A Belém de Dalcídio Jurandir

Belém do Grão Pará, romance do escritor comunista Dalcídio Jurandir, publicado em 1960, começa com uma descrição da capital paraense na década de 1920. Relata a decadência dos Alcântara, partidários da oligarquia lemista (cujo chefe foi o político paraense Antônio Lemos), que prevaleceu até a década de 1920. A cidade pode ser entrevista na apresentação daquela elite decadente, seus preconceitos e angústias. À leitura!

Dalcídio Jurandir - Reprodução

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Com a queda do velho Lemos, no Pará, os Alcântaras se mudaram da 22 de Junho para uma das três casas iguais, a do meio, de porta e duas janelas, n. 160, na Gentil Bittencourt. Era no trecho em que passava o trem, atrás do quartel do 26 de Caçadores. O toque de alvorada acordava o seu Virgílio para a Alfândega.

A sessenta mil réis de aluguel e mais seis de taxa d’água, sem platibanda, meia vidraça, persianas, passeio ralo na frente e algum carapanã, podiam se dar por felizes naquele “ostracismo”, como dizia a d. Inácia, a senhora de seu Virgílio Alcântara. Longe estavam a sorte dos Rezendes, lemistas de cabo a rabo, hoje coitados se acabando numa palhoça dos Covões. Da janela, a Emilinha, a filha única do casal, olhava o bonde Circular, na esquina da Generalíssimo, fazer a curva. A um passo estava o largo de Nazaré mostrando já as torres da Basílica sempre em construção. O abacateiro entanguido, a velha goiabeira e as varas de secar roupa e iam o quintal escasso e atolado nas baixas do fundo. Ali morando, com uma e outra mão de oca na parede da frente, a família contava já os seus dez anos. Foi o tempo em que seu Virgílio engordou muito, a mulher também e a Emília ficou moça, gorda à semelhança dos pais.

— Com os ares desta aprazível residência, engordamos, benza-nos o diabo, dizia sempre a d. Inácia, com o seu riso entre dois suspiros de mofa e logo o pelo-sinal.

— Que serra de Guaramiranga, que montanha de Minas, Suíça coisa nenhuma! Basta o ar desta baixa, o origã do lixo e da lama aí dos fundos. Este mormaço que vem das baixas? Nem as águas termais, que é que vocês estão pensando? Que mais desejam, seus Alcântaras, depois desta Avenida Gentil Bittencourt, cento e sessenta? Avenida! Avenida! Pra endereço de carta, minha senhora Inácia, é de se lamber o selo duas vezes e usar sinete de fidalguia. Ai matai-me, marido, matai-me, que eu a morte mereci!

Libânia criada família, lhe trazia à tarde o último resultado do bicho, a casa escutava:

— Em tantos anos nem o teu número deu sorte, casa das minhas encomendas. Mas é isto, cada qual tem o ostracismo que merece. Nem uma só vez no bicho do número, num grupo, numa dezena. Desgraçado. Ah, 160! No dia em que deixo de jogar neste demônio do jacaré, pois não é jacaré que sai? Quando jogo nele, até urubu, que não tem no jogo, arrisca dar. Ah. meu maridíssímo Virgílio Alcântara, que ostracismo vieste escolher, que cabeça a tua de vir bater com o toutiço neste 160. Pelo jeito será também o número de a cova.

Nas visitas à família, as Veigas, cunhadas e sobrinhas de seu Virgílio, não falhavam: detinham-se à porta da rua os olhos para a desbotada placa azul do 160 e abanavam a cabeça: Qual! Dias seguidos, faziam nas pules os jogos mais complicados, as mais engenhosas armadilhas; para surpreender o jacaré, colher, de um lance, a centena esquiva, que pudesse quebrar assim a banquinha do jogo, aquela estreita na Generalíssimo., pegado à tenda do carvão. Mandavam Libânia correr outras bancas da cidade ou instigavam os conhecidos a arriscar no 160, “aparecido em sonhos”… Qual o quê!

