Adriana Negreiros: E foste um difícil começo

São Paulo é uma matriarca nordestina que não afaga e não perdoa, mas acolhe ao mesmo tempo em que joga pra vida.

Adriana Negreiros

Cresci ouvindo minha mãe dizer que São Paulo era o pior lugar do mundo. Por mais malditas que estivessem as coisas em casa – e elas quase sempre estavam terríveis – ainda assim éramos sortudos por viver em Fortaleza, no calor, com vizinhos que gritavam uns com os outros por sobre os muros baixos das casas do nosso bairro de periferia, e não enfrentando a chuva, o frio e a discrição esnobe dos paulistanos.

Mamãe simplesmente odiava São Paulo. No começo dos anos 70, como muitos nordestinos, ela, papai e meus quatro irmãos saíram de Mossoró, no Rio Grande do Norte, para tentar a vida no “Sul Maravilha”. Fixaram-se em um sobrado no Jabaquara, de onde se viam os carros cruzando a Imigrantes. Papai conseguiu um emprego em uma empresa chamada Atlas Copco, voltou a estudar, cursou Administração de Empresas. Mamãe fez amizades na vizinhança, virou revendedora da Avon, aprendeu a preparar nhoque. Adotaram um vira-latas, Bob, fizeram mais um filho, eu, e se sentiam relativamente adaptados à nova rotina.

Da noite para o dia, porém, papai começou a sentir dores no pescoço. Além disso, as mãos tremiam e ele não conseguia mais assinar o próprio nome. No hospital, recomendaram uma cirurgia na cabeça. Foram meses de internação no Nove de Julho – incluindo um Natal em que, pela divisória envidraçada da enfermaria, o observávamos em um pijama marrom (ele nunca mais usaria marrom). Saiu de lá paralítico, em cadeira de rodas, o corpo dominado por espasmos, com a fala prejudicada e o pescoço caído para o lado, como se sustentado por uma mola frouxa. Mamãe desconfiou de erro médico. Deu plantão no hospital para encontrar o cirurgião e entender, afinal, o que ocorrera. Um dia, ao vê-la, o homem de jaleco apressou o passo e saiu pela porta, correndo. Ela pegou a bolsa, voltou para casa e resolveu tocar a vida, resignada.

Oito anos depois de chegar a São Paulo, com a expectativa nas alturas, mamãe se via com cinco filhos, um cachorro, um marido inválido aos 40 anos e uma pilha de carnês atrasados na cristaleira da sala de estar. Quando o oficial de justiça chegou no sobrado com a ordem de despejo, papai já estava num voo da Transbrasil a caminho de Fortaleza. Mamãe pediu mais 3 dias – era o tempo que faltava para a nossa fuga, de Viação Itapemirim, de volta para o Nordeste. Deixou Bob com a vizinha, colocou a mobília em um caminhão de mudanças e enterrou o sonho de uma vida próspera em São Paulo. Na minha última memória da infância na cidade, estou sentada em um banco do Terminal Rodoviário do Tietê, impressionada com a imensidão dos pneus dos ônibus estacionados diante de mim.

Dito isso, eu teria alguns bons motivos para odiar São Paulo, certo? Que nada. Eu amo este lugar como poucas coisas nesta vida.

Vinte anos depois de deixar São Paulo, voltei a morar na cidade, para trabalhar como jornalista. As circunstâncias eram muito diferentes daquelas que haviam trazido minha família para cá, exatos 30 anos antes. Eu possuía um emprego, não tinha filhos e nutria um enorme desejo de reescrever minha história pessoal em um lugar que havia sido tão amaldiçoado para a minha família – e que, em última instância, é a minha cidade natal, o lugar onde enterraram meu cordão umbilical.

E foste um difícil começo. O salário que, razoável em Fortaleza, era modestíssimo na zona oeste paulistana. As roupas de frio, que eu não sabia como combinar, e frequentemente me deixavam com uma aparência esdrúxula. Um sequestro-relâmpago violento no estacionamento de um shopping center com apenas seis meses na cidade que me fez ouvir muitas recomendações para voltar para Fortaleza. A dificuldade de dirigir numa metrópole imensa e caótica em tempos pré-waze. O céu constantemente cinza. A esquisitice que é viver numa cidade cujas avenidas largas nunca dão na praia.

São Paulo não facilita as coisas para ninguém. Não é do tipo que conquista. Ela precisa ser conquistada, e não raro se faz de difícil – esnoba, vira a cara, esbofeteia. Como numa maratona, os primeiros anos por aqui são truncados, cansativos, a perspectiva do que vem pela frente assombra. Muitas vezes, você pensa em desistir. Mas há um momento em que a pulsação estabiliza e a vida parece fluir, num passo que é sempre um pouco ofegante, mas que traz em si um certo sentimento, meio ridículo, de orgulho e vaidade. “Eu estou conseguindo”.

São Paulo me deu a convicção de que sou dura na queda. Me deu a certeza de que posso quase tudo, e desconfio que não exista presente melhor do que este. Deu-me uma família, muitos trabalhos e poucos amigos, contudo os melhores que já tive na vida.

Que me desculpe quem nasceu e sempre viveu aqui, mas estou certa de que São Paulo só pode ser compreendida, em sua essência, por quem a escolheu. São Paulo é uma matriarca nordestina que não afaga e não perdoa, mas acolhe ao mesmo tempo em que joga pra vida. Houve um tempo em que, quando me perguntavam de onde eu era, não sabia bem o que responder. Nasci em São Paulo, mas cresci em Fortaleza e agora voltei a viver em São Paulo. Afinal, sou paulista ou cearense? Pois bem, eu sou paulista, e das típicas. Sou filha de retirantes nordestinos e sou, eu própria, uma retirante do meu tempo. O que pode ser mais paulista do que isso?

Papai morreu em 2013, sem nunca mais ter colocado os pés em São Paulo. Em todos estes anos, mamãe só veio aqui uma vez, quando minha primeira filha nasceu. Vivendo na zona oeste há 14 anos, nunca me ocorreu visitar o sobrado do Jabaquara. Somente hoje, enquanto escrevia este texto, tive a curiosidade de procurar o endereço no Google Maps. A casinha é modesta, tipicamente suburbana, e dá pra ver o lixo espalhado pelas ruas. Não sei o motivo, mas senti um baita orgulho. Não sei bem de quê. Talvez de, apesar dos bofetões, nunca ter desistido da minha cidade.

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