Democracia: “Não me sentiria bem se me calasse”, diz Augusto de Campos

O Portal Vermelho conversou, com exclusividade, com o poeta Augusto de Campos. Em entrevista ao também poeta, Claudio Daniel, Augusto fala sobre poesia, sua carreira, os reconhecimentos profissionais que recebeu recentemente no Chile e no Brasil, e obviamente sobre o processo político pelo qual o Brasil passa.

Augusto de Campos no Chile - Arquivo pessoal

Augusto é incisivo ao se posicionar em defesa da democracia. Alguém que viveu e sobreviveu à ditadura militar sabe bem o quão grave é ferir o processo democrático, como alguns setores da oposição vem tentando fazer ao inflar uma onda golpista contra a presidenta Dilma Rousseff. “Não me sentiria bem se me calasse”, afirma o poeta sobre sua responsabilidade enquanto artista e cidadão de se colocar ao lado dos que defendem a soberania do voto popular.

Leia a entrevista na íntegra:

Vermelho: Você recebeu recentemente a Ordem do Mérito Cultural, em Brasília, com a presença da presidenta Dilma Rousseff, em evento que contou com a participação de Caetano Veloso. Isto significa um reconhecimento da Poesia Concreta, por tanto tempo incompreendida? Em sua opinião, o que explica o prolongado conservadorismo em nosso meio cultural, tão pouco generoso com novas propostas estéticas?

Augusto de Campos: De fato, como a cobertura da grande mídia foi minguada, a maioria das pessoas não tem ideia do que foi esse evento, no qual, além de receber a Grã-Cruz, fui o homenageado da cerimônia. A Bia Lessa, que a organizou, transformou-a numa defesa e ilustração da inventividade, referida à criação de Brasília da perspectiva da inteligência brasileira, como foi vista por Max Bense. Elegeu a poesia concreta e Oswald de Andrade como temas dominantes, num amplo panorama de nossa cultura. Dos parangolés de Hélio Oiticica à arte dos indígenas, do baião de Humberto Teixeira à poesia-música de Arnaldo Antunes, ambos agraciados, o último também participante da narração do espetáculo. Pode-se ter uma ideia mais precisa da magnitude da cerimônia no endereço eletrônico. [Assista ao vídeo aqui

Um espetáculo “verbivocovisual” desenvolvido em grandes painéis videográficos, sincronizados com música ao vivo , que teve a participação especial de Cid Campos e de Caetano Veloso. Este não aparece no vídeo por restrições contratuais de sua produção, mas registrou a sua presença numa entrevista significativa. [Assista ao vídeo aqui

A apresentação teve momentos emocionantes dedicados a outras modalidades de arte, como o da entrega da Grã-Cruz às Ceguinhas da Paraíba com a sua cantoria dura e pura, e os de homenagens às comunidades indígenas. E como o da surpreendente execução do hino nacional em guitarra, baixo elétrico, bateria e percussão pelo quarteto dirigido por Dany Roland, com dissonâncias que fizeram lembrar o hino americano interpretado por Jimi Hendrix. Woodstock no Planalto. Eu, de certa forma arrisquei-me a desafinar o tom da festa, que era toda alegria e exuberância, introduzindo a pauta política em meu breve discurso. Nada me foi pedido, mas eu achei que tinha que expressar a minha opinião, mais de uma vez manifestada, de repulsa às desatinadas tentativas de derrubar a presidente eleita. São raras as oportunidades que os poetas têm de falar, mas, na verdade, eu, que não gosto de homenagens, a aceitei, desta feita, acima de tudo para dar o meu recado contra os que já chamei de “impeachmaníacos”.

Na curta entrevista que dei antes do evento, no saguão do Planalto, fui ainda mais incisivo ao pôr em relevo o impatriotismo dos que pretendem ganhar no tapetão o que perderam na eleição. [Leia a entrevista citada aqui


Cerimônia onde Augusto de Campos recebeu a Grã-Cruz, e foi homenageado da Ordem do Mérito Cultural, com a presença da presidenta Dilma


Quanto à demora na assimilação das propostas da poesia concreta, é um fato que aconteceu com todas as vanguardas — futurismo, dadaísmo, surrealismo — e com o nosso modernismo. Trata-se de um fenômeno corriqueiro de comunicação: o público tende a só aceitar como arte aquilo que já está sacramentado pelos códigos convencionais. Tudo que é novo lhe parece estranhável e até ofensivo. Hoje, porém, passado meio século, a poesia concreta é ensinada até nas escolas. Não há como apagá-la da história.

Na década de 1960, em plena ditadura militar, você e o seu irmão, Haroldo, estudaram o idioma russo com o professor Boris Schnaiderman, na Universidade de São Paulo, com o objetivo de traduzir autores de vanguarda como Maiakóvski e Khlébnikov, o que se concretizou com a antologia Poesia Russa Moderna. Como o livro foi recebido na época? O que ele representa em seu percurso poético?

