Panorama para entender o peronismo na Argentina

“Os peronistas não são nem bons, nem maus; são incorrigíveis”, Jorge Luis Borges. Certa vez, quando o general Perón estava no exílio, um jornalista lhe questionou sobre o cenário político e o caudilho respondeu: “Na Argentina uns 20% são conservadores, uns 20% liberais, uns 20% democratas cristãos, uns 20% esquerda, e uns 20% direita”. Surpreso o repórter indagou, “mas e os peronistas?”. A resposta de Perón foi contundente: “Ah! Peronistas todos são!”

Por Guadi Calvo*, especial para o Vermelho

Juan Domingo Perón - Wikicommons

Talvez esta anedota possa explicar, pelo menos em pate, uma das perguntas mais complexas que se pode fazer um argentino: “O que é o peronismo?”.

Desde seu surgimento, em 1945, o peronismo jamais deixou de ser o protagonista essencial no panorama político do país, sua presença sempre foi fundamental e determinante.

O peronismo, como construção política recém chegada, consolidado sobre os setores mais marginalizados, foi combatido pela esquerda e pela direita. Sua gigantesca base popular, praticamente toda espontânea, diante da figura de um coronel desconhecido que havia desenvolvido uma inédita e monumental tarefa na Secretaria do Trabalho e Previdência, gerou para a esquerda clássica como o Partido Comunista e o Socialismo, e algumas outras pequenas organizações, um profundo ressentimento, já que sentiram que o peronismo havia os “deslocado” de seu mais apreciado objeto de desejo: “o proletariado”.

A esquerda em geral simplificou e fez a soma mais obvia: um militar jovem (Perón) emergente dos setores nacionalistas do exército, com uma visão inovadora sobre a concepção de Estado, das forças armadas, os sindicatos e os industriais nacionais souberam, e em seguida sofreram, que o eixo da distribuição econômica mudaria drasticamente.

Rapidamente foi rotulado como populista. Sentiram que sua chegada iria disputar o poder absoluto de classe que desfrutavam desde a origem do país, um poder que só havia sido compartilhado com a coroa britânica, de quem se sentia parte. Ferrovias, portos, frigoríficos… os britânicos estruturavam a cadeia de exportação desde Londres e só ficavam no país os dividendos dos fazendeiros.

O peronismo mudou este comportamento nacionalizado muitos dos capitais britânicos, e até colocando em prática um princípio de reforma agrária. Perón carregou os rótulos de fascista e populista até o último dia de sua vida e para muitos setores seguirá sendo para sempre.

Liberais, conservadores e marxistas foram ofuscados pelo poder absoluto do “tirano fugitivo” como o chamou a imprensa conservadora durante todo seu exílio.

Na Argetnina, sempre que aconteceram eleições livres, tampouco foram tantas, o peronismo se impôs sem muito esforço, só em duas ocasiões perdeu eleições presidenciais em 1983, quando triunfa Raúl Alfonsín da União Cívica Radical, um partido que representou historicamente a cara “civilizada da direita. Em 1983 o país vinha de uma ditadura selvagem, que havia deixado 30 mil desaparecidos (entende-se por sequestrados, torturados e assassinados), uma monumental Dívida Externa e a guerra das Malvinas. Mas além dos erros próprios do Peronismo, a sociedade argentina não estava em condições para provar, outra vez, com um país que contestasse o establishment e o poder militar, que debilitado seguia tendo suas ações repressivas bem aceitas. A sociedade argentina optou por um político clássico, desajeitado e inoperante, com infinitas limitações morais e técnicas: Alfonsón, que terminou afundando o país em uma crise econômica desconhecida no mundo, com índices de inflação que só aconteceram em Veimar, na Alemanha e teve que abandonar o governo seis meses antes do final de seu mandato.


Maurício Macri à esquerda e Sérgio Massa, à direita, o candidato que traiu o kirchnerismo
 
Quem o sucedeu foi um peronista, Carlos Menem, um peronista ortodoxo, originário do interior profundo, que tampouco tardou em vincular-se aos grandes grupos de poder econômico do país e do exterior, para converter-se em um dos governos mais corruptos da história argentina. Menem adotaria todas as políticas neoliberais em voga nos anos 90 e só terminaria seu mandato depois de dez anos de governo, já que foi reeleito em 1995, com um desprestígio absoluto.

Depois de Menem, outra vez o peronismo volta a perder as eleições, em 1999, dez anos de menemismo haviam sido demais para a sociedade e esta vez triunfa uma aliança formada por setores do peronismo “mais puro”, os grupos de esquerda burguesa e o radicalismo, encabeçada por Fernando de la Rúa. Se é possível, era menos dotado que Alfonsín, absolutamente cercado pelas políticas liberais nomeia como Ministro da Economia, o imprudente Domingo Cavallo. Este era o homem dos bancos estadunidenses, padrinho absoluto da economia dos anos de Menem, e quem termina afogando o governo junto com De la Rúa diante das eclosões sociais de dezembro de 2001 que deixaram 35 mortos pela repressão policial – cifra inédita desde a volta da democracia – e o país literalmente à beira de uma dissolução.

