advindas da Colônia, levando a pensar, ao mesmo tempo, na discrepância entre a grande massa de jagunços no livro, os ramiros, os vazes, os bebelos (jagunços porque “o Sertão faz o homem”) (23), e a figura histórica do homem livre pobre. A analogia presente no enunciado do crítico, está claro, funda-se no lugar social destinado ao homem pobre sertanejo, via de regra dependente, a quem o trabalho nunca liberta de fato. Todavia, ela nos leva a ler com outros olhos, no romance, o sentido a-histórico dado à liberdade. Tomada ao pé da letra, esta se torna parte do ethos dos heróis de Grande sertão. Rosa cria, no contexto próximo ao final da Primeira República (quando Riobaldo vive suas aventuras), o homem rico despojado (Joca Ramiro e Medeiro Vaz) e o homem pobre livre, que teria à mão a possibilidade de se livrar de todo jugo, revertendo a norma social contida também na anomia sertaneja, que, sem lei com que contar, não estava no entanto livre da regra vigente. Submetido historicamente aos mecanismos do favor, ele aparece contudo no romance gozando a oportunidade de fundar outra norma, aperfeiçoando o mundo à pauta dos fortes (de alma).

O pressuposto ficcional dessa tensão entre ordem e desordem, cuja base histórica vem do Brasil Colônia e que no romance de Rosa torna-se uma abstração, me parece ser o seguinte: se a ordem estabelecida entre mandões locais e governo central atua barbaramente, a esperança se projeta numa ordenação marginal, no caso, idealizada. Que ela viesse do próprio meio jagunço, até onde entendo, só as razões do coração do autor poderiam explicar, ou ainda, a nostalgia de um passado que nunca existiu, fundado em normas internas de justiça. Seja como for, o episódio do julgamento retrata uma ética avançada em pleno sertão, obra de vontades individuais que se impõem, livres do “arrocho de autoridade”. É do atraso sertanejo que vem, inusitadamente, a prática de uma justiça objetiva, de cores locais, como está claro. O regionalismo brasileiro tradicional antepunha o “homem civilizado” ao “caipira”, como se o “civilizado” fosse reformar o “Brasil bárbaro”. Guimarães Rosa, talvez em linha de continuidade com o projeto literário do primeiro modernismo, recriou a equação oposta.

Utopia e limite histórico, formalizado em Grande sertão. Após 1930, o sistema das oligarquias rurais estará em xeque, mas, como sabemos, a lógica de conluio entre interesses públicos e privados repõe-se na administração centralizada, a que “coronéis” também se adaptaram, tirando proveito. A desordem à margem, contudo, perde espaço, e em 1952, quando Rosa viaja pelo sertão, o jaguncismo já não é realidade expressiva. A alteração do quadro histórico, pontuada internamente no romance, dá cabo da idealização do “homem livre pobre” ali reinventado, bem como, talvez, da perspectiva histórica de um salto para o futuro por meio da valorização dos modos de organização de certos heróis do passado. Em mais de um trecho Riobaldo diz ao interlocutor que “muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola”:

Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe?… o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. […] Os bandos bons de valentões repartiram seu fim… […] (24).

Há um ponto em que a modernização brasileira já não permite à imaginação rosiana projetar nenhum tipo de heroísmo.

Notas

[1] Sempre conjugada ao atraso, vale dizer, que lhe é estrutural.

[2] Nesse momento histórico em que o campo perde a centralidade (mesmo relativa) que ainda ocupava no quadro nacional, ele se torna novo lugar de estetização, palco de heróis jagunços e de uma reordenação ético-moral.

[3] O humor que aponta para o gozo dos poderosos, dando pano para a precaução dos jagunços, está presente de maneira exemplar no modo de ver a personagem de seo Habão, mas também ressoa em “casos” envolvendo outras esferas do poder estabelecido, como o do delegado, Dr. Hilário, que, no momento em que um desconhecido o interpela, faz piada e diz que o delegado é o homem ao seu lado, um valentão local. A consequência imediata e involuntária (?) da graça é que o outro apanha no lugar dele. Seja como for, ensina o caso, dos poderosos é melhor manter distância. Sobre seo Habão, Riobaldo observa, enquanto este por sua vez o tem na ponta da mira: “E espiou para mim, com aqueles olhos baçosos — aí eu entendi a gana dele: que a gente pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Até enjoei. Os jagunços destemidos, arriscando a vida, que nós éramos; e aquele seo Habão olhava feito o jacaré no juncal: cobiçava a gente para escravos!” (Grande sertão: veredas. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1970, p. 314, doravante GS:v). Ainda na tópica das relações entre proprietários e homens pobres, agora em diapasão trágico em vez de cômico, veja-se em Primeiras estórias o conto “Nada e a nossa condição”. Nele, curiosamente, o conflito de classes se esboça quando a desvalorização da terra e o esgotamento do projeto fundiário temperam as boas ações do patriarca (ver “Devaneios de um patriarca”. In: Pacheco, Ana Paula. Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006, pp.195-218).