O comunismo da época era marcado pelo stalinismo, que institucionalizara como prática obrigatória o “realismo socialista”, e perseguia os artistas modernos como autores de “arte decadente”, da mesma forma que os nazistas os perseguiam como protagonistas de “arte degenerada”. Mas o marxismo não-ortodoxo, simpático às vanguardas, como o de Gramsci, além de uma geral orientação de cunho socialista, orientavam nossa postura como cidadãos, e Maiakósvki e os artistas da vanguarda russa eram considerados fundamentais por nós. Fomos estudar o difícil idioma, no início dos anos 60, para tentar traduzir o poeta, e logo percebemos que as versões que se faziam de sua obra, derivadas de edições em língua castelhana, falseavam a qualidade de sua poesia, que é virtuosística e extraordinariamente avançada para a sua época.

No entretempo, sobreveio o golpe militar, e nós incrementamos nossas traduções como uma forma de protesto, primeiro com a publicação de um volume dos poemas de Maiakóvski, que saiu em 1967, pela editora Tempo Brasileiro, com traduções minhas e de Haroldo, e o suporte linguístico de Boris Schnaiderman. Procurei, propositadamente, traduzir alguns dos poemas políticos mais radicais do poeta, como Black and White, cujo tema era o do negro cubano humilhado pelo “rei dos charutos”, Henry Clay (com um olho na revolução cubana, que admirávamos); Hino ao Juiz, que terminava provocativamente: “Os juízes cassam os pássaros, a dança. / A mim e a vocês e ao Peru” (introduzi o verbo “cassar” como referência às cassações, terminologia com a qual se começava a denominar as punições políticas dos atos institucionais); e, por fim com o dístico revolucionário de Maiakóvski, que aqui vai em transcrição fonética, seguido da tradução:

“Iech ananáci, riábtchicov jui.
Dienh tvoi posliédnii, burjui.”

Come ananás, mastiga perdiz,
Teu dia está prestes, burguês.
 

Eu não era adepto de Luís Carlos Prestes, que, para usar de uma expressão dele mesmo a propósito de um general seu amigo, eu considerava “um patriota equivocado”, mas me vali do “equivocábulo” com o seu nome como provocação. Em 1968, saiu a nossa antologia Poesia Russa Moderna, pela Civilização Brasileira, cujo editor, Ênio Silveira, era alvo das perseguições dos militares. Foi um momento em que achamos imprescindível manifestar a nossa indignação com o retrocesso provocado pelo golpe. Hoje, ambos os livros continuam circulando com a rubrica da Editora Perspectiva e, felizmente, estão entre os mais procurados pelos leitores.

A Poesia Concreta incorporou em seu plano-piloto a conhecida palavra-de-ordem de Maiakovski: "sem forma revolucionária não existe arte revolucionária". Coerentes com esse princípio, os poetas concretos, em sua fase participante, criaram poemas como Beba Coca-Cola e Mallarmé vietcong, de Décio Pignatari, Servidão de passagem, de Haroldo de Campos, Greve e Luxo lixo, de sua autoria. O diálogo crítico com a realidade social, com o momento histórico, encontra-se em quase todos os seus livros, inclusive o mais recente, Outro, publicado neste ano pela editora Perspectiva. Comente esse aspecto de seu trabalho.

Considero a poesia política a mais difícil de se fazer. Décio foi um precursor com o seu Beba Coca-Cola, que é de 1957 !!! E foi o mesmo Décio que anunciou, no Congresso de Crítica Literária de Assis, em 1962, o que chamou de “pulo da onça” — o salto participante da poesia concreta. Na comunicação que apresentou, então, e que depois foi publicada no primeiro número da revista Invenção, Situação Atual da Poesia No Brasil, ele alertava para os riscos desse empreendimento. Quanto mais político, menos poético. Mas decidimos “pisar a garganta do nosso canto“, como Maiakovski, e tentamos seguir o seu lema, que na época era totalmente desconhecido entre nós – “Sem forma revolucionária não existe arte revolucionária”.


 

Poesia não é sociedade beneficente, nem palco adequado para retóricas de palanque, e o poeta que se mete nessa empreitada corre o maior e o mais frequente dos riscos: o de exibir-se como politicamente correto, piedoso com o sofrimento dos desfavorecidos ou mostrar-se fanatizado por suas reivindicações, e perder-se em banalidades, preconceitos e concessões que diminuem a sua qualidade poética. Esse é o sentido do poema visual Profilograma Pound/Maiakóvski, que depois transformei em um morfograma digital com as vozes originais dos autores dizendo trechos dos seus poemas, e nos quais sobrepus os perfis de Maiakovski (por Ródtchenko) e Pound (por Gaudier-Brzeska), os dois maiores poetas políticos do nosso tempo, de ideologias opostas. As passagens menos felizes de suas obras são as que incorrem no fanatismo ideológico e na apologia de sistemas políticos que se revelaram autoritários e ditatoriais. Acabaram o primeiro se suicidando e o segundo numa jaula exposta às intempéries e a seguir internado num manicômio judiciário, por 12 anos, sem estar louco.


