Astrojildo Pereira, um comunista machadiano

Há 50 anos morria Astrojildo Pereira, um dos fundadores e principal dirigente do Partido Comunista do Brasil na sua primeira década de vida. Astrojildo foi daqueles intrigantes e instigantes personagens da história brasileira sobre o qual, por mais que nos debrucemos sobre ele, há de sempre aparecer uma nova faceta, um traço ainda não revelado da sua personalidade, uma marca inconfundível da sua trajetória.

Por Joan Edesson de Oliveira*

Astrojildo Pereira

Muito cedo, o quase menino ainda, inquieto e irrequieto, já virara personagem histórico da nossa literatura. Era 1908 e Machado de Assis vivia suas derradeiras horas, cercado por amigos, alguns dos quais já reconhecidos nos meios literários. Foi exatamente um desses, o escritor e jornalista Euclides da Cunha, quem narrou a visita que um rapazola de dezoito anos fizera ao velho Machado no seu leito de morte. Tocado pelo gesto, Euclides descreveu a cena em crônica publicada no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro: “Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu. Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis –, aquele menino foi o maior homem de sua Terra”.

Décadas depois a identidade do menino seria revelada por Lúcia Miguel Pereira, biógrafa de Machado. Astrojildo, com a modéstia que lhe caracterizou, jamais havido dito que era, o próprio, aquele rapazola do “último adeus”. Aquela paixão, revelada publicamente naquele gesto de singular afeição, o acompanharia para sempre.

Três anos depois, em viagem a bordo da terceira classe de um navio, Astrojildo iniciaria outra paixão, que também o acompanharia até o fim. Na Europa, aonde fora, travou conhecimento com o anarquismo, voltando de lá com uma penca de livros e uma escolha que também jamais abandonaria, fazendo apenas correções de rumo mais adiante.

Machado e a literatura: uma paixão

Começando por Machado, mas não se limitando a ele, Astrojildo fez da literatura não apenas uma paixão, mas um permanente objeto de trabalho. Foi, talvez, dos primeiros a compreender, com absoluta clareza, o papel do velho bruxo. Contrariando a expectativa de Euclides da Cunha, ele subiria bem mais na vida, e quase sempre levando Machado a tiracolo. Dedicou-se ao estudo da obra do mestre, buscando, argutamente, identificar nela um sentimento de nacionalidade.

Acertadamente, Astrojildo, desde o início, considerou Machado um autor maior na nossa literatura. Enxergou nele aquilo que o próprio dizia de José de Alencar, que havia nele “um modo de ver e de sentir que dá a nota íntima da nacionalidade”. Astrojildo afirmou que isso se aplicava muito mais ao próprio Machado do que ao autor de Iracema. Não se limitou a ver no grande mestre apenas um importante autor, mas considerava-o um autor seminal, indispensável para se compreender a própria nacionalidade.

Seus trabalhos sobre o autor de Dom Casmurro constituem, ainda hoje, chave para se penetrar melhor na obra daquele. Ao estudá-lo, Astrojildo buscou, na verdade, estudar e entender o Brasil, e compreender a formação nacional, tema que sempre lhe foi tão caro. Para ele, Machado de Assis foi o mais universal dos nossos escritores e também o mais nacional, o mais brasileiro de todos.
Buscando essa linha, estudou outros autores, entre eles Lima Barreto, a quem considerava continuador da obra de Machado em vários aspectos. Essa paixão pela literatura manteve-se por toda a sua vida, influenciando fortemente o seu trabalho de jornalista, intelectual e editor. Foi, sempre, homem de cultura e escritor.

O Partido Comunista: outra paixão

Astrojildo regressou da Europa convertido ao anarquismo, e foi nessa condição que travou contato com o movimento operário brasileiro e iniciou uma trajetória revolucionária que trilhou até o fim da vida. Do anarquismo ele fez sua transição para o comunismo, influenciado especialmente pela revolução de outubro de 1917, na Rússia.

A ele se deve, junto a outro punhado de revolucionários, a fundação e a direção do Partido Comunista do Brasil na sua primeira década de existência. A maioria dos comunistas, organizados em vários grupos espalhados pelo país, era constituída por operários e intelectuais oriundos do anarquismo.

