Romance russo que influenciou Lênin é traduzido para o português

O título do popular livro Que Fazer? escrito por Vladimir Lênin em 1901, que discute a organização de um partido político revolucionário, faz referência direta à obra de outro importante autor russo, Nikolai Tchernichevski, cujo romance O Que Fazer?, publicado em 1863, foi traduzido diretamente do russo para o português pela primeira vez pelo professor Angelo Segrillo.

Por Isabel Seta

R. Coitinho: Homenagem a Lênin; interpretar e transformar - Reprodução

O lançamento da edição traduzida ocorreu em setembro, em uma palestra no Auditório da História, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo, onde Segrillo leciona.

O Que Fazer? incendiou a juventude russa, inspirou vários revolucionários – como Lênin – e é tido como um dos livros mais importantes da história da Rússia. Na contracapa de sua edição traduzida, Segrillo registrou as palavras de Joseph Frank, o maior biógrafo ocidental de Dostoiévski, que considera O Que Fazer? o romance do século 19 que teve maior influência sobre a sociedade russa ao fornecer “a dinâmica emocional que eventualmente desembocou na Revolução Russa”.

Dai a surpresa de Segrillo, também coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História, ao participar de uma banca de mestrado do pesquisador Camilo Domingues sobre Tchernichevski e descobrir que a obra ainda não havia sido traduzida para o português.

“Sempre quis traduzir algum livro de prosa que ainda não tivesse sido traduzido, mas jamais me arriscaria com poesia”, brincou o professor. Ele diz ter ficado interessado no trabalho não só pelo fato do livro não existir em português, mas também por toda a trajetória da obra.

Nikolai Tchernichevski escreveu O Que Fazer? em apenas quatro meses enquanto estava preso, a mando do czar Alexandre II, na Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petesburgo. O autor era um crítico literário radical, ateu e com fortes ideias materialistas e socialistas, além de editor de uma importante revista. Seu livro conta, a princípio, a história de Vera Pavlovna, que escapa da opressão de sua família, casa-se, e, como não quer depender economicamente do marido, cria uma cooperativa de costureiras. Mais tarde, ela se apaixona pelo melhor amigo do marido, que diz que ela é livre para viver esse romance. Assim, o livro também propõe uma “revolução sexual, dos costumes”, o que desviou a atenção de seu conteúdo político.

“Em uma primeira leitura, o livro parece piegas, a história de um triângulo amoroso, você não consegue nem ver a revolução ali. É preciso ler nas entrelinhas”, explicou Segrillo. Devido à forte censura da época, Tchernichevski escreveu por meio de “mensagens cifradas”: metáforas, palavras com duplo ou até triplo sentido, palavras ambíguas e muitas referências históricas e literárias – o que foi um desafio para o tradutor, que levou oito meses para concluir seu trabalho. O livro propõe um debate, por exemplo, com Pais e Filhos de Turguenev e cita versos de autores como Goethe e Walter Scott.

A tradução

“A sensação foi de estar realizando um trabalho de detetive, pois era preciso encontrar não apenas a tradução literal das palavras, mas também verificar se não havia outros sentidos escondidos”, comentou o professor.

Um exemplo é o personagem Rakhmetov, que se tornou um símbolo do revolucionário-modelo. No livro, ele é completamente dedicado à sua “causa”, que no equivalente russo também poderia ser traduzido por “negócio”, mas fica subentendido que a tal “causa” ou “negócio” é a revolução.

“Tchernichevski queria mostrar o caminho da revolução, mas não escreve a palavra ‘revolução’ nenhuma vez.” Para Segrillo, as mensagens cifradas e o fato de ter sido publicado “picotado”, em três partes distintas nas revistas literárias, podem ter ajudado o livro a passar pela censura czarista, que estava em pleno vigor na época.

Quando os censores se deram conta, já era tarde demais e a ideia de revolução presente na obra já havia se espalhado. Mesmo assim, foi proibida a publicação do texto em formato de livro.

Para o tradutor, a importância histórica de O Que Fazer? é amplamente reconhecida, contudo seu valor literário teria sido subestimado. “A obra tem diferentes níveis de leitura, você pode até ler como um best-seller, mas nada é o que parece naquele livro. Muitos críticos ultrapassaram a camada de leitura do romance piegas e enxergaram a revolução, mas acharam muito didático. Isso já está sendo reavaliado”, explicou Segrillo.

“Como tradutor, tive que buscar por muitos sentidos e níveis extras de interpretação, o que me fez consciente de que o livro é mais sutil do que muitos se dão conta.”