Voltar a Perón

A crise de dezembro de 2001 durou praticamente até o começo de 2003, quando acontece a fuga de Fernando de La Rúa, que empenhado em salvar o poder executivo e a continuidade democrática utiliza diferentes ferramentas constitucionais, sete presidentes, todos peronistas de distintos setores, trocam o cargo em dias. Nenhum conseguia tirar o pé do lamaçal que o radicalismo havia provocado. Até que o poderoso governador da província de Buenos Aires e ex-vice-presidente de Menem, Eduardo Duhalde, assume o poder executivo para chamar as eleições no prazo de um ano. Tempo que utilizou todo o aparado político do peronismo em províncias e municípios e com peronismo puro consegue controlar em partes a economia e entregar, em maio de 2003, um Estado mais ou menos ordenado a outro peronista, Néstor Kirchner, que parecia muito debilitado, por assumir o poder com apenas 25% dos votos. O kirchnerismo, que entraria em cena tão discretamente, se converteria no fenômeno político mais extraordinário desde o surgimento do próprio Perón, em 1945. Com um mandato de Néstor e dois de sua esposa, Cristina Fernández Kirchner, completaria um processo de 12 anos de conquistas que não serão extintas, e se Daniel Scioli triunfar neste domingo (22), no segundo turno, poderia continuar por mais quatro anos.


Daniel Scioli e Maurício Macri, a disputa pela presidência chega ao fim neste domingo (22) 

Seu oponente, Maurício Macri, um representante dos mercados e das multinacionais, que tenta voltar com uma nova roupagem com as propostas politicas liberais dos anos 90 com o trio Menem-Cavallo-De la Rúa como guia espiritual, baseando sua campanha em muita imagem, discursos, tipografias, cores e propostas de um pastor eletrônico. Conta ainda com um monstruoso escudo midiático e judicial que ofusca suas feridas abertas e seus faraônicos atos de corrupção própria, e de seus funcionários e amigos.

Apesar do tal escudo, se o peronismo marchasse unido, as possibilidades do candidato dos mercados seriam paupérrimas, e inclusive teria sido impossível haver chegado ao segundo turno.

O peronismo outra vez desunido pode fazer naufragar o projeto tão trabalhado e desejado pelo general Perón e sua esposa Eva Perón. Projeto este que se centrava na justiça social, na independência econômica e na soberania política.

Nas eleições de 2001, quando Cristina seria eleita pela segunda vez com 54% dos votos, não houve maiores fraturas e o peronismo como movimento e partido se resguardou atrás da candidata. Nestes últimos anos a traição de Sergio Masa, que havia ocupado importantes cargos tanto na administração de Néstor, como de Cristina, golpeou o governo e levou quse 20% dos votos que hoje faltam a Scioli e que teriam feito o peronismo triunfar uma vez mais no primeiro turno, em outubro.

O peronismo tem uma condição natural para segmentar-se e para voltar a se unir, esta não é a primeira vez que acontece e certamente não será a última. Seus dirigentes todavia não conseguiram superar a perda de seu fundador em 1973.

Desde então, ao se tornar nominalmente um partido, mas não ter uma estrutura resistente e ordenada para canalizar as disputas internas, as fugas são tão constantes como os retornos. Qualquer dirigente médio se considera apto para saltar para cima sem respeitar ordens e hierarquias.

A sorte da presidenta, hoje uma figura incontornável na política interna do peronismo, pode perder a totalidade de seu poder apenas ao entregá-lo nas mãos do próximo a ocupar o cargo em 10 de dezembro. Paradoxalmente, perderá mais poder se ganhar o candidato peronista que o opositor. Outra condição natural do peronismo é imediatamente tentar se proteger junto ao vencedor, para em pouco tempo dar início novamente à cerimônia de rancor.

A lógica do peronismo é a de sugar seus chefes, depois de um determinado tempo, já que na realidade o único chefe segue sendo o general Juan Domingo Perón.

Por exemplo, a terceira esposa do general, Isabel Martínez de Perón, que foi presidenta depois da morte do líder e deposta em 1976, e até hoje vive em Madrí, porque não pôde voltar ao país desde que partiu para o exílio em 1981, depois de cinco anos de uma prisão muito cômoda em um dos lugares mais bonitos da Argentina, próximo a Bariloche.

Tanto Carlos Menem, como Eduardo Duhalde que tiveram um poder absoluto, cada um em seu tempo e em seu lugar, hoje nenhum dirigente com ambições se permitiria ser visto em púbico com um deles. Para o bem, Cristina se retira com uma imagem muito melhor que a de seus colegas, apesar de uma monumental campanha midiática que tentou acusá-la até de traidora da pátria, com infinitas conquistas para mostrar, poderia ser obrigada a passar uma boa temporada em quartéis de inverno, se ganha Scioli. Se Macri vencer, este cronista imagina que não demoraria mais que o tempo de retocar a maquiagem para Cristina se converter na líder absoluta da oposição. Talvez neste lugar seja possível unir mais os peronistas, já que como disse Borges, são incorrigíveis.