Quais são os teus projetos literários atuais?

Venho de participar do lançamento do CD O Inferno de Wall Street / Poetas em Movimento, de Cid Campos, com a música que ele compôs para os respectivos espetáculos de dança, e que conta com a participação de oralizações de vários intérpretes: a minha em O Inferno de Wall Street, com textos de Sousândrade, e também as de Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Walter Silveira, José Mindlin, Ricardo Araújo, Danilo Lôbo e Lauro Moreira em Profetas em Movimento. Trata-se de produção independente, com design gráfico meu, e que está sendo distribuída pela Tratore. [Veja aqui]

Lanço em 8 de dezembro a nova edição, muito ampliada, do livro de ensaios Poesia, Antipoesia, Antropofagia & Cia, pela editora Companhia das Letras. E tenho em preparo, para o ano que vem, Música de Invenção 2, a sair pela Editora Perspectiva. Em projeto, uma edição bilíngue, português/inglês, de Poetamenos.

O Brasil vive hoje um dos momentos mais delicados de sua história, com ameaças ao processo democrático e aos direitos civis. Manifestações de intolerância e preconceito contra mulheres, comunistas, negros e homossexuais são frequentes, estimuladas pela mídia. Como você avalia esta situação?

Toda a vez que pude — e são poucas as ocasiões em que se dá aos poetas a oportunidade de expressar a sua opinião — manifestei-me contra os atentados à nossa frágil democracia, e sou evidentemente contrário a toda espécie de preconceito. Acho que o Brasil evoluiu muito nos últimos tempos, especialmente no tocante aos direitos das mulheres, mas a nossa sociedade é ainda muito conservadora, e com a sua falta de consciência política, distorcida pelo poder econômico, elegeu um dos mais conservadores Congressos que já teve, dominado por ruralistas, empresários, evangélicos e até defensores da ditadura. Um Congresso que nos ameaça com retrocessos históricos como o das restrições à legislação sobre o aborto, sob as vistas grossas de uma oposição pouco sensível ao que não seja a busca do poder a todo preço e que está apostada em impedir a governabilidade do Executivo, refém do Congresso. A sociedade tem que estar muito atenta para evitar que tais retrocessos venham a ocorrer, e defender os direitos que conquistamos a duras penas.

Qual é a importância da opinião política de artistas, poetas e intelectuais num momento como o atual?

Não sou eu quem vai dar lições de civismo aos artistas, poetas e intelectuais. Cada um que se manifeste, ou deixe de se manifestar, como quiser. Para o bem ou para o mal, eu manifestei a minha opinião, e não é de hoje. Acho que, independente dos erros ou equívocos que cometeu o governo, é meu dever de cidadão insurgir-me contra os argumentos falaciosos dos que pretendem derrubar a vencedora das últimas eleições, com grave e perigosa lesão às nossas instituições democráticas. Tenho autoridade para isso. É que, independentemente de ser poeta e escritor, com um trabalho incessante por quase 70 anos, sou advogado, procurador do Estado aposentado, cargo que exerci por quase 40 anos e no qual entrei por concurso público e não por favor de ninguém. No exercício de minhas funções era especializado no exame da legislação em face das Constituições estadual e federal, e me sinto à vontade para afirmar que não têm qualquer fundamento jurídico as tentativas de impeachment da presidente. Nesse passo, ao contraditar os “impeachmaníacos” em entrevistas que dei aos jornais Valor Econômico (31 de julho), Correio Braziliense (2 de agosto) e à revista Cult nº 204, de agosto) antecipei-me aos manifestos anti-impeachment de importantes escritores, docentes universitários, juristas e advogados a que a grande mídia deu pouco ou nenhum destaque, embora entre os seus signatários estivessem nomes dos mais significativos da nossa cultura, como Antonio Candido, Marilena Chaui, Dalmo Dallari, Paulo Sérgio Pinheiro e juristas do porte de Fabio Konder Comparato e Marcio Sotello Felipe. Fecho com eles. Eu não me sentiria bem comigo mesmo se me calasse. Confesso que lavei a alma com o discurso que fiz na cerimônia da ordem do mérito e com a entrevista que dei, antes do seu início, no saguão do Palácio do Planalto, em 9 de novembro.