Osvaldo Bertolino: O conservadorismo em São Paulo

Nós vamos a São Paulo, que a coisa tá feia! (Patativa do Assaré)

São Paulo foi fundada em 25 de janeiro de 1554.

Em São Paulo, é comum ouvir a palavra “poderosa” antes da sigla Fiesp toda vez que algo é dito sobre a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Repetida à exaustão como recurso para ressaltar a influência da inquilina do prédio de dezesseis andares construído sob a forma de pirâmide num dos pontos mais valorizados da Avenida Paulista, a combinação da sigla com o adjetivo colou. A fórmula sintetiza o poderio do baronato paulista.

Há também uma tradição política conservadora, que se traduziu nas popularidades de Ademar de Barros, Jânio Quadros e Paulo Maluf. Uma tradição que abraçou o tucanato, que reina no estado há mais de 20 anos. Na cidade de São Paulo esse abraço se manifestou com força em 1994 para impedir o retorno da esquerda ao poder, que na sucessão da prefeita Luiza Erundina foi derrotada por Paulo Maluf; na eleição seguinte ocorreu um duelo entre o candidato malufista — o patético e corrupto Celso Pitta — e o tucano José Serra.

Enquanto o malufista exibia seu trem voador, a fantasia do "fura-fila", Serra prometia metrô como se os trens e as estações fossem brotar da terra. Os tucanos chegaram a promover uma cinematográfica descida do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso (FHC), de helicóptero, em pleno pátio da estação Itaquera — uma das mais movimentadas do metrô de São Paulo — para fazer a campanha de Serra, afinal derrotado por Pitta.

Essa é a vertente de pensamento que torce o nariz para o conceito de horizontalidade social e defende a solução da criminalidade decorrente das imensas desigualdades da cidade por meio do recrudescimento da violência policial. Os adeptos dessa ideia acham que bandido bom é bandido morto, sem mediações de qualquer ordem. E isso é dito abertamente principalmente nos bairros abastados. O ex-deputado estadual Afanásio Jazadji, por exemplo, numa eleição espalhou pela cidade uma faixa com a seguinte mensagem: "Bandido se combate com pau… pau… Paulo Maluf".

À parte essa visão medieval de que a violência se combate com violência, a criminalidade de fato é grave. Estima-se que em São Paulo algo em torno de 50 homicídios por ano são registrados para cada 100 mil habitantes. É um número próximo dos 60 registrados em Bogotá, numa Colômbia que se encontra à beira de uma guerra civil declarada. Quando comparado ao dos vizinhos mais próximos geográfica e economicamente, o desempenho brasileiro é ainda mais constrangedor: na Argentina são registrados cerca de 20 homicídios para cada 100 mil habitantes, enquanto para os chilenos esse número fica em torno de 5.

Os custos sociais desses altos índices de criminalidade vão muito além da já considerável perda de bem-estar causada pelo medo e pela mudança de hábitos da maior parte da população. Se a desigualdade no Brasil fosse reduzida para o nível de países como o Chile, o número de homicídios para cada 100 mil habitantes cairia em quase 40%. E mais: se a desigualdade fosse reduzida até o nível de países como a Inglaterra, o índice diminuiria em mais de 55%.

Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro deveriam dormir a cada noite menos tranquilas por conta, além da violência, dessa equação. Como resolvê-la? O problema poderia ser resolvido se essa pergunta fosse feita com olhos nas ruas mais movimentadas de São Paulo, onde a cada passo, em cada esquina, se vê um cenário de anarquia urbana e desrespeito aos mais elementares direitos humanos.

Famílias inteiras das periferias optam pela estratégia de morar, durante a semana, nas áreas centrais da cidade. Ali, eles encontram os meios necessários para sobreviver: chafarizes para tomar banho, vãos de viadutos para se abrigar, refeições distribuídas por entidades sociais e oportunidade para ganhar algum trocado, seja por meio de pequenos serviços ou pequenas infrações.

Para essas famílias, a rua é um lugar de recursos. Para todos, o clima é de opressão coletiva. Tomar o ônibus de volta para casa, sem ter presenciado algum tipo de violência, é uma vitória diária. Trancados em seus carros, com os vidros fechados, muitos preferem suar em bicas a correr o risco de encontrar um cano de revólver saindo de um buquê de flores que tentam lhes vender.

A herança mais perversa desse conservadorismo, contudo, é o endividamento do município imposto pela equipe econômica da "era FHC", liderada pelo então ministro da Fazenda, Pedro Malan. E se agravou com o acordo de renegociação durante a gestão do prefeito malufista Celso Pitta. Luís Carlos Ferreira Afonso, que foi o secretário municipal de Finanças na gestão Marta Suplicy, diz que o acordo Pitta-Malan implica em gastar mais de 50% da receita. "É um acordo impossível de ser cumprido", afirmou ele.

