O Lugar do sonho

A Doce Vida lhe dera a fama de escândalo junto à Igreja e as portas abertas ao cinema.Federico Fellini havia então acertado um novo longa com seu produtor, mas corria 1962 e ele não conseguia dizer a Angelo Rizzoli sobre o que filmaria. O argumento parecia claro, contudo, após sua visita a uma estação termal.

Por Rosane Pavam

Oito e meio - Divulgação

O diretor relataria a própria crise como artista e colocaria sobre ela as sombras do passado. Seria sua obra de número “oito e meio”, realizada após seis longas de autoria própria e três “metades”, dois curtas em filmes de episódios e uma direção na companhia de Alberto Lattuada.

Oito e Meio se tornaria a obra-prima felliniana, a significar tantas outras coisas além daquele revolver de um poderoso eu. Era um filme sobre o cinema, era o cinema. Ainda que sempre alegasse não ter o que dizer em seus filmes, Fellini orgulhava-se de expressar o não dito, como se poderia verificar desde a exuberante primeira sequência.

Preso ao tráfego, Marcello Mastroianni olha angustiado para os ocupantes indiferentes de outros automóveis, às vezes congelados em fotografias. E como fugir desse lugar? Todo o filme, que agora se pode saborear como um sonho, restaurado em tela grande, parece expresso nesse início algo saído de uma história em quadrinhos, aquelas que o próprio Fellini sabia desenhar.

A ficção navegava em torno da contradição da fé familiar, do difícil confronto com a expectativa paterna, de um perigoso reviver da figura da mãe, que por alguns segundos, no filme, parecia querer beijar sensualmente o filho. As figuras femininas se sucediam, crescentes e exigentes. Anouk Aimée, que para Fellini representava “esse tipo de mulher que nos perturba até morrer”, com uma “sensualidade quase metafísica” escondida sob a máscara de menina, interpreta a esposa do diretor de cinema Guido Anselmi. E Marcello Mastroianni o vive de modo a aumentar Fellini, caricaturizá-lo diante daquela Claudia Cardinale que encenava a perfeição. 

Era igualmente uma obra sobre a viagem interna de um intelectual, sempre um “desesperado” nos filmes do cineasta, como escreveu Italo Calvino certa vez. Mastroianni interpretava o tipo suspenso no ar, sensível como Fellini, mas ainda juvenil, cínico enquanto sonhador, quase saído de uma página desenhada por Winsor McCay, ídolo do cineasta em um século precedente.