Quase todos, impactados pela revolução russa, haviam feito o mesmo caminho que Astrojildo. Fundar uma organização nacional a partir desses diversos grupos era tarefa grandiosa, mas não a maior delas.
A grande preocupação de Astrojildo, nesses anos iniciais do Partido Comunista, juntamente com outros como Cristiano Cordeiro e Otávio Brandão, foi criar e formar um grupo dirigente do Partido. Ao tempo em que lutava por obter o reconhecimento da Internacional Comunista, fundamental para a sobrevivência e a legitimidade do Partido, preocupava-se também em formar uma direção comunista, distanciando-se cada vez mais da sua herança anarquista.

Sua alma de jornalista logo se fez presente, com a fundação do jornal Classe Operária, órgão oficial do Partido, para o qual escreveu incessante e constantemente. Não tinha medo da polêmica, inclusive com os anarquistas, que há pouco ombreavam com ele na mesma luta, e colocava para os camaradas do Partido que não havia de se temer o debate. Seria, para sempre, homem de jornal operário e popular, afeito ao bom combate de ideias, diário e permanentemente.

A par com os esforços pela formação e estruturação de um núcleo dirigente comunista, preocupava-se também em entender o Brasil e tratar da revolução brasileira. Foi, provavelmente, junto com Otávio Brandão, o primeiro a demonstrar preocupação em aplicar o marxismo à realidade brasileira. Era marxista e internacionalista, mas a revolução a que se propunha era no Brasil, razão pela qual a questão nacional sempre lhe foi tão cara. Aqui voltava o estudioso machadiano, na busca da conciliação entre o nacional e o universal.

Mais do que o problema nacional, preocupava Astrojildo a questão nacional-popular. Sua admiração por Lima Barreto, por exemplo, advinha do caráter popular daquele escritor, profundamente ligado ao povo do Rio de Janeiro e às causas populares. Para Astrojildo, era como se o Partido Comunista fosse herdeiro e continuador das lutas populares que desembocaram na abolição da escravatura, outro dos temas da sua preferência. Assim, ia tomando corpo um Partido e uma teoria da revolução brasileira onde se casavam o internacionalismo com a realidade nacional.

Jornalista combativo, foi também o primeiro historiador do Partido Comunista do Brasil, buscando não apenas registrar os anos de formação do PCB, como era conhecido então, mas procurando entender o surgimento do marxismo no Brasil, resgatando e dando a devida dimensão histórica a figuras como Silvério Fontes, por exemplo, um dos precursores das ideias de Marx e Engels no país.

Comunista como sempre, Machadiano mais do que nunca

O golpe desferido em 1964 encontrou um Astrojildo já velho e doente, mas ainda o mesmo comunista machadiano de sempre. Abandonou a sua casa, na Rua do Bispo, Rio Comprido, no Rio de Janeiro, e entrou na clandestinidade. Em outubro, após meses de clandestinidade, apresentou-se ao comandante de um dos IPMs em que havia sido indiciado. Preso, os verdugos submeteram-no a longos interrogatórios sobre a fundação do Partido, sobre a década de 1920, sobre o período em que fora o Secretário-Geral do PCB.

Após três meses de prisão e intensa campanha que mobilizou os mais diversos setores, foi posto em liberdade, por força de um habeas corpus, em janeiro de 1965.

Até o fim, Astrojildo comportou-se como o comunista e revolucionário que sempre foi. Ao sair da prisão, revelou-se, mais do que um machadiano, um verdadeiro personagem do velho bruxo. Ao comentar sobre o comportamento dos que lhe haviam encarcerado, sua fala não podia ser mais carregada de ironia e mordacidade: “São pesquisadores de um novo tipo. Colocam no xadrez as fontes de informações históricas”. Aí estava a síntese do que foi Astrojildo.

Em 21 de novembro de 1965, poucos meses após a saída da prisão, o coração de Astrojildo Pereira parou de bater. No seu enterro, Otto Maria Carpeaux, intelectual e grande amigo, ao fazer-lhe a última saudação, na qual dizia que ele era, além de grande intelectual e amigo, um idealista, um puro, parou de repente e exclamou: “Astrojildo é um santo!”.

O menino que beijou a mão de Machado de Assis em seu leito de morte alçou voos mais altos do que poderia imaginar Euclides da Cunha, que registrou e imortalizou o seu gesto. A estrela vermelha do Rio Bonito, como lhe chamaram, brilha alto tanto tempo depois.

*Joan Edesson de Oliveira é educador, Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.