Quando d. Amélia, na sua viagem a Belém, foi combinar no 160, por intermédio da prima, a hospedagem do filho, d. Inácia explicava:

— Justamente na hora das vacas magras, veio a gordura da família. No tempo da champanhe escorrendo pelos babados, ensopando mangas dos fraques, das pipas rolando pelo corredor, das gardênias que os Alcântaras mandavam para o peito da sobrecasaca do Senador Lemos, no tempo em que tínhamos a bem dizer o Mercado dentro da despensa na 22, gordos não havia na família. Agora, com o feijãozinho boca preta da Estrada, o naco da jabá e a farinha seca, vieram estas…

E espalmava as nádegas, o peitame. Estavam na necessidade mas repimpados. Podia ser que o menino engordasse também, baixava a voz num tom de lástima e gracejo ao mesmo tempo. Indagava de d, Amélia se o filho era de bom miolo, bom entendimento e natureza má.

D. Amélia inclinou o ouvido, como se não tivesse escutado bem.

— Fique sabendo, minha amiga, que ser de boa natureza não tem valido à maior parte das pessoas deste mundo. A cabeça, sim, de tutano cheia. A natureza? Má.

Insistia: Alfredo, nas quatro operações, ladino, era? Pois o estudo dos algarismos era próprio de homem. Sabia afiar a língua na leitura como devia afiar o vidro e o cerol no rabo do seu papagaio para cortar o alheio?

Aqui d. Amélia informava que empinar papagaio era habilidade que Alfredo não tinha. Arguiu d. Inácia: mau sinal, prova de pouca má natureza do homem que havia de sair do menino.

— Gosto dos que têm cabeça. No mal ou na ambição, mas cabeça.

Recordava Farias Brito o filósofo, que frequentava a casa, na 22, ao tempo do lemismo. Molhava no prato de tucupi ou na sopa de tartaruga as mangas do fraque, a dizer: comei, bebei, minhas mangas, que as homenagens são todas para vós e não a quem vos vestiu.

— É? é de boa cabeça o caboclinho? A quem puxou mais, a brancura do pai ou o pretume da mãe? Deve ter saído um rosto de rapadura, não? Prefiro endiabrado. É sinal de bom caráter. Bonzinho, não. Patetinha pelos cantos…

Cuspia, esfregava as palmas da mão uma na outra.

— Patetinha me embrulha o estômago. Hein, d. Amélia, me mostre os podres do rapaz. Diga o que ele tem de fogo nas ventas, que isso recomenda. Solte, que desta boca só sai amém a tudo que o pequeno herdou do diabo, de que Nosso Senhor me salve.

D. Amélia ia rir, sorriu, fazendo-se, por um repentino cálculo, misteriosa a respeito do gênio do filho. Estava certa de que Alfredo havia de se divertir com d. Inácia ou detestá-la inteiramente. Seria mesmo de má natureza aquela mulher? D. Amélia, confiada, tinha de deixar o filho estudando, corresse os riscos que corresse.

— Engana-se, minha amiga, se quer fazer passar o seu filho por anjo ou fazer dele um anjo. Não é de um anjo que se faz um homem.

D. Amélia tomava aquilo por gracejo. De certo modo aquela inquirição às avessas do que se faria em qualquer casa que aceitasse tomar conta de um menino, desconcertava-a. Feria-a um pouco, era como um começo de humilhação. Mau, mau, se aquele perguntar continuasse. Por isso mesmo, a prima, adivinhona, lhe dava de vez em [8] quando uma piscadela e a Emilinha, que tudo via, aprovava o gesto.

Seu Virgílio, se embalando na rede de cordas, escutava, fingindo não escutar. Voltara da Alfândega, na horinha de sempre, 6,25, com o toucinho embrulhado no mais recente Diário da União. Surpreendeu-o aquela conversação entre as quatro mulheres na alcova, sentadas na cama do casal. Estalou a língua de impaciência e desagrado, com o seu fungo habitual, alisando o curto bigode esbranquicento.

Ia à porta da alcova, olhava para a d. Amélia, afinal uma preta embora não fosse contra pretos. Virava o rosto quando ela o encarava. E as duas Alcântaras resolvendo tudo, enquanto a prima de Amélia, a cabeça inclinada, sorria maciamente. Mil muxoxos fazia o seu Alcântara. E assim o excluíam daquelas deliberações caseiras. Apresentavam-lhe os fatos consumados. Iam tomar conta de um menino e seu Virgílio não era ouvido nem cheirado?

As quatro mulheres deliberaram. Libânia, entre partir lenha na cozinha e escutar o que conversavam, cadê sossego? Ia e vinha, sorrateira, disfarçada, comendo pupunha. Um “papagaio” tombou no abacateirinho do quintal. Vinha das baixas um bulício de criadas, picado de risos e gritos.

