A arte de contar em Sagarana

Para muitos escritores fracos, o regionalismo é uma espécie de tábua de salvação, pois têm a ilusão — e com eles parte do público — de que o armazenamento de costumes, tradições e superstições locais, o acúmulo de palavras, modismos e construções dialetais, a abundância da documentação folclórica e linguística suprem as falhas da capacidade criadora.

Por Paulo Rónai*

Sagarana - Reprodução

Pelo contrário, para os autores que trazem uma mensagem humana e o talento necessário para exprimi-la, o regionalismo envolve antes um obstáculo e uma limitação do que um recurso. A riqueza léxica, em particular, longe de constituir um atrativo — a não ser para os estudiosos da língua —, torna a obra menos acessível à maioria dos leitores. Quanto ao material folclórico, este significa uma perpétua ameaça de desviar a narração, tolher o enredo, quebrar o ritmo. Dir-se-ia que o escritor regionalista precisa de menos valor que os outros para se fazer tolerar, porém de maior originalidade para alcançar o êxito e a admiração.

Em Sagarana, J. Guimarães Rosa afronta todos esses empecilhos.

Apresenta-se como o autor regionalista de uma obra cujo conteúdo universal e humano prende o leitor desde o primeiro momento, mais ainda que a novidade do tom ou o sabor do estilo. O leitor vindo de fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar suficientemente familiarizado com o rico cabedal linguístico e etnográfico do país para analisar o aspecto regionalista dessa obra; deve aproximar-se dela de um outro lado para penetrar-lhe a importância literária.

A arte de contar, no antigo sentido da palavra, que evoca as poderosas narrativas do século passado [século 19 – nota da Redação] e, mais longe ainda, as caudalosas torrentes da épica antiga, está se tornando rara. Apesar ou em razão do número enorme de narrativas breves que se publicam, encontram-se com frequência cada vez menor novelas e contos que nos comuniquem um frêmito ou nos arranquem um grito de admiração. Os desesperados esforços de renovação que caracterizam o gênero de algum tempo para cá geram fórmulas mais de uma vez surpreendentes e inéditas, mas dificilmente despertam emoções profundas.

As nove peças que formam o volume Sagarana continuam a grande tradição da arte de narrar. O gênero peculiar do autor é, aliás, a novela, e não o conto. A maioria das narrativas reunidas no livro são novelas, menos por sua extensão relativamente grande do que pela existência, em cada uma delas, de vários episódios — ou “subistórias”, na expressão do escritor —, aliás sempre bem concatenados e que se sucedem em ascensão gradativa. O gênero, em suas mãos, alcança flexibilidade notável, modifica-se conforme o assunto, adapta-se às exigências do enredo. Pois esta maleabilidade é justamente uma das características da novela moderna.

“O burrinho pedrês”, por exemplo, é de todas as narrativas aquela cujas partes, de início, parecem mais desconjuntadas. Contém uma série de historietas e anedotas que não fazem avançar a ação central. Mas é esta a espécie de narração exigida pelo assunto, a viagem de uma boiada que prossegue por etapas, para, recomeça, se desvia. Todos os episódios, finalmente, concorrem para criar uma atmosfera única, caracterizada pela predominância da vida animal, em volta da qual evolve todo aquele pequeno mundo nômade do Major Saulo e seus boiadeiros. Aqui a forma parece ter nascido e crescido com o assunto. A construção da novela obedece toda ela a uma arte consciente que se disfarça sob um ar de naturalidade, mas se revela não somente no aumento progressivo da tensão, senão também nos periódicos desaparecimentos e voltas do burrinho pedrês. Note-se que de todas as possíveis atitudes para com o seu protagonista animal o autor adota a mais plausível: a da observação feita por fora, com uma mistura de realismo e ironia que humaniza a personagem sem recorrer a artifícios antropomórficos.

Patenteia-se nesta novela um dos processos característicos da técnica de Guimarães Rosa, decorrente, aliás, de sua concepção do mundo e do destino: intensificar a tensão, aproximando o leitor de um desfecho trágico previsto. De repente, verifica-se algum acontecimento brusco — mas sempre verossímil — que traz desenlace diferente do esperado; diferente, mas não menos patético. Espera-se em “O burrinho pedrês” um assassínio, que todos os indícios fazem prever… e sobrevém um desastre de proporções maiores, que resolve a tensão por um cataclismo imprevisto. Combinam-se, assim, os efeitos da surpresa e da unidade.

Aplicação ainda mais perfeita deste processo observa-se em “A hora e vez de Augusto Matraga”, a novela talvez mais densa de humanidade de todo o volume. A vida retraída do valentão arrependido que, depois de ter sido deixado como morto pelos capangas do adversário, levou anos a restaurar a saúde do corpo e a amansar o espírito sedento de vingança inspira ao leitor uma inquietação crescente. Treme-se por esta alma perdida e reencontrada, que por fim só escapará à tentação da desforra por outro ato louco de valentia que o redime, mas ao mesmo tempo o aniquila.

Aparentada a essas duas novelas é a intitulada “Duelo”. Aí a série de emboscadas em que dois adversários procuram acabar um com outro parece primeiro terminar pela morte cristã de um deles, colhido e consumido por insidiosa doença. Mas o moribundo conseguiu transmitir o seu ódio como herança a um seu protegido, e, pela mão deste, depois de morto, matará o rival sobrevivente.

Talvez nem seja justo falar em técnica, pois nos dois últimos casos, pelo menos, o desenlace, por mais inesperado que seja, decorre necessariamente dos caracteres. O contista recria com extraordinária plasticidade caracteres primários como Augusto Matraga ou, no “Duelo”, Cassiano Gomes, concentrados em torno de um único sentimento, que se transforma em sua razão de ser no objetivo de toda a sua existência.

