Assim caminhou a humanidade

Esta obra visa sanar uma deficiência na literatura de divulgação científica do país, a de um livro atualizado, em língua portuguesa, sobre evolução humana. O último foi publicado há 16 anos e é uma tradução de um autor norte-americano, que foi, inclusive, revista por Walter Neves (Evolução humana, de Roger Lewin, São Paulo, Atheneu, 1999).

Por Francisco M. Salzano*

Francisco M. Salzano - Departamento de Genética - Instituto de Biociências - Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Este novo livro surgiu a partir de um curso de pós-graduação, sendo os próprios alunos, auxiliados pelos seus docentes, os autores dos capítulos. Não há nele, no entanto, a heterogeneidade tão comum em obras multiautorais, pelo que seus organizadores estão de parabéns: o livro é enxuto e altamente didático.

O livro tem uma apresentação do jornalista Reinaldo José Lopes, uma introdução e sete capítulos. Walter Neves participou diretamente da elaboração de dois capítulos, enquanto Miguel Rangel Junior e Rui Murrieta contribuíram no preparo de um cada. Além disso, Rangel Junior foi responsável por 65 das 91 figuras. Essas ilustrações são mais um aspecto positivo da obra, sendo em boa parte reproduções da maior coleção de réplicas fósseis da América Latina, a coleção Thomas van der Laan. Além deles, 14 outros pesquisadores participaram na redação dos textos, que se originaram no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo, núcleo de excelência e reconhecimento internacional por pesquisas de ponta na área.

Duas outras características positivas são: (a) a seção O que há de novo no front?, em que são abordadas novidades que podem levar a mudanças significativas no rumo desses estudos e (b) referências a 36 obras gerais sobre os assuntos abordados, 34 de autores estrangeiros, mas duas publicadas em português: Chimpanzés não amam! Em defesa do significado, de Eliane S. Rapchan e Walter A. Neves (Revista de Antropologia (USP), v. 48, 2005); e Pegando fogo: como cozinhar nos tornou humanos, de Richard Wrangham (São Paulo: Zahar, 2010).

Para compreender a caminhada do título do livro, é necessária uma longa incursão no tempo. É bom destacar que nossa espécie é especial apenas em determinados aspectos. A comparação taxonômica nos coloca dentro de uma ordem especial, os primatas, sendo os chimpanzés os nossos parentes mais próximos. Mas, como surgiram os primatas? Aparentemente, eles eram apenas um dos muitos grupos de pequenos mamíferos que passaram a explorar os vários nichos eco- lógicos abertos com a extinção dos dinossauros. O uso de ferramentas, que alcançou sua expressão mais alta no Homo sapiens, não é privilégio da espécie: elas são utilizadas por outros primatas e, surpreendentemente, estudos recentes indicam que os corvos são tão inteligentes quanto os primatas. Mais uma desilusão para quem imaginava uma diferença qualitativa entre humanos e não-humanos.

A radiação evolutiva (fenômeno pelo qual se formam, em curto período de tempo, várias espécies a partir de um mesmo ancestral) que deu origem aos primatas ocorreu há 10 milhões de anos, e existem pelo menos três hipóteses para explicar seu surgimento: (a) arborícola: a mudança da vida no solo para as árvores colocou em movimento pressões seletivas que culminaram no primata ancestral; (b) predação visual: a caça de pequenas presas necessitou de um aparelho visual especializado e boa coordenação motora; e (c) a aparição das angiospermas, plantas frutíferas importantes para a dieta desses organismos ancestrais. Possivelmente todos esses fatores agiram em conjunto para condicionar essa nova linhagem evolutiva.

Quando surgiu a capacidade de comportamento humano moderno? Calcula-se que ela já estaria pronta há 170 mil anos, e é por essa época que aparecem os neandertais, linhagem que só se extinguiu há 30 mil anos e que deve ter convivido com o homem anatomicamente moderno. Cerca de 200 mil anos atrás surgiu o Homo sapiens, originado na África, de onde se espalhou por todo o mundo. Em termos de indústria lítica, costuma-se relacionar dois períodos: o Paleolítico e o Neolítico. No classificado como Paleolítico Superior, há 50 mil anos, houve uma transição fundamental: a vida e os objetos passaram a ter significados abstratos.

Por outro lado, no Neolítico, iniciado há 12 mil anos, ocorreram revoluções importantes, que resultaram na domesticação de plantas e animais, enquanto a vida social tornava-se gradativamente mais complexa. Desenvolveram-se, então, articulações sociopolíticas e ecológicas, que condicionaram a origem de estados e impérios. Isso nos conduz à época atual. Somos uma espécie extremamente dominadora, que tem modificado de maneira muitas vezes irreversível o ambiente. Mesmo sociedades com economias simples alteraram a paisagem da região, levando ao chamado ‘imperialismo ecológico’. Espera-se que, com um desenvolvimento tecnológico ecologicamente mais consciente, alcancemos uma situação de equilíbrio com o ambiente e de eliminação (ou pelo menos diminuição) das desigualdades sociais que hoje afligem indivíduos e nações por toda parte.

A única falha deste livro é a ausência de um índice remissivo de assuntos e autores, que tornaria uma busca específica mais eficiente e rápida. Mas, pelo que foi mencionado antes, esta obra deve ser leitura obrigatória nos cursos universitários de graduação e pós-graduação, bem como para o leigo inteligente, que procura se informar sobre a nossa fascinante história biológica e cultural. Vou adotá-lo na disciplina que ministro na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Assim caminhou a humanidade. Walter Alves Neves, Miguel José Rangel Junior e Rui Sergio S. Murrieta (Org.). São Paulo, Palas Athena