Quando seu Virgílio entrou na conversação, agora na sala, foi para rebater, com pachorra, o que dizia a mulher a respeito do 160.

— Mas imagine, d. Amélia, não fosse eu ter arranjado o empreguinho, acertado no número desta casa. Não fosse eu precavido… D. Inácia, com um risinho, lhe cortou a palavra:

— Não é com precavidos, não, que o mundo anda, meu filho. Anda com os de cabelo na venta, rédea solta. Aí, sim, eu me calo. Ah, eu homem!

Ante esta exclamação, d. Amélia estranhou: d. Inácia nada tinha, apesar de gorda, de masculino. Sim que nem grandes coisas de bonita, mas também nem grandes coisas de feia. Devia ter sido morena de encher a vista. O riso, vamos supor um tanto rouco, um quanto grosso.

Não. Para d. Amélia, aquela exclamação traduzia-se: Ah eu de novo moça!

— Gosto dos precipitados. Dos que se arrojam. E isso não aconteceu a Virgílio Alcântara, nas horas de se arriscar e trazer o seu, quando o Senador Lemos só faltava dizer: aproveitem, bons e maus amigos, quem não arrisca… E agora me vens com a tua previdência. É com imprudências que se salva o mundo, meu prudente. Preferia estar nos Covões, hoje, pisando na lama do chão da barraca mas consolada, sabendo que tudo arriscamos, freio não tivemos. Se perdesse, perdesse. Mas metemos a mão no fogo, meu capitão? Agora pôr em rosto que foi precavido, aí Jesus o cauteloso… Espera lá!

— E tu, Inácia, foste…

Inácia encarou-a escarninha. Seu Virgílio desguiou, beliscando outros assuntos.

Sem aprovar as lástimas e razões da mãe nem a previdência e resignação do pai, Emilinha tentava parecer alheia ao passado e ao presente. Alheia àquele miúdo e tão repetido bate-boca, agarrada ao desejo de mudar do 160 o mais cedo possível. Também não sabia até onde a mãe falava sério, se não era uma sua pavulagem estar assim falando contra a casa. No final de contas, lá pelo íntimo, a mãe sentia que estavam era bem acomodadinhos na Gentil. Ela, Emília, talvez não se enganasse: a mãe fingia-se inconformada com o 160 para consolar a filha, acenando-lhe com uma vaga promessa de mudança.

Isaura, a prima de Amélia, sorria para esta, como a dizer: “Que sorte pro teu filho, minha prima. E será que merece o que fiz por ele? Olha, que sou a fiadora.” A costureira estava de bom gênio aquela noite. Se na discussão com o marido, d. Inácia pedia o apoio dela, a costureira, inclinando ainda mais a cabeça, não se fazia de rogada:

— Isto, minha madrinha. A razão está do lado da senhora. Dê-lhe, madrinha. Isto! Dê-lhe, madrinha.

E logo ao padrinho, que vinha se valer junto dela:

— Mas é isso mesmo, meu padrinho. Eu quero ver agora a madrinha sair-se desta.

E divertia-se, macia, aprovando os dois, sob o olhar de Emília que, a esfregar a volumosa cintura, parecia interrogá-la.

Seu Virgílio falava bonachão, ou simulava impaciências, com este e aquele e de quem quisesse dizer: desagrada-me esta lengalenga. Coçava a alva pança de fora, preocupado com a invenção das mulheres: um menino do sitio morando em casa. E que mesada seria ou Inácia tentaria ocultar tudo? Por que, por que, meu padre Cícero, aquela encomenda? Se fosse de graça, não era mais uma boca? Ia servir de moleque de recados entre a Rui e a Gentil, à disposição exclusiva de Emilinha, que não podia utilizar, como queria, todas as horas de Libânia. Mesmo, esta, rueira, encorpando a olhos vistos, já se enchendo, como toda mulher, de seus nove horas, acabaria sumindo. Era só ver os modos dela, quando voltava da rua, quente do sol, suando nas maçãs do rosto de índia, vermelha como se estivesse saindo de uma olaria, e o cheiro… A esta observação tão súbita, seu Virgílio corou, como se alguém tivesse escutado. Libânia, pés de tijolo, a saia de estopa. apressada e ofegante, era uma serva de quinze anos, trazida, muita menina ainda, do sítio pelo pai para a mão das Alcântaras. Entrava da rua, com os braços cruzados, carregando acha de lenha e os embrulhos, sobre os rasgões da blusa velha.