Apesar de uma ironia fina que oscila num ritmo tão pessoal entre o humor e o cinismo, o autor mantém-se imparcial para com as suas criaturas. Tem-se a impressão, às vezes, de que adota a respeito delas os sentimentos do ambiente e as admira ou despreza de acordo com esses sentimentos, partilhando das simpatias e antipatias dos comparsas. Na realidade, trata-se apenas de mais um meio para criar atmosfera. O escritor conserva-se algo distante das personagens, e, quando se apressa em adotar algum julgamento cômodo sobre elas, não sabemos com certeza se não o faz para se divertir à custa do leitor. Veja-se o trecho em que conta a morte edificante de Cassiano Gomes. Depois de deixar tudo o que tem a um pobre caboclo de quem se tornara o benfeitor, este “tomou uma cara feliz, falou na mãe, apertou nos dedos a medalhinha de Nossa Senhora das Dores, morreu e foi para o céu”. Sim, mas ao seu protegido, além dos cobres, deixou também a obrigação de uma vindita.

Nas novelas de atmosfera trágica de Guimarães Rosa respira-se um fundo desânimo, talvez por ser a conclusão tão fatal, tão sem recurso. Esse acabamento absurdo e, ao mesmo tempo, irrespondivelmente explicado, dos destinos individuais, faz entrever abismos tão abruptos como aquele que se abre debaixo da Ponte de São Luís Rei, no romance de Thornton Wilder.

Estas mesmas novelas possuem credibilidade logo à primeira vista, mais um sinal por que se reconhece a obra de ficção de real valor. Credibilidade na ficção não envolve a exatidão e a verossimilhança de todos os pormenores; apenas uma certa sugestão que leva o leitor a não preocupar-se em verificar-lhes a consistência, compenetrado por essa verdade condensada que só por acaso a vida alcança. Pirandello ter-se-ia felicitado de um achado como este, em que o autor soube formular com bastante pitoresco uma das regras essenciais da arte: “E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.”

Uma quarta novela, “A volta do marido pródigo”, representa gênero inteiramente diverso. Aqui as fases sucessivas do enredo fragmentado servem para dar um duplo retrato, extremamente vivo e divertido, de um malandro atraente, representado simultaneamente como tipo e como indivíduo. Talvez seja este o conto em que o autor melhor realiza a tarefa de caracterizar ao mesmo tempo o ambiente e as personagens pelo halo de simpatia irresistível e imerecida que rodeia estas últimas.

A superstição, um dos mais importantes elementos de quantos concorrem para a construção do universo do contista, fornece a duas narrativas o assunto central. “Corpo fechado”, história de um feitiço, é admirável de unidade e composição. Pouco nos importa, para a verdade íntima do conto, se é o feitiço que opera, ou a fé que nele depositam os protagonistas; o essencial é a presença permanente da magia em que vítima e feiticeiro acreditam da mesma forma. Talvez seja esta a razão de o leitor sentir-se menos convencido pelo conto “São Marcos”, em que o contista, apresentando-se em primeira pessoa como objeto de um ato de feitiçaria, nos força a perguntarmos a nós mesmos se ele, autor, acredita na magia ou não, dúvida que soube artisticamente eludir nos outros contos.

“Minha gente” confirma a impressão de que o talento narrativo de Guimarães Rosa é essencialmente impessoal: ao lado de retratos excelentes, como o do enxadrista viajante, e da pintura maliciosamente viva de uma eleição no interior, a história de amor contada em primeira pessoa parece um tanto convencional (com uma leve reminiscência, talvez, de Cabocla ou de Prima Belinha, de Ribeiro Couto).

“Sarapalha” representa, a meu ver, em todo o volume, a única vitória do regional sobre o humano: a descrição de uma região destruída pelas febres avulta sobre o conflito passional das duas personagens, que valem mais como componentes da paisagem que como verdadeiros atores.

“Conversa de bois”, finalmente, representa ainda outro tipo, o do conto inteiramente estilizado, com bichos que falam e raciocinam, quase numa atmosfera mítica de balada escocesa. Se as grandes novelas do volume não nos tivessem exalçado as exigências, entregar-nos-íamos sem reservas ao encanto desta forte narrativa. Elas, porém, nos habituaram a uma mistura tão feliz de visão realista e de expressão algo estudada, que nos custa admitir uma modificação da dosagem a favor do elemento artificial.

Vocação épica de excepcional fôlego, o autor dar-nos-á decerto algum romance em que seu dote de criar e movimentar personagens e vidas se manifeste ainda mais à vontade. Por enquanto, aguarda-se com natural curiosidade a publicação de seu volume de versos, premiado já em 1936 pela Academia Brasileira de Letras, e que ficou escondido ainda mais tempo que Sagarana.

Que formas revestirá o lirismo num poeta tão visceralmente narrador?

Chegando ao fim destas breves considerações, percebemos o que elas têm de ilusório. O exame unilateral de um livro tão rico de conteúdos e significações como este há de deixar uma impressão falsa. É sobretudo quase impossível falar desta obra abstraindo-se o aspecto da expressão verbal, que nela é de excepcional importância. O autor não apenas conhece todas as riquezas do vocabulário, não apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber inédito arcaísmos, expressões regionais, termos de gíria e linguagem literária. O que nos vale é que Sagarana já deu ensejo a análises agudas, extensivas a todos os seus aspectos; por outro lado, é desses livros em que cada leitor faz necessariamente novas descobertas.