[4] Mesmo considerando-se, no contexto do jaguncismo barranqueiro, a existência de alguns grupos independentes, não há como supor que se livrar dos braços dos fazendeiros e das esferas superiores do mando fosse apenas um ato que dependesse da vontade e da coragem. Para dizer o óbvio: a chance de dispor da própria vida, no caso dos pobres, é sempre a exceção e não a regra.

[5] A expressão é de Antonio Candido.

[6] Na sequência da obra ou não há propriamente potência mítica ou não há heróis; em “Matraga”, tem-se uma hagiografia sertaneja, mais do que uma aventura épico-guerreira, e à potência mítica substitui-se a astúcia de quem sabe fazer a ocasião, indo para o céu, a porrete.

[7] Dentre várias formulações do problema, na boca do próprio Riobaldo: “Mas eu sempre fui um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga” (GS:v,p.142).

[8] Para o tópico, ver a tese de Hélio de Mello Filho, que apreende o movimento dividido e mostra-o em detalhes, apontando também, de maneira original, para a falta de exemplaridade da maioria dos casos em Grande sertão (ver, do autor, Caso e romance: gêneros e sociedade em Grande sertão: veredas. São Paulo: tese de doutorado, Departamento de Literatura Brasileira, FFLCH-USP, 2005). Num momento de preparação da batalha próxima, por exemplo, Riobaldo vê a si mesmo em contraste com os outros: “Ao que jagunço é isto — o senhor ponha letreiro. Ao encosto do rifle e preparo nas patronas — isso era o que bastava. Nenhum dos companheiros estava desinquieto, nem ralava apreensão […]. Assim uns gritavam feito araras machas. Gente! Feito meninos. Disso eu fiz um pensamento: que eu era muito diverso deles todos, que sim. Então eu não era jagunço completo… Sozinho estive, o senhor saiba” (GS:v, p.271).Vale lembrar que, no momento da batalha final, Riobaldo assiste a tudo de cima, num sobrado que “parava lá, sobre sereno”, conforme diz Riobaldo: “Aquele sobrado era a torre” (ibidem, p.442).

[9] Em “O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa” (Novos Estudos Cebrap, nº 40, São Paulo, nov. 1994, pp.7-29), Davi Arrigucci Jr. lê Grande sertão entre epos e romance.

[10] Como pode notar o leitor, penso nas possíveis especificidades de Grande Sertão: veredas tendo por base a precisa formulação de Paulo Emílio Salles Gomes: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro” (Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1973] 1996, p. 90). No ensaio de 1956 que comentarei adiante, Antonio Candido formula a questão de outra maneira, aderindo, até onde posso ver, à compreensão universalizante da obra rosiana: a fusão de contrários no livro, diz o crítico, “nos suspende entre o ser e o não ser para sugerir formas mais ricas de integração do ser” (“O homem dos avessos”. In: Tese e antítese. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p.135).

[11] GS:v, p.296.

[12] Ibidem, p.318.

[13] Ibidem, p. 365. Note-se que a consciência dividida de Riobaldo não é aplacada pelo atributo míticodemoníaco que, imaginário ou não, passa a atuar nele após o pacto. Entre não-ser e ser mito, ele permanece “falto”. Veja-se, por exemplo: “O demo, tive raiva dele? Pensei nele? Em vezes. O que era em mim valentia, não pensava; e o que pensava produzia dúvida de me-enleios. […] Mas, então, governar pudesse, eu não era o Urutu-Branco, não vinha a ser chefe de nada, coisa nenhuma!” (ibidem, p. 371). Outras vezes, porém, o pacto lhe dá plena segurança (“ — Urutu Branco, Urutu Branco, Urutu Branco!… Cujo era eu mesmo. Eu sabia, eu queria” [ibidem, p. 419]), o que só confirma a oscilação como princípio estrutural do livro.

[14] Ibidem, p.206.

[15] Ibidem, pp.200-201.

[16] Ibidem, p.205.

[17] Ibidem, p.207.

[18] Ibidem, p.209.

[19] Ibidem, p.212.

[20] A composição mítica dos chefes aparece em célebres falas de Riobaldo, entre outras: “Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais não vê; eu ainda vi” (ibidem, p. 37). “E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco… […] A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem maior, ferisse, cortasse.” (ibidem, pp.189-190).

[21] Ibidem, pp.198-199.

[22] Candido, op. cit., p. 128 (grifos meus).

[23] Ibidem.

[24] GS:v

Assista uma aula da profewssora Ana Paula Pacheco sobre o centenário de Guimarães Rosa neste link.