Sob o amparo da Medida Provisória (MP) 2.185, em 2000 a União pagou os débitos da prefeitura com títulos da dívida pública federal. O saldo foi refinanciado para São Paulo em 360 prestações mensais, corrigidas pelo Índice Geral de Preços — Disponibilidade Interna (IGP-DI) acrescido de taxa de juros de 9% ao ano, capitalizadas mensalmente. Pelo contrato, 13% da receita líquida do município estão comprometidos com o pagamento da dívida.

Originalmente, a correção se dava a taxas bem menores do que a prefeitura pagaria no mercado ou do que a União pagava ao mercado para rolar a dívida, caracterizando, portanto, àquela época, um subsídio federal para a cidade. Era um bom negócio para a prefeitura — entre 1997 e 2000, enquanto a Selic acumulava 84%, as taxas ­IGP-DI + 9% ficaram 23% mais baixas que a Selic. Mas, com a mudança do quadro econômico, os contratos se tornaram fonte de renda para o governo federal.

Ocorreu uma inversão completa: de um contrato onde, originalmente, havia um subsídio da União para os municípios poderem equilibrar as finanças, inverteu-se a lógica e se passou a ter um contrato em que a União tem uma margem de lucro muito grande em cima dos municípios. Ao projetar essa situação até 2030, quando o contrato chega ao fim, com uma inflação de 4,5% o saldo devedor chegará a R$ 150 bilhões, o que deverá comprometer cerca de 20% da renda total do município por outros dez anos adicionais. Em caso de inflação de 6,5%, o saldo devedor passaria de R$ 200 bilhões e a prefeitura comprometeria 36% da renda, o que levaria à suspensão dos serviços básicos oferecidos à população.

Segundo Weder de Oliveira, ministro-substituto do Tribunal de Contas da União, a situação de São Paulo é “efetivamente mais complicada e complexa porque a projeção seria para a necessidade de um comprometimento da receita líquida real da ordem de 20%, muito maior do que o esforço atualmente feito (…), algo absolutamente impossível, do ponto de vista federativo, um esforço extremamente inviável”.

A auditoria do TCU registra que “a dívida pública de São Paulo decorre, basicamente, de precatórios judiciais, operações de créditos interno e externo e de parcelamento de dívidas com outros entes federados”. Segundo o tribunal, excluindo-se os precatórios judiciais, 95% do saldo da dívida pública municipal é decorrente do contrato de refinanciamento de dívidas celebrado com a União. A parcela restante da dívida, de cerca de 5%, é composta por contratos de captação de recursos, internos e externos, além do parcelamento de dívidas com outros entes públicos.

A capital paulista representa cerca de 15% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e 36% do PIB paulista. Ainda que estes percentuais fossem de 18,9% e 48%, respectivamente, em 1970, o município de São Paulo continua sendo o polo fundamental de organização de uma imensa rede de serviços, distribuição de mercadorias e produção industrial. Como prova disso, 28% do produto industrial do país se encontram localizados no município.

Apesar da recente desconcentração do investimento e da produção industrial, a cidade continua se destacando em termos econômicos, especialmente nos setores de vanguarda tecnológica. A título de ilustração, dos 20 maiores bancos e caixas econômicas, 16 possuem sede na capital paulista, sete das oito maiores editoras e as sete maiores empresas do país no setor de informática encontram-se sediadas na cidade. Os investimentos têm se concentrado crescentemente no setor de serviços.

Embora ainda conserve traços fortíssimos da decadente aristocracia cafeeira do Brasil da Velha República, toda essa exuberância material foi dirigida, em pouco mais de uma década, por três gestões progressistas. Pode-se dizer que estas gestões foram eleitas na esteira da crescente desigualdade social da cidade. A proporção de miseráveis cresceu 51% nos anos 1990 no município, segundo o "Mapa do Fim da Fome 2", divulgado pelo CPS (Centro de Políticas Sociais) da Fundação Getúlio Vargas em parceria com a organização não-governamental Ação pela Cidadania e com o Sesc-RJ.

Em 1991, 8% dos paulistanos eram considerados miseráveis na avaliação da FGV. Em 2000, esse percentual aumentou para 12,1%. Em números absolutos, isso significa que, em 1991, 772 mil paulistanos viviam abaixo da linha da pobreza. Em 2000, o número de miseráveis subiu para 1,3 milhão de pessoas, uma variação de 63%.

A FGV classifica como miseráveis pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 79 — valor necessário, de acordo com preços de São Paulo, para garantir a ingestão mínima de alimentos recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). São Paulo foi a cidade que mais sofreu com a crise econômica que atingiu os centros metropolitanos brasileiros. A explosão de miséria pode ser explicada pelo aumento na taxa de desemprego.

As gestões de Luiza Erundina e Marta Suplicy deixaram marcas positivas nas periferias da cidade, o que explica, em grande medida, a expressiva vitória do atual prefeito petista, Fernando Haddad, em 2012, que enfrenta feroz campanha contra a sua gestão promovida pela direita. As debilidades e deficiências da administração são potencializadas pela forte presença da mídia na cidade, que ataca o prefeito sistematicamente. Será neste cenário complexo e contraditório que ocorrerão as eleições municipais da principal cidade do pais neste ano.

*Osvaldo Bertolino é jornalista, editor